Diário de emergência do avô de Clara
Por Elben César | Ultimato, edição 237
Uma criança nasce com atresia de esôfago. Corre sério risco de vida. É internada às pressas na Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte. Com seis dias de vida, o cirurgião abre a barriguinha da menina e encontra um bom pedaço do esôfago caído lá em baixo e emenda com o pedaço de cima. Nove dias depois, a criança começa a tomar leite materno.
Quem salvou a vida da menina: a medicina ou a misericórdia divina?
19 de julho de 1995
Nasce nosso oitavo neto. É uma menina. Os pais dão o nome de Clara, o que me traz uma pequena dificuldade, pois não consigo pronunciar o “ele” entre uma consoante e uma vogal. Vou ter que chamá-la de Crara a vida inteira.
Antes, eu e Djanira oramos várias vezes pela gravidez da mãe e pela criancinha em formação, lembrando-nos sempre da descrição que Davi faz da admirável evolução da “substância ainda informe” até atingir, de “modo assombrosamente maravilhoso”, em exatos nove meses, o corpinho tão completo que pode sobreviver fora do útero materno (Sl 139.13-18).
Minutos antes da menininha nascer, oramos com os pais, no hospital mesmo. Depois da cesariana, deu para ver Clarinha nos braços da pediatra, no trajeto entre a sala de cirurgia e o berçário.
20 de julho
Fazemos, avós e tios, uma rápida visita à mãe e à filha. A danadinha mama e regorgita. É gulosa demais.
21 de julho
Mãe e filha têm alta do hospital às 8 horas da manhã. Às 15 horas as duas voltam para o hospital porque Clara continua vomitando o que mama. Uma pequena preocupação toma conta da família.
22 de julho
No Centro Evangélico de Missões (CEM), ouço a palestra de Juan Stam sobre A Nova Criação. Ele lê Isaías 65.17-25. O verso 20 chama muito a minha atenção por causa da Clara: “Não haverá mais criança para viver poucos dias”.
Estava ouvindo a palestra seguinte, quando alguém me chama. É um recado da Djanira: a radiografia de contraste que a médica mandou tirar revela que Clara nasceu com atresia de esôfago. Precisa ir para Belo Horizonte para ser operada com a maior urgência possível.
Rapidamente conseguimos uma ambulância e nos dirigimos, Marcos e eu, para a Santa Casa de Misericórdia da capital mineira. A médica vai junto com Clara, cuidando do oxigênio e do soro.
Depois de três horas de viagem chegamos à Santa Casa. Vamos direto para a UTI infantil, onde deixamos a criança. Quando a vi com a barriga inchada e meio esverdeada e abatidinha, me emociono muito e perco a voz. Marcos prefere sair da sala. A médica de plantão me vê naquele estado e me “pastoreia”, dizendo: “Existe um Papai do Céu lá em cima”. Quando consigo falar, agradeço a palavra dela e digo à médica que eu conheço e sirvo este Deus.
Marcos volta para Viçosa para cuidar da esposa e do pequeno André. Ele é mais necessário lá do que aqui. Quanto a mim, fica resolvido que eu permaneça em Belo Horizonte para visitar Clara todos os dias e deixar a família informada de tudo por telefone.
Alugo um quarto no 21º andar do Square Apart Hotel, o mais próximo do hospital. Faço deste quarto a minha torre de vigia. Cá de cima dá para ver todo o prédio da Santa Casa. No terceiro andar está a minha querida netinha, nas mãos de Deus. Oro de joelhos em favor de Clara algumas vezes.
23 de julho
Dou graças a Deus porque Gínia não insistiu nas mamadas. Se Clara tivesse mamado demais, o leite se misturaria com as secreções gástricas do estômago e inundaria os pulmões, provocando uma pneumonia aspirativa. Dou graças porque a pediatra Denise Cristina Rodrigues, amiga de Gínia e Marcos há vários anos, acertou em cheio com o diagnóstico muito rapidamente, o que concorre para a sobrevivência de Clara. Dou graças porque todos nós temos verdadeira comunhão com Deus, o que nos ajuda tremendamente nesta hora quando corremos o risco de perder um ente querido, experiência inédita até então.
Entro na UTI infantil, e me aproximo do berço de Clara. Ela está só de fralda, peito desnudo, muito bonitinha. A menina está ligada a vários aparelhos. Fico parado. Não conversamos. Ela não sabe falar e, se soubesse, não poderia falar naquele estado. Não agüento. Não dou escândalo, mas perco a voz outra vez.
A médica me explica que Clarinha será operada logo que suas condições físicas o permitam. A cirurgia será um sucesso se o espaço em falta do esôfago não for muito grande. Aí é só esticar as duas extremidades e emendar uma na outra. Se o vão for grande demais, o ligamento terá que ser feito com o implante de algum tecido do corpo, mas tal operação só poderá ocorrer quando ela tiver 15 quilos ou dois anos. Até lá qualquer alimentação terá que ser encaminhada diretamente ao estômago por um tubo.
Ligo para Marcos e Gínia e dou todas as notícias. Do alto de minha torre de vigia, faço minha oração: “Ó Deus, recompõe o esôfago de Clara”. Repito várias vezes esta súplica, na certeza de que Deus tem poder para fazer tal coisa, se esta for a sua vontade.
À tarde faço minha segunda visita à Clara. A médica me diz que eu posso tocar a criança. Seguro o pezinho, a mãozinha. Não sei se ela sente, se ela registra em seu histórico emocional estes pequenos afagos do avô.
Volto à minha torre de vigia, volto a telefonar para Viçosa, volto a suplicar: “Ó Deus, recompõe o esôfago de Clara”.
A cirurgia de Clara deve ser amanhã pela manhã. Não sei como Deus vai ouvir as orações de Marcos e Gínia, da parentada toda e de muitos queridos irmãos e amigos. Ele vai recompor o esôfago de Clarinha através de uma intervenção sobrenatural ou através de uma intervenção cirúrgica?
24 de julho
Leio o capítulo 27 de Isaías. Os versos 2 e 3 chamam muito a minha atenção: “Naquele dia dirá o Senhor: Cantai a vinha deliciosa! Eu, o Senhor, a vigio e a cada momento a regarei; para que ninguém lhe faça dano, de noite e de dia eu cuidarei dela”. A passagem é tão bonita e apropriada que eu resolvo ligar para Marcos e Gínia. Marcos atende. Digo-lhe que eu gostaria que eles lessem Isaías 27.2 e 3. Marcos responde que ele e Gínia também queriam ler um texto para mim, uma passagem que uma moça da igreja havia encontrado por acaso e passado para eles com o propósito de encorajá-los mais ainda. Quando Marcos abriu a Bíblia para ler o referido texto, percebeu, muito surpreso, que era o mesmo que eu estava citando no telefone. Também fico surpreso com a coincidência.
Faço minha terceira visita à danadinha. Ela não está no centro cirúrgico como pensava. A operação foi adiada para amanhã porque há uma criança cujo estado é mais grave que o de Clara. Além disto está havendo uma greve de anestesistas. Vou à UTI e fico com Clara alguns momentos. A pedido de Gínia escrevo num papel os versículos de Isaías 27.2 e 3 e colo no berço aquecido em que ela se encontra.
Faço a quarta visita às 2 horas da tarde e à noite me encontro com a Dra. Márcia Leitão, que me adianta que a cirurgia deverá ser feita amanhã mesmo. Antes de dormir, oro outra vez: “Ó, Deus, recompõe o esôfago de Clara.”
25 de julho
Dou graças pelos profissionais ligados à área de saúde, Agradeço a Deus os medicamentos, a engenharia médica, as técnicas cirúrgicas, o avanço das ciências médicas. Dou graças também pelo SUS — Sistema Único de Saúde, e peço a Deus que ele se estenda a todo o país e a todas as pessoas, sem complicações e sem burocracia, especialmente aos mais pobres, para aliviar a dor dos que sofrem. E que, apesar da rotina cansativa, médicos e enfermeiros tratem cada caso com humanidade, com amor, como estão fazendo com Clara e com as crianças mais pobres que ela, de acordo com o que eu observo na UTI infantil. Se não fosse o SUS, Clara, a rigor, não estaria aqui. Cada dia na UTI é uma fortuna.
Às 10h30 estou na sala de espera do centro cirúrgico. Estão abrindo a barriguinha de Clara para tentar achar um pedacinho do esôfago em baixo para emendar com a parte de cima. E se não houver esse pedacinho? “Ó Deus, recompõe o esôfago de Clara, para a comida passar da boca para o estômago, e ela não morrer.”
Às 12 horas e pouco, a equipe sai do centro cirúrgico em direção ao elevador, passando pela sala de espera. A netinha está toda coberta numa cama sobre rodas. Vejo só a cabecinha dela.
O cirurgião me diz que a operação foi um sucesso. Clara tinha um bom pedaço de esôfago caído lá em baixo e não foi necessário nem sequer esticar as duas partes. Apenas emendaram uma na outra. E também fecharam o buraco entre o esôfago e a traqueia. “Ó Deus, obrigado por teres recomposto o esôfago de Clara.” O médico me avisa que ainda há alguns riscos sérios, como infecções pós-operatórias e o estreitamento do esôfago na altura da emenda. “Ó Deus, alarga o esôfago da tua serva e livra-a de infecções.”
Vejo Clara mais duas vezes, no horário regular de visita às duas da tarde e, por concessão especial da médica de plantão, às sete da noite.
26 de julho
Às dez horas faço minha oitava visita à Clara. Ela está mais abatidinha e mais branquinha. Precisa ou precisou de transfusão de sangue.
Marcos chega de Viçosa para ver a filhinha operada. Vamos juntos à Santa Casa para a visita das duas horas da tarde. O genro afixa no berço uma foto da família (ele, Gínia e André) e duas mensagens escritas. Uma é para o pessoal da UTI e diz assim:
“Eu sou Clara. Nasci no dia 19 de julho às 16h40. Tenho um irmãozinho de dois anos, chamado André. Meu pai se chama Marquinho e minha mãe, Gínia. Somos muito gratos a todos vocês pelo cuidado e carinho!”
No rodapé há uma citação de Jesus: “Em verdade afirmo a vocês que sempre que atenderam a um destes pequeninos irmãos, a mim atenderam” (Mt 25.40).
A outra é para a netinha:
“Clarinha, você é do Papai do céu e de nós todos. Amamos muito você. Estamos esperando você com muita festa! Mamãe, papai, André, vovôs, vovós, titios, titias, priminhos e priminhas, e muitos amigos que estão longe ou perto orando por você.”
Este é o oitavo dia de vida de Clara.
27 de julho
Antes de regressar a Viçosa para ficar ao lado de Gínia e André, Marcos volta ao hospital e eu vou com ele. É a minha décima visita à Clara.
A médica de plantão conversa longo tempo com Marcos. Diz que vai tudo muito bem. Explica que Gínia não deve tomar nada para impedir a produção do leite materno, pois breve Clara vai precisar dele.
Faço mais duas visitas à Clara: às 14 e às 20 horas. Destas vezes sem a companhia de Marcos, de volta a Viçosa. Beijo o pezinho dela.
28 de julho
Este é meu penúltimo dia em Belo Horizonte. Faço minha costumeira visita à Clara. Quase todos os aparelhos já foram desligados. Lembro-me do senador Darci Ribeiro, que fugiu da UTI onde estava internado e escreveu um artigo contra esses mesmos aparelhos. Na época dei alguma razão ao senador, mas agora, não.
A danadinha está esperta como nunca. Mexe demais. Foi preciso prender os bracinhos com esparadrapo na caminha para evitar que ela retire os tubos pelos quais se alimenta. A menina está doida para mamar. Mexe com os músculos dos lábios como se estivesse ao seio da mãe. Chora alto. A enfermeira pinga uma gotinha de glicose na boca e ela pára de chorar.
Djanira chega de Viçosa às 13h20. Preparo uma sopa Knorr para ela e vamos para a visita da tarde. É a primeira visita da avó e a 14ª do avô. Bato uma foto das duas. Sessenta e três anos separam uma da outra. Até então, Djanira estivera ao lado da filha e do outro neto nesta conjuntura especial.
29 de julho
Gínia, já com os pontos da cesariana retirados, e Marcos chegam cedo de Viçosa. Vamos todos ao hospital, mas eu e Djanira não entramos na UTI, para o casal ficar a sós com a criança. Gínia se comove. É a primeira vez que vê a filha depois do internamento dela em Belo Horizonte.
Deixo a minha torre de vigia no Square e volto com Djanira para Viçosa. Gínia agora está em condições de permanecer em Belo Horizonte. Clarinha precisa muito mais dela do que do avô. É também possível que daqui a dois ou três dias ela já possa mamar sem fazer voltar o leite materno, graças à recomposição de seu esôfago.
Sou obrigado a me lembrar de uma outra cirurgia muito mais dolorosa e muito mais eficaz, aquela que custou a vida de Jesus Cristo e recompôs pelo sangue de Jesus o novo e vivo caminho que nos leva à presença de Deus (Hb 10.19-22).
>> Artigo publicado originalmente na edição 237, da revista Ultimato.
Nota da neta:
Descobri que minha veia jornalística é ainda mais curta do que eu imaginava.
Em julho de 95 meu avô escrevia esse “Diário de emergência do avô de Clara”, com relatos sobre a sua neta que mal havia saído do útero e já estava internada em um hospital em BH. Vinte e um anos mais tarde a situação se inverte: ele no hospital e a neta com a tarefa de transmitir os relatos.
Mas o ofício do jornalista não é hereditário e as palavras “diário” e “emergência” não cabem no meu relógio atrasado. Precisei de um ano inteiro pra perceber que o Diário de emergência da neta de Élben existia. Não, não no papel, era um diário mental. As memórias foram cuspidas uma atrás da outra, não pela notícia – já não eram notícia – mas pela necessidade.
João Eduardo Cruz
Chorei litros, que homem sensível a Deus era o Rev.
Deus te abençoe Clara!!
Marcia borges machado
Muito emocionada…. Linda homenagem! Saudades e admiração pelo Rev.Elben. Nesse diario ele descreveu os fatos ocorridos naqueles dias com preciosismo e sensibilidade. Parece que foi ontem. Sinto-me honrada em fazer parte dessa historia como uma daquelas plantonistas que confortou o avô e cuidou da bebezinha; que se curou cresceu e se tornou uma escritora tao sensivel. Parabens Clara!