A arte precisa de justificativa
Por Liz Valente
Tudo o que os críticos e pensadores ousam afirmar com segurança sobre a arte contemporânea é que não se pode afirmar nada com segurança sobre a arte contemporânea. Sendo assim, ela parece uma corrida de barquinhos excêntricos navegando em um mar de incertezas. Não há largada, nem trajetória demarcada e muito menos chegada. Mas o que a fé cristã tem a dizer sobre isso?
Para início de conversa, não é tarefa simples demarcar historicamente o que vem a ser “contemporâneo”; há quem não faça distinção entre “contemporâneo” e “pós-moderno”, já outros identificam uma virada. Para estes, o pós-moderno ainda continha um canal de debate com o movimento moderno, enquanto o contemporâneo flutua descomprometido e se satisfaz simplesmente em ser “contemporâneo”. Apesar dos debates, podemos identificar historicamente o “contemporâneo” nos movimentos experimentais da arte a partir da década de 1950, nos Estados Unidos, que lidavam com a tridimensionalidade não escultural da arte e com o consequente surgimento de novas categorias dentro das artes plásticas.
Já que não se pode dizer o que a arte contemporânea é, pode-se procurar o que ela não é. Temos uma série de obras que lidam com espaço, que estão debaixo do guarda-chuva das artes plásticas, mas não são esculturas e também não são pintura, nem drama, nem dança. E, embora possam fazer uso da tinta e do corpo humano, não o fazem nos modos tradicionais dessas categorias. Parece charada da cartola do coelho branco. E assim mesmo! À primeira vista a arte contemporânea é confusa. Mas mesmo sem poder coincidi-las em um único recipiente é possível identificar que todas possuem discurso, justificativa. O que permite essa falta de compromisso formal é a compensação teórica; ou seja, a justificativa teórica da expressão artística ganhou destaque em relação à própria obra artística. Aliás, o uso do termo “expressão artística” em lugar de “obra de arte” ocorre na literatura justamente para reforçar que é o abstrato (a expressão) e não o concreto (a obra em si) que tem maior atenção hoje.
Ainda que seja algo volátil como “do-what-ever” (faça qualquer coisa), os artistas dedicam-se ao conceito por trás de sua expressão artística. A justificativa não é, simplesmente, uma explicação da obra, mas um enredo do qual a obra resulta. Por isso, às vezes, aparecem obras que parecem mais aberrações naturais do que “arte”, e que ainda assim são aclamadas pela crítica demonstrando que a teoria passou a valer mais do que a obra de arte em si; e o artista passou a ser aquele que tem as ideias, e não necessariamente aquele que as executa.
Para que haja uma resposta cristã à arte contemporânea, é necessário o mesmo tipo de comprometimento teórico. Caso contrário, correrá sério risco de ser irrelevante. A fé cristã apresenta justificativas para a arte, a começar com a glória de Deus. O artista cristão deve trazer à memória a orientação de Jesus: “para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus” (Mt 5.16). Sim, isso inclui as obras de arte, as obras plásticas e as expressões puramente estéticas. Se o dadaísmo dizia que a arte é qualquer coisa, em qualquer ordem, nós vemos diferente. A arte é muita coisa, em muitas ordens, e o critério é a gloria Deus.
Talvez o leitor esteja lembrando-se de Rookmaaker que dizia que “a arte não precisa de justificativas”, mas Rookmaaker referia-se a ideia de que a arte não precisa de função prática como ornamentação. Ele queria dizer que a arte pode simplesmente ser arte. Na verdade, essa afirmativa de Rookmaaker é extremamente atual. É como se ele dissesse: “deixe a arte ser o que ela é”. Qualquer crítico atual apoiaria esse discurso. O que Rookmaaker dizia na década de 1970, a igreja brasileira ainda está caminhando lentamente para entender.
Para que a arte tenha liberdade formal ela não pode cumprir exigências de função, e nem ter compromisso com linguagens estéticas previamente estabelecidas. Ela precisa simplesmente ser arte. E para que haja coerência teórica com a cosmovisão cristã ela também não pode ter um fim em si mesma, mas deve ter seu fim na beleza da glória de Deus.
• Liz Valente é mestra em arquitetura e urbanismo onde investiga as interrelações entre espaço e arte no museu de arte contemporânea. Também é cantora, compositora e autora de 4 peças teatrais. Casada com Pedro Paulo e mãe do pequeno João.
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Henrique Freires Pereira
Obrigado pela reflexão Liz. É sempre importante lembrar que temos um caminho definido pra trilhar em nossas produções, a glória de Deus!
Que Deus te conceda sabedoria a cada dia!
Abç.
Rogério Marques Santos
Muito bem escrito. Mas para leigos como eu, o texto se mostra desconectado de minha realidade ou de minha experiência com a arte. Seria interessante talvez a menção a exemplos ou a situações vividas por boa parte das pessoas. Será que os museus no Brasil tem este tipo de arte? Nossas praças, espaços urbanos ou modas de roupas? Estilos de carros? Arquitetura de imóveis? Enfim, o que as informações deste texto tem a ver com a realidade do dia a dia? C. S. Lewis escrevia sempre utilizando-se de metáforas, exemplos e história. Seus livros são minhas obras de arte preferidas.
Caio César
Mais uma vez: a glória de Deus [sem definição], dificil mesmo é definir como glorificar a Deus, que estilos o glorificam.
Candipoti
Liz, muito importante essa afirmação: “Para que haja uma resposta cristã à arte contemporânea, é necessário o mesmo tipo de comprometimento teórico”
Acredito que do ponto de vista formal é necessário se dispor ao diálogo, às vezes concebendo a obra nem sempre do modo preferido pelo artista. Entretanto, do ponto de vista moral (ou temático, talvez), cabe ao autor cristão a busca de honrar a Deus ou revelar algo Dele. Aliás, acho que isso significa (pelo menos para mim) glorificar a Deus na Arte: ver algo dele ali (como uma noite estrelada revela algo de Deus).
Eu acho isso muuuuito incrível!! Renovar linguagens artísticas pelo uso de temas cristãos é demais!
(Não quero dizer com isso somente cenas bíblicas, mas princípios, o que é mais instigante!).
Valeu pelo texto!