Livro da Semana  |  Trabalho, Descanso e Dinheiro

 

Por Timóteo Carriker

Os reformadores protestantes tinham uma visão do trabalho bem diferente da visão monástica. Consideravam-no como a vocação de todos os cristãos. Assim, rejeitavam a dicotomia entre duas atividades humanas e afirmavam que todas as formas de trabalho têm igual valor diante de Deus. Por exemplo, entre outros motivos que resultaram na acusação de heresia de William Tyndale, estava sua crença de que:

Nenhum trabalho é melhor que outro para agradar a Deus: buscar a água, lavar a louça, ser sapateiro ou apóstolo, tudo é uma só coisa; lavar louça ou pregar o evangelho é uma só coisa, no que se refere ao trabalho, para agradar a Deus.

Martinho Lutero acreditava que Deus, na sua providência, havia colocado cada pessoa na sua função na sociedade para realizar as atividades daquela função. João Calvino enfatizou o trabalho útil. Ele disse que Deus não está “como os sofistas imaginavam, à toa, desocupado e quase dormindo, mas vigilante, eficaz, operante e empenhado em ação contínua”.5 E, em seu comentário sobre a parábola das dez minas (Lc 19.11-27), Calvino relacionou os talentos ao trabalho diário e à vocação e, assim, ditou o significado moderno das palavras talento e talentoso. Atualmente, entendemos o talento como o exercício de uma habilidade, frequentemente associado a uma profissão. […]

Tanto a visão capitalista quanto a marxista creem que o labor contínuo, racional e produtivo transformará o mundo. O trabalho, na sua ótica, é a chave da história, a chave para uma nova sociedade, uma nova natureza e um novo homem. Enfim, é o nosso cerne e a nossa salvação. A diferença é que para o marxismo a transfor­mação deveria ser social e igualitária, ao passo que para o capitalismo deveria ser individual, discriminativa e meritória. Em ambos os sistemas, a sociedade vive incansável e laboriosamente em torno de uma orientação para o futuro. De acordo com essas duas filosofias, o trabalho e especificamente a produção, com o auxílio da ciência e da tecnologia, nos introduzirão em um mundo de consumo, lazer e liberdade.

 

A PERSPECTIVA BÍBLICA DO TRABALHO

Para examinar a perspectiva bíblica do trabalho, precisamos revisar os nossos comentários sobre Gênesis 1 e o mandato cultural.

Nos primeiros dois capítulos de Gênesis, já vimos que a criação da humanidade recebe um grande destaque. No capítulo 1 ela é o ápice da criação, enquanto no capítulo 2 é o seu centro. Ambos os relatos ressaltam a posição principal da criação do homem. E aqui lemos também sobre o propósito de Deus na criação da humanidade. Gênesis 1.26-28 diz que a humanidade essencialmente teria domínio sobre o resto da criação. Assim, como o próprio Deus, ainda que em menor escala e a Ele subordinado, cabe ao ser humano a função de senhorio. Nisso ele demonstra que é como Deus, pois foi criado parecido com Ele.

Reparamos também a incumbência de multiplicar-se e encher a terra. A reprodução biológica e a ocupação demográfica da terra refletem literalmente a criatividade de Deus. O homem também seria um criador, mas, de novo, debaixo da criatividade do próprio Deus. Finalmente, em Gênesis 2.19, aprendemos que o ser humano recebe uma terceira qualidade como característica de sua herança de parecer-se com Deus. É a incumbência de dar nome às diversas partes da criação, que, de certo modo, trata não só de mera taxonomia, mas eventualmente de todo o empreendimento científico em geral.

Em tudo isso, os seres humanos, diferentes das outras criações de Deus, se apresentam como fazedores da história e da civilização, construindo cidades (Gn 4.17) e desenvolvendo a vida pastoril e nômade (4.20), a música (4.21) e a metalurgia (4.22).

Mesmo a queda não anula o mandato cultural. Adão e Eva continuam com suas funções de guardiões, criadores e senhores da terra. No relato sobre o dilúvio, o mandato é reforçado e renovado para Noé (Gn 9.7, 19-20). A sorte do povo de Deus continua ligada à terra e, para Abraão e seus descendentes, a promessa de bênção de Deus inclui necessariamente a terra (Gn 12.1-3). […]

Tudo isso nos persuade à valorização bíblica do trabalho. As Escrituras estão repletas de louvor pelo labor das mãos, corações e mentes humanas. Habilidades no trabalho são descritas como dons de Deus, que é um trabalhador (Gn 2.4, 7, 8, 19, 23) e um habilitador (Êx 35.30-32; Sl 65.9-13; 104.22-24; Gn 10.8, 9).

Não nos surpreendemos, então, que o Novo Testamento nos apresente Jesus no meio dos problemas diários de gente trabalhadora. Ele mesmo era um carpinteiro e comunicava-se com trabalhadores empregando as figuras do trabalho manual (veja as parábolas narradas em Mt 13.3, 30; 7.24; Lc 15.8, 11; Jo 4.35).

Paulo também valorizava o trabalho. Ele criticava a preguiça (2 Ts 3.6-12) e não fazia nenhuma distinção entre o labor físico e o trabalho espiritual. Usou os mesmos termos para o seu trabalho manual como fazedor de tendas e seu serviço como apóstolo (1 Co 4.12; 15.10; 16.16; Ef 4.28; Rm 10.12; Gl 4.11; Fp 2.16; Cl 1.29; 1 Ts 5.12). Para ele, uma vida de lazer e contemplação religiosa, ou abdicação escatológica, era uma vida deficiente. Todos os membros da igreja deveriam trabalhar (2 Ts 3.10).

Até mesmo os novos céus e a nova terra incluirão o trabalho (Is 65.21, 22; Mq 4.3-5). O labor faz parte do galardão divino, e não do seu castigo!

 

IMPLICAÇÕES DO TRABALHO

De certo modo, o trabalho faz parte da manifestação do domínio de Deus no mundo, pelo menos à medida que esse domínio se expressa por seu emissário, o homem, especialmente o homem redimido. Por isso, pode-se pensar apropriadamente do labor humano, mediante o exercício das diversas profissões, como um dos meios mais significativos de derrubar as barreiras que se levantam contra o reino de Deus na terra. E, por isso, o desempenho da vocação profissional de cada um deve refletir os valores desse reino, valores de paz e de justiça. Assim, o trabalho possui definitivamente uma dimensão ética. Envolve, entre outras coisas, a denúncia do preconceito racial7, da opressão aos pobres8, do trabalho escravo e mal remunerado9, da decadência urbana, da corrupção política e da imoralidade. Mas deve refletir também uma vida vivida em comunhão com o Criador, evidenciada no culto e na compaixão. Enfim, toda atividade humana é dádiva de Deus e deve servi-lo e glorificá-lo.

Assim, o trabalho pode e deve ser encarado como uma extensão da nossa espiritualidade. Não fazemos separação essencial, como é comum em boa parte da igreja cristã, entre uma vocação secular e outra religiosa. Exercemos toda nossa atividade — trabalho e lazer — religiosamente, ou melhor, espiritualmente. Ninguém se sinta inferior ou culpado pela sua profissão, mas cada um assuma sua função com a responsabilidade e a dignidade de ser administrador de uma tarefa dada por Deus.

Na prática, isso significa que todo serviço humano, exercido para recompensa ou não, diretamente na igreja ou não, deve ser prestado igualmente para a glória de Deus e para o bem do mundo por Ele criado. O cristão deveria se perguntar: “Como meus talentos e minha profissão podem melhor contribuir para os desígnios de Deus e a manifestação dos valores do seu domínio?” Se todos fizessem assim, o testemunho cristão lá na rua e em todos os lugares onde cristãos exercem suas profissões teria um impacto maior. Não enquadraríamos a igreja como o “verdadeiro” campo onde os cristãos vivem e o “mundo lá fora” como um lugar onde devemos gastar o mínimo de nosso tempo e de onde devemos fugir em toda oportunidade que tivermos. Ao contrário dessa perspectiva de “gueto”, enquadraríamos toda a criação como santuário de Deus, estabelecido para sua honra e glória, e, por isso, o lugar principal da atuação cristã. A igreja, sob esta ótica, seria tanto o lugar onde nos preparamos para tal atuação quanto o lugar onde adoramos ao Senhor e crescemos na fé junto com outros filhos de Deus. Enfim, o trabalho não é a antítese da autorrealização humana e cristã. É um dos seus principais meios.

O trabalho não deve ser visto como apenas mais uma oportunidade para evangelizar os nossos colegas de trabalho. Certamente a evangelização em toda situação é nosso privilégio e dever. Mas o trabalho deve ser compreendido de maneira mais ampla, como um dos nossos principais meios de levar adiante o propósito de Deus ao criar a humanidade. Ele é nosso meio de expandir as divisas daquela parte da criação que está sujeita à vontade de Deus e de derrotar as forças do mal que contrariam esta vontade. É um meio de estabelecer a confiança e a responsabilidade mútuas entre os seres humanos e aliviar o sofrimento do homem.

• Trecho retirado do livro  Trabalho, Descanso e Dinheiro, de Timóteo Carriker (Editora Ultimato).

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