A influência da ficção: de Monteiro Lobato a C. S. Lewis
Na varanda com o autor | Cayo César Santos
Em meio às aventuras do Sítio do Pica-pau Amarelo e, depois, do universo imaginativo de C. S. Lewis, Cayo César conseguiu responder, na adolescência, à pergunta que muitos de nós ainda fazem: “onde é que eu entro na história que Deus está fazendo?”
E, para tentar explicar essa grande História, ele também começou a escrever suas aventuras. O primeiro livro foi Século I – O Resgate e, em seguida, Século I – A Reconstrução (ganhador do Prêmio Areté de Literatura 2019, na categoria “Ficção”) e, por último, Século I – A Revolução. Autor da trilogia Século I, Cayo César Santos é o nosso convidado para o Na Varanda com o Autor.
Alguma pessoa ou livro, em especial, influenciou sua aproximação da leitura e da escrita?
Sempre gostei de ler, especialmente obras de ficção, contos, histórias. Na infância, a grande influência foi o velho Monteiro Lobato, com as aventuras de Pedrinho e Narizinho no Sitio do Pica-pau Amarelo. Na adolescência eu já estava no contexto da igreja, quando me deparei com a obra de C. S. Lewis. Definitivamente, ele impactou toda a minha percepção sobre literatura. Foi nessa fase da vida, penso eu, que eu resolvi que em algum momento da minha jornada eu precisaria escrever.
Quando a inspiração para escrever não vem…
Interessante pensar nisto. Certamente há momentos em que a escassez de ideias e a seca de pensamentos bate à porta de quem escreve. No meu caso, minha saída é caminhar. Caminhar sob dois pontos de vista: primeiro, literalmente, pôr os pés na rua e andar. Nas caminhadas me reconecto com o Criador e com a criação. Olhos, ouvidos, boca e nariz são convidados a perceber, a experimentar o mistério e a dádiva da vida. O canto de um pássaro, o cheiro do capim molhado pelo orvalho ou de uma flor do cerrado, o vento que toca a pele, o calor do sol que brilha no céu azul da nossa cidade, cada um destes aspectos escondidos de uma caminhada, me reorientam a mente, fazendo-me “ver” o invisível afeto de Deus por nós. O segundo caminhar é metafórico. Gosto de tomar o caminho das artes. Quando falta inspiração, muitas vezes, o que me salva é inspiração dos outros seres humanos. Seja na música e letra de canções, seja nas artes visuais, telas e pinturas do presente e do passado, seja em filmes cinematográficos e, obviamente, em bons livros, gosto de me conectar com o modo particular que os artistas têm de interpretar a realidade à sua volta, transformá-la em arte e, generosamente, compartilharem o fruto de sua inspiração.
O que os adultos devem ler para as crianças?
Esta pergunta me remete à infância de nossos filhos, com aquelas bíblias coloridas que narravam as “aventuras” de personagens que transmitem a qualquer geração os valores do Reino de Deus. O universo imaginativo de C. S. Lewis, por sua vez, constitui uma fantástica ferramenta para consolidação das verdades divinas. Assim, considero que As Crônicas de Nárnia devem ser lidas para e com crianças de até os dez anos de idade. Nada supera a imaginação, a criatividade, a doçura e a fidelidade com que Lewis nos apresenta a saga do Redentor, na figura esplêndida do leão Aslam e seus companheiros, humanos ou não, de aventura. Já para os maiores e adolescentes, recomendo incentivá-los a ler Tolkien, que é, para mim, um dos maiores gênios da literatura mundial e que, também, nos instiga a discernir os poderes que estão presentes neste mundo e como eles interagem com o ser humano. Penso que são leituras imprescindíveis. Fizemos assim com os nossos três filhos.
Que conselho você gostaria de ter recebido na sua juventude?
Eu gostaria de ter tido maior orientação quanto à jornada que eu chamaria “de formação”. Sou de um tempo e de um contexto social em que a prioridade era a sobrevivência. Assim, demorou até que eu pudesse colocar esforços para além deste aspecto, focando na minha própria formação cultural, na devoção e nos relacionamentos. Quando jovens, não refletimos muito sobre como aproveitamos o tempo e sobre o que deve ser priorizado na “alimentação” de nossa mente, o que nos leva, de certo modo, a negligenciarmos o dom de pensar que o Senhor nos dá. Hoje percebo o quanto é importante ter conhecimento aprofundado e crítico do pensamento que nos cerca e das razões da nossa fé, cultivar um relacionamento pessoal com o Criador que seja capaz de nos reorientar em momentos cruciais da vida, de nos ajudar a moldar nossos propósitos e sonhos e, também, cultivar relações em que a integridade seja impactante, tanto em amizades sinceras como nos contatos que envolvem ambientes e seres humanos diversos. Como tudo isso só é possível tendo Deus como centro, acho que o conselho que eu gostaria de ter ouvido, na fase de fartura de dias, de certo modo pode ser resumido nas palavras do livro do Eclesiastes, “lembre-se do Criador nos dias de sua juventude”!
Como você lida com o envelhecer?
Tenho aprendido que envelhecer é uma arte intencional. Pode parecer paradoxal, mas, de maneira consciente ou não, cada um de nós escolhe, deliberadamente, o tipo de pessoa que vai querer ser amanhã. Digo deliberadamente porque é como estabelecer uma rota, um rumo. Dizem que se você não sabe para onde ir, também não sabe onde chegará. É verdade, mas a vida não nos permite parar. Assim, o caminhar é um ato deliberado. Dr. James Houston diz que ao longo do tempo nossas características vão se exacerbando. E é nesse contexto que o nosso enganoso coração pode se perder: muitas vezes o pecado nos direciona para nos tornarmos um fim em nós mesmos, o que termina por resultar numa coleção de defeitos e frustrações que vão naturalmente se crescendo. Meu amigo Rubem Amorese tem um texto interessante sobre este tema, onde, com muito bom humor, pinça princípios basilares da fé cristã para concluir que bom mesmo é ser “um velhinho gente boa”. Basicamente resume meu modo de pensar, que se estabelece nas seguintes premissas: a) o envelhecimento deve ser encarado sob a perspectiva da graça e não como um fardo a carregar. b) é preciso olhar para o envelhecimento como oportunidade de serviço: tudo aquilo que experimentamos, tudo o que a vida nos deu, transforma-se em sabedoria passível de ser transmitida, na prática, aos que nos sucedem. Mentoria é um bom projeto para os que são agraciados com os cabelos brancos da maturidade. Assim, comparo o envelhecimento a uma moeda: de um lado, tem-se a concessão que o Senhor nos faz de mais tempo, ou seja, mais vida. De outro, tem-se a gratidão, uma escolha que consiste no reconhecimento sereno de o que o Pai sabe o que está fazendo! Ele sabe porque nos dá mais algumas primaveras.
O que mais a anima e o que mais a incomoda no meio evangélico?
Anima-me a igreja viva, que não se deixa enredar pelo mero institucionalismo. Homens e mulheres, jovens, crianças, adultos ou idosos, que compreendem seu papel no projeto de expansão do Reino de Deus. Gente que está menos preocupada com o poder e mais focada em servir, cuidar e acolher. Gente que compreende seu papel na História que Deus está construindo a partir de Jesus Cristo e o modelo que nos deixou. Gente envolvida com o sagrado ministério da reconciliação. Isto me anima, na medida em que percebo que é uma realidade presente. Aqui e ali, lá e acolá, percebo estas manifestações de cristãos verdadeiros, cheios da graça e misericórdia, obedientes ao convite do Senhor e comprometidos com a proclamação do Evangelho da Graça. Por outro lado, o que me incomoda é tudo aquilo que se opõe a essas práticas fundamentais da fé cristã que acabei de descrever. No contexto “evangélico”, como vocês colocam na presente questão, ou no contexto “cristão” de modo mais amplo, incomoda-me quando nos deparamos com pessoas e instituições cujas atitudes, na prática, são contrárias ao ensino e desejo de Jesus, contrárias à graça e ao amor que Ele materializou em sua encarnação, em sua trajetória humana, em sua morte e na ressurreição que o Pai lhe concedeu. Costumo chamar esta dicotomia de “religiosidade”, ou seja, aquilo que tem aparência de relação com Deus, mas que, de fato, torna-se um mero mecanismo de poder, seja pela força da grana que ergue e destrói, como diria um compositor nacional, seja pela manipulação de mentes e corações, seja pelos mecanismos da culpa que jogam vidas em poço profundo e escuro da alma, ou seja, ainda, pelo triunfalismo ufanista de que seríamos, por alguma razão, melhores que os demais seres humanos. Esses aspectos desta religiosidade deturpada que busca o poder são bem perceptíveis, aqui e ali, e são eles o que mais me incomoda em nosso meio e em qualquer lugar. Mas graças a Deus por Jesus Cristo, que mantém a parcela fiel de seus seguidores, a despeito de instituições, e também no seio de muitas delas, pois as coisas do mal, ao cabo, não prevalecerão contra a verdadeira igreja do Senhor.
Como você recebeu a notícia da premiação de Século I – A Reconstrução no Prêmio Areté de Literatura 2019?
Recebi com muita alegria, certamente. O ponto principal em uma premiação como esta é que recebemos uma sinalização consistente de que o trabalho desenvolvido foi, ou está sendo, reconhecido. Trata-se de um prêmio tradicional e prestigioso que envolve as editoras cristãs do país inteiro. A Série Século I compõe meu primeiro trabalho e foi concebida como uma trilogia, onde trabalho o poder transformador do evangelho que nos alcança não apenas individual, mas, também comunitariamente. O prêmio para o segundo volume da série me presenteia com a forte convicção de que todo o esforço empreendido nesta parceria com a editora Ultimato, que ao cabo foi quem primeiro acreditou no projeto, tem valido a pena. Assim, a alegria da premiação redunda em gratidão ao Bom Pai Celestial, que nos concede tais oportunidades e surpresas na vida.
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