O mito da democracia racial entre os evangélicos
Livro da Semana | A Religião Mais Negra do Brasil
Por Marco Davi
Nas denominações pentecostais, bem como em toda a Igreja brasileira, é difundida a ideia de “democracia racial” entre os membros. Os evangélicos, em geral, alimentam a ideia de que existe igualdade entre os fiéis, e isso tem sido motivo de orgulho para muitas denominações, sejam elas históricas ou pentecostais. Porém, esse mito tem sido usado para esconder o problema real do racismo na igreja evangélica brasileira.
O que vem a ser um mito? Segundo Junito de Souza Brandão, em sua coletânea Mitologia Grega, “sendo uma fala, um sistema de comunicação, uma mensagem, o mito é uma como que metalinguagem, já que é uma segunda língua na qual se fala da primeira”.6 O mito não é algo palpável, mas não deixa de existir como forma de comunicação, de identidade, de essência. O mito comunica algo que está além, inatingível. É o grito de dimensões da realidade que tem seu próprio significado.
A ideia de democracia racial torna-se um mito porque não se coaduna com a realidade experimentada pelos negros brasileiros. O problema se manifesta com mais clareza quando se observa a pouca representação dos negros nas pesquisas relacionadas com a renda e a situação econômica.
Na Igreja brasileira já se tornou corrente a ideologia que enfatiza a democracia racial como uma marca dos evangélicos brasileiros. Segundo ela, não temos igrejas separadas por raças, etnias ou cor, e isso nos faz mais harmoniosos do que os evangélicos da América do Norte, por exemplo. Porém, essa é mesmo a realidade entre os evangélicos brasileiros? Não há ideologia alguma por trás dessa premissa?
Ao mesmo tempo que as denominações pentecostais compõem a vertente da igreja evangélica que dá mais espaço aos negros brasileiros, também são as que reforçam o mito da democracia racial entre evangélicos. Caso contrário, os pentecostais não seriam os que mais demonizam os cultos de origem africana, nem se assustariam tanto com as reflexões sobre o racismo nas igrejas, e teriam, em suas lideranças majoritárias, um número muito maior de negros traçando os rumos de suas matrizes. Pelo contrário, a igreja pentecostal foge das discussões sobre a questão racial, demonstrando que, entre os evangélicos pentecostais, há um paraíso racial sem diferenças nem preferências.
Se “o objetivo do mito da democracia racial é esconder os conflitos raciais existentes e diminuir sua importância”, a igreja pentecostal cumpre muito bem com os objetivos dessa ideologia. Nas igrejas pentecostais, os conflitos existentes entre as raças nas relações sociais no Brasil são tratados com distanciamento tal a ponto de caracterizar quem se aventura a refletir sobre o assunto como “subversivo”, “desordeiro” e, o pior de tudo, “possesso” ou “endemoninhado”. Afinal, pensar sobre racismo em um ambiente onde impera o mito da democracia racial como algo divino é uma afronta aos mais “santos” e “consagrados”.
Os que defendem a igualdade racial são constantemente induzidos a crer que, dessa forma, causarão divisões na igreja e causarão problemas de relacionamento. A harmonia entre os pentecostais nem sempre tem sido uma realidade, mas, quando se trata de um assunto como o da igualdade racial na igreja, as objeções são, de fato, calorosas, unindo todos os pentecostais num só pensamento: “Na igreja pentecostal ou evangélica, não há racismo ou desigualdade; todos são iguais perante Deus”.
Com certeza, Deus vê todas as pessoas como iguais e ama a todas como são, ou seja, pecadores carentes de sua graça e sua misericórdia. Mas isso não quer dizer que nessas igrejas repletas de pecadores se verifique a realidade prática de que todos são iguais, de que todos possuem os mesmos direitos, de que todos sofrem os mesmos pesos quando erram e que, independentemente de raça, cor e situação econômica e social, podem alcançar os mais altos cargos denominacionais.