Livro da Semana  | Sou Eu, Calvino — Uma Biografia

Parece que Deus utilizará o sangue de vocês para subscrever sua verdade. Então o melhor é que vocês se preparem para partir

 

 De junho de 1552 a maio de 1553, o senhor enviou três cartas endereçadas “aos cinco prisioneiros de Lyon”. Quem são eles?

São em ordem alfabética: Bernard Seguin, Charles Favre, Martial Alba, Peter Escrivain e Peter Navihères. Todos eram jovens franceses e estudavam teologia em Lausanne, aqui na Suíça, perto de Genebra. Em abril de 1552, eles estavam de volta à França quando foram presos sob a acusação de heresia por terem aderido à Reforma. Aos primeiros rumores da prisão deles, a igreja de Genebra abraçou a questão e fez tudo o que pôde para lhes mostrar solidariedade.

 Os rapazes foram libertados?

Os cinco estudantes apelaram ao Parlamento de Paris enquanto as autoridades de Berna lutavam para salvá-los. Mas não deu certo. Depois de serem transferidos de masmorra em masmorra e de um longo julgamento, um ano depois da prisão, no dia 1º de março de 1553, foram condenados à fogueira. Isso nos causou muito pranto, tanto em Genebra como em Lausanne. Dois meses e meio depois, a pena se cumpriu. A fogueira foi montada na Place des Terreaux. Ao serem avisados para se prepararem para a morte, os cinco estudantes receberam a notícia com piedosa serenidade. Do cárcere até o local da execução, eles foram cantando salmos e recitando versículos das Escrituras. Os dois mais moços foram os primeiros a subir na pilha de lenha. O último foi Martial Alba, o mais velho dos cinco. Ele permaneceu um bom tempo de joelhos em oração. Depois, solicitou ao carrasco que lhe concedesse o privilégio de beijar os outros quatro, que já estavam amarrados, no que foi atendido. Martial disse a cada um deles: “Adieu, adieu, meus irmãos”. Já em meio às chamas, uns diziam aos outros: “Coragem, meus irmãos, coragem!”.

 Suas cartas os confortaram?

É o que tentei fazer, de forma mais realista do que otimista. Logo após a sentença, eu lhes escrevi o seguinte: “Parece que Deus utilizará o sangue de vocês para subscrever sua verdade. Então o melhor é que vocês se preparem para partir”. Ao mesmo tempo, eu trouxe à lembrança deles uma preciosa verdade: “Vocês sabem que, ao deixar este mundo, não partem ao acaso, não só por terem convicção da existência de uma vida celestial, mas também por terem certeza da adoção graciosa do nosso Deus”. Por fim, disse-lhes solenemente: “Enquanto aprouver a Deus dar o reino aos seus inimigos, nosso dever é ficar quietos, embora tarde o tempo da nossa redenção”. É como disse certo mártir inglês em 1545: “Eu sei que o fogo, a água, a espada e outras coisas estão nas mãos de Deus, e ele não permitirá que eles me sobrevenham em intensidade superior à força que ele nos dará para suportá-los”.

 
 O senhor acaba de tocar numa questão muito delicada, o que me leva a perguntar: quem é mais útil a Deus, aquele que dá a sua vida por ele na morte ou aquele que dá a sua vida por ele na vida?

Deus, em sua soberania e em sua estratégia, serve-se de ambos, porém se serve mais dos que continuam vivos. Nos primórdios da história da igreja, dos doze apóstolos, o Senhor deixou que Herodes matasse à espada apenas Tiago, um dos mais chegados a Jesus, e preservou a vida dos outros, mesmo num ambiente de intensa perseguição. Dos sete diáconos, o Senhor fez o mesmo: deixou que o Sinédrio judaico e a multidão em fúria apedrejassem Estêvão e preservou a vida dos outros, inclusive a de Filipe, que foi um excelente evangelista. O potencial do mártir vai embora com ele, mas o sangue dos mártires, como dizia Tertuliano no século 2º, é a semente da igreja cristã. O sangue dos cristãos mortos por sua fé nunca é derramado à toa. É bem possível que o testemunho de Estêvão na hora de seu martírio tenha sido uma das causas da conversão de Saulo, aquele que viria a ser o maior teólogo e o maior missionário de todos os tempos.

 Mas todos os outros apóstolos, se não foram martirizados no início de seus ministérios, o foram posteriormente.

De fato, segundo a tradição, Mateus foi passado pelo fio da espada na Etiópia. Marcos morreu em Alexandria depois de ter sido arrastado pelas ruas da cidade. Lucas foi enforcado numa oliveira na Grécia. João foi posto num caldeirão de óleo fervente, mas escapou da morte e foi exilado na ilha de Patmos. Pedro foi crucificado de cabeça para baixo em Roma. Tiago, o Menor, foi lançado de um pináculo do templo e depois espancado até morrer. Filipe foi enforcado numa coluna na Frígia. Bartolomeu foi preso a uma cruz, e dali pregou aos seus perseguidores até morrer. Tomé teve o corpo traspassado por lanças na Índia. Matias foi apedrejado e depois decapitado. Barnabé teve a mesma sorte na Grécia. E Paulo foi decapitado por ordem de Nero em Roma. No caso dessas pessoas, por amor a Jesus, elas deram a vida delas na vida e na morte.

 Como o senhor define o mártir cristão?

Mártir é tanto a pessoa assassinada como a pessoa submetida à pena de morte pela recusa de renunciar à fé cristã ou a qualquer de seus princípios. João Batista não foi condenado à morte nem pelo Estado nem pelo Sinédrio. Cortaram-lhe a cabeça apenas para satisfazer o capricho pessoal de Herodias, cujo relacionamento com Herodes foi criticado pelo precursor de Jesus. Já os rapazes de Lyon não foram necessariamente assassinados, mas condenados à pena máxima. A história está repleta de ambos os exemplos.

 Além dos cinco rapazes de Lyon, tem havido outros mártires em seus dias?

Muitos e em muitos lugares – na Boêmia, na Escócia, na Inglaterra, em Portugal etc. Entre os mais notáveis, cito novamente Jan Hus, o precursor da Reforma, morto na fogueira em Praga no dia 6 de julho de 1415. Para não ser longo demais, menciono os nomes dos ingleses John Hooper, Hugo Latimer e do bispo Nicholas Ridley, martirizados em 1555. Deixo por último o meu amigo Thomas Cranmer, arcebispo da Cantuária e primaz da Inglaterra, morto em 21 de março de 1556.

 Disseram-me que o bispo Hooper era mais elogiado por ser pai de família do que pastor de ovelhas.

Embora dedicando a maior parte de seu trabalho ao rebanho de Cristo, pelo qual deu o seu sangue, ele não deixava de providenciar uma boa educação para os filhos, passando-lhes ensinamentos e boas maneiras. Há uma passagem muito bonita na vida dele. Em março de 1554, ele foi intimado a comparecer diante dos comissários da rainha e um deles perguntou se ele era casado. “Sim, excelência”, respondeu Hoover, “sou casado há nove anos e não me descasarei até que a morte me descase”. Menos de um ano depois, no dia 9 de fevereiro, ele foi descasado ao ser queimado vivo por ordem de Maria Tudor, rainha da Inglaterra, de 39 anos.

 “O Livro dos Mártires” porventura faz referência aos cinco rapazes de Lyon?

O livro de John Foxe foi publicado em latim quatro anos após o martírio dos cinco estudantes de Lausanne. Ele faz apenas uma pequena alusão sem citar nomes e datas: “Durante a mesma perseguição padeceram os gloriosos e mui constantes mártires de Lyon e Vienne, duas cidades da França, dando um retumbante testemunho e, para todos os cristãos, um espetáculo ou exemplo singular de fortaleza em Cristo, nosso Salvador”. Em minha opinião, Foxe deveria ter dedicado mais espaço a esses mártires, levando em conta que ele começou a compilar O Livro dos Mártires (coincidentemente com o mesmo título do livro de Jean Crespin, que citei anteriormente) quando, por causa da perseguição na Inglaterra, exilou-se por algum tempo na Alemanha e por aqui na Suíça.

 Quem é esse Foxe?

John Foxe é sete anos mais novo do que eu. Nasceu na Inglaterra e tornou-se professor da Universidade de Oxford, onde havia se formado. Creio que foi nessa época que ele se uniu aos reformadores ingleses. A tradução inglesa de seu livro foi publicada há poucos meses sob o título Actes and Monuments of These Latter and Perillous Days.

 É juízo temerário pensar que alguns cristãos acabam na fogueira para se tornarem heróis da fé?

Isso é possível, mas o julgamento final pertence a Deus. Os cristãos não devem provocar a perseguição com palavras, gestos e ações petulantes. Eles devem aceitar o preço da fidelidade a Cristo por amor incondicional ao Senhor, e não a eles mesmos. Quanto aos perigos que possam surgir, devemos evitá-los o quanto pudermos, mas sem nunca nos desviarmos do reto caminho. É tudo uma questão de equilíbrio: o cristão não deve correr da fogueira nem correr para a fogueira. A desobediência civil só não é pecado quando o cristão desobedece à lei para não desobedecer a Deus.

 No livro de Foxe há algumas histórias que cheiram a fanatismo?

Os que não se retratam, não abjuram a fé, não voltam atrás, mesmo tendo a oportunidade de se livrarem da morte na última hora, são pessoas especiais, como os amigos de Daniel, frente à fornalha acesa, e Estêvão, frente ao apedrejamento. Elas não irão nem gritar, nem praguejar, nem blasfemar no momento exato da morte. Elas irão louvar a Deus, irão anunciar o evangelho pela última vez, irão orar pelos seus verdugos (como Estêvão fez), irão abraçar e beijar a estaca (como aqueles onze homens e duas mulheres martirizados em Stratford-le-Bow em 1556), irão lavar as mãos nas chamas como se fossem água fresca (como um tal de Rogers), irão beijar a fogueira (como um tal de Cardmaker), irão declarar que a fogueira na qual estão sendo queimadas é a carruagem de fogo que levou Elias para o céu, irão bater palmas com as mãos em fogo (como Thomas Hauker), irão chamar a corda que as amarra à estaca de cinto nupcial com o qual estão se casando com Cristo (como Ann Audebert), irão pedir que o carrasco distribua com os pobres a madeira que sobrar do “incêndio” (como Giles Tilleman). É preciso levar em conta que o estado emocional dos que estão sendo levados para o patíbulo (para serem mortos ou na fogueira, ou na forca, ou na guilhotina, ou no apedrejamento) certamente altera seus sentimentos, suas palavras, suas reações. Nos casos citados por Foxe, não vejo fanatismo algum.

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