Conteúdo oferecido como Mais na Internet na edição #368 da revista Ultimato

Por Gérson Borges

Comida e música, sem dúvida uma excelente combinação. Um restaurante com (boa) música ao vivo sempre é charmosamente bem-vindo. Especialmente se o couvert artístico for baratinho e o cantor ou instrumentista talentoso. Na adolescência e na juventude, tempos de estudante universitário sem dinheiro, cheguei a fazer “bicos” como “músico da noite” ao cantar clássicos da MPB como “Sampa”, de Caetano e Gil, “Espanhola”, de Venturini e Guarabyra, ou os sucessos da rádio daquela época. Dava gosto ver a casa cheia, casais saboreando os pratos e parando para aplaudir o cara corajoso e despojado (só por fora – gelava de timidez) do banquinho e do violão. Ou não: chato era terminar um Tom Jobim caprichado, tanto na intricada harmonia de bossa nova quanto na afinação, e ser engolido pela atenção que o público concedia ao molho tártaro do lanche ou ao papaia com cassis da sobremesa.  Mas como diria o Bituca, a gente estava lá batalhando o pão, “sem se importar se quem pagou quis ouvir”.

Eu, meio culpado pela formação protestante mais legalista do que a média, não gostava da ideia de ser um “músico da noite”. Via-me mais com um “músico do dia” infiltrado naquele universo de bares e restaurantes. Um “músiconário”, dizia a mim mesmo. O problema era o risco de dizer “amém, irmãos” depois de uma canção do Guilherme Arantes, e, no culto de domingo, confuso com essa história de noite/dia, depois de “Tu és fiel, Senhor”, mandar um “obrigado, gente!”.

Mas o que me fez relembrar esse tempo de cancioneiro não é velha crise profano x sagrado. Isso está resolvido: Bíblia e teologia reformada – tudo pode, precisa e deve ser feito para a glória de Deus. “Não há um centímetro nesse universo a respeito do qual Jesus não diga ‘é meu!’” (Kuyper).  Até comer ou cantar em um restaurante barato no sábado à noite pode ser redimido e missional. Aliás, um dos meus amigos daquelas noites musicais confessou Jesus como Senhor e Salvador e se tornou cristão. Minha reflexão é sobre essa harmonização, para usar um termo peculiar aos enólogos e críticos gastronômicos, entre saborear um bom prato e deliciar-se com uma boa canção.

A primeira canção que me vem à mente sobre essa saborosa combinação é um salmo. O salmista canta e saboreia a graça de Deus, o Sumo Pastor: “Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda” (Salmos 23.5). Não damos conta de que os Tehilim – os salmos de Israel – são um hinário, uma coletânea de orações e canções, tanto de louvor quanto de lamento.

Falando em salmos, “Vinho e Pão” (No nome forte de Jesus), canto litúrgico e eucarístico dos mais belos que conheço e canto com minha comunidade de fé e igrejas Brasil afora, é uma composição de Brian Jeffery Leech, versada lindamente em português por Guilherme Kerr, meu amigo, mentor e parceiro musical, que descreve com poética inspirada a riqueza espiritual da mesa e da Ceia do Senhor:

Quem serve o vinho e parte o pão

É o próprio Cristo, ressurreto e nosso irmão

O Rei da Terra e céus é nosso anfitrião

Com vinho e pão nós celebramos comunhão[1]

Jesus é, ao mesmo tempo, diácono, anfitrião e o alimento e a bebida servidos em uma mesa sacramental, mística e muito generosa. Estar numa mesa assim é uma experiência profundamente tocante. É a mesa do Evangelho da Graça. O mesmo Guilherme – autor e compositor de algumas das canções que mais canto e cantarei para celebrar o evangelho, verdadeiras capelas musicais nas quais entro para adorar com música e poesia –, ao lado de outro saudoso amigo, o Jorge Rehder, enchem meu coração de anseio pela koinonia – comunhão –, própria do reino de Deus, caracterizada pela “Unidade e Diversidade”:

Da multidão dos que creram
Era só um o coração e a alma,
Uma só mente, uma semente,
Somente uma esperança brotando dentro da gente.
Nosso era o pão cada dia, nosso era o vinho, santa folia,

O que se parte e reparte, a própria vida,
Galho ligado à parreira, vida, em comum, verdadeira.[2]

A mesa do Senhor não era apenas simbólica; a eucaristia era mais do que concreta – dava-se graças ao partir o pão, que lembrava a morte do Senhor e alimentava não apenas corações, mas estômagos famintos. A refeição, segundo Atos dos Apóstolos, antes de ser memorial (batista) ou sacramental (reformada), era real. Pão para os famintos, partilhado e partido “com singeleza de coração”. Havia música nessa mesa eucarística? Sim. Salmos. Hinos judaicos. Tehilim ao Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, que tirara o seu povo da escravidão egípcia. Mateus 26.30 narra como a última Ceia de Páscoa de Jesus com seus Talmidim se encerra: “Depois de terem cantado um hino, saíram para o monte das Oliveiras”. Mesa koinônica. Música litúrgica.

Falando em pão, “O Cio da Terra”, clássico de beleza telúrica de Chico Buarque e Milton Nascimento, faz- nos refletir sobre o trabalho, o labor da sobrevivência, que jaz no árduo processo humano de plantar, processar, cozinhar e consumir um alimento ou bebida:

Debulhar o trigo,

Recolher cada bago do trigo

Forjar no trigo o milagre do pão

E se fartar de pão.[3]

O mesmo Chico, compositor inspirado e inventivo como poucos, sobretudo nas décadas de 60–80, presenteia-nos com outra canção desse par música/comida, “Feijoada Completa”, um tutorial intensivo e abrangente de brasilidade e comensalidade em exíguos minutos:

Mulher, não vá se afobar;
Não tem que pôr a mesa, nem dá lugar.

Ponha os pratos no chão e o chão tá posto
E prepare as linguiças pro tira-gosto.

[…]

Mulher, você vai fritar
Um montão de torresmo pra acompanhar:
Arroz branco, farofa e a malagueta;
A laranja-bahia ou da seleta.
Joga o paio, carne seca,
Toucinho no caldeirão
E vamos botar água no feijão.

Todas as estrofes terminam com essa convocação à mesa, à confraternização culinária: “E vamos botar água no feijão”. Poucas coisas são mais incentivadoras da comunhão que um almoço de domingo – e com feijoada, eu diria como brasileiro e carioca. Chico cita doze alimentos e convida o ouvinte a saborear uma grandiosa experiência de comunhão. Outro rápido curso sobre a riqueza cultural da culinária brasileira é “Farinha”, de Djavan, que ressalta a beleza humana perdida ou vencida pela modernidade:

A farinha é feita de uma planta da família das
Euforbiáceas, euforbiáceas
De nome manihot utilissima

Que um tio meu apelidou de macaxeira
E foi aí que todo mundo achou melhor!
A farinha tá no sangue do nordestino
Eu já sei desde menino o que ela pode dar
E tem da grossa, tem da fina, se não tem da quebradinha
Vou na vizinha pegar pra fazer pirão ou mingau
Farinha com feijão é animal!
O cabra que não tem eira nem beira
Lá no fundo do quintal tem um pé de macaxeira
A macaxeira é popular, é macaxeira pr’ali, macaxeira pra cá
E em tudo que é farinhada a macaxeira tá
Você não sabe o que é farinha boa
Farinha é a que a mãe me manda lá de Alagoas

Sou do Subúrbio, bairro humilde de um Rio de Janeiro mais solidário. Lembro que a gente pegava emprestado um ovo e um punhado de farinha de trigo ou mandioca, como na canção, com a vizinhança. Depois pagava com um pouco do resultado – um punhado de cuscuz de tapioca ou de broa de milho. Essa culinária solidária se perdeu. Hoje em dia, tempos secularizados de fast food individualista, a gente é capaz de comer almoço de “dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola e picles em um pão com gergelim”, ao lado ou em frente a um rosto que não conhecemos e com quem não trocamos sequer uma palavra.

Jesus, por sua vez, comia com publicanos, pecadores e fariseus, e travava um diálogo inclusivo e acolhedor com eles. Como lembra Fagner Santos em seu marcante livro, “Teologia da Mesa”,

Que nós possamos aprender com Jesus a não recusar assentar-nos à mesa com aqueles que nos desejam mal; antes sejamos claros e honestos em constrangê-los em amor, expondo o evangelho em nosso testemunho de vida, pois para os que estão no evangelho, mesa é lugar de comunhão e de vida, não de separação e morte; a mesa de Jesus fala do seu sacrifício, morte e ressurreição, a qual gera vida para a eternidade.[4]

A mesa de Jesus é acolhimento, não exclusão. A lição é clara. E bela. Ao comer com Zaqueu e Pedro, por exemplo, Jesus nos ensina a comensalidade do perdão. Comida-pretexto para ministrar a graça:

Jesus nos constrange a viver com pessoas que precisam de acolhimento e amor; não podemos ser como os fariseus, que condenavam aqueles que não lhes pareciam bem aos olhos; antes, devemos ter o mesmo sentimento de Jesus, o qual enxerga, acolhe e convive com estas “ovelhas que não têm pastor”. Que sejamos verdadeiros imitadores de Cristo, a fim de que, através de nós, ele se revele a todos.[5]

Jesus sabia que o casamento entre música e comida é feliz e fecundo. No churrasco pela volta do filho pródigo, com a picanha do bezerro cevado, ele não se esqueceu da música e da dança. Jesus não nos ensina a ser um bon vivant, mas a celebrar. O reino de Deus é uma festa. A mesa está posta. Qual é a música?

Na vivência da vida comunitária de fé no Cristo de Nazaré, nunca faltará pão, que sacia a fome do corpo; nunca faltará a canção, que enleva a alma. Comer juntos, cantar juntos – que coisa boa! Cada celebração de domingo é um ensaio – estamos afinando as vozes, timbrando nossos corações, acertando o ritmo, decorando a melodia da festa definitiva. Cada vez que partimos o pão e comemos lado a lado, irmãos e irmãs, provamos um tira-gosto do que será servido no banquete dos banquetes:

Depois destas coisas, ouvi no céu uma como grande voz de numerosa multidão, dizendo: Aleluia! A salvação, e a glória, e o poder são do nosso Deus, porquanto verdadeiros e justos são os seus juízos, pois julgou a grande meretriz que corrompia a terra com a sua prostituição e das mãos dela vingou o sangue dos seus servos. Segunda vez disseram: Aleluia! E a sua fumaça sobe pelos séculos dos séculos. Os vinte e quatro anciãos e os quatro seres viventes prostraram-se e adoraram a Deus, que se acha sentado no trono, dizendo: Amém! Aleluia! Saiu uma voz do trono, exclamando: Dai louvores ao nosso Deus, todos os seus servos, os que o temeis, os pequenos e os grandes. Então, ouvi uma como voz de numerosa multidão, como de muitas águas e como de fortes trovões, dizendo: Aleluia! Pois reina o Senhor, nosso Deus, o Todo-Poderoso. Alegremo-nos, exultemos e demos-lhe a glória, porque são chegadas as bodas do Cordeiro, cuja esposa a si mesma já se ataviou, pois lhe foi dado vestir-se de linho finíssimo, resplandecente e puro. Porque o linho finíssimo são os atos de justiça dos santos. Então, me falou o anjo: Escreve: Bem-aventurados aqueles que são chamados à ceia das bodas do Cordeiro. E acrescentou: São estas as verdadeiras palavras de Deus (Apocalipse 19.1-9).

Haverá comida. Haverá música. Comensalidade adoradora. Risos ruidosos. Abraços apertados. Brindes sem fim. E a celebração vai se estender por toda a eternidade – isso sim é festa!

Notas:
[1]https://www.letras.mus.br/vencedores-por-cristo/1468956/.
[2]https://www.letras.mus.br/guilherme-kerr/1136973/.
[3]https://www.letras.mus.br/chico-buarque/86011/.
[4]SANTOS, Fagner Pereira. Teologia da mesa; comensalidade, espiritualidade e inclusão na mesa de Jesus. Ed. Esperanza. p. 57.
[5]Ibid. p. 85.

• Gerson Borges é carioca do Subúrbio e paulista do ABCD. É educador, escritor, músico, poeta e pastor na Comunidade de Jesus em São Bernardo (SP). Casado com Rosana Márcia, pai de dois meninos e torcedor do Flamengo e do São Paulo.

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