A história por trás das 95 teses de Lutero
Livro da Semana | Conversas com Lutero – História e Pensamento
Lutero não afixou as suas 95 teses*
> Uma entrevista com o Reformador
Repórter – O doutor começou a ganhar notoriedade na Alemanha por conta das famosas Noventa e Cinco Teses, escritas em latim. O que o senhor chama de tese?
Lutero – A palavra tese é originalmente uma palavra grega (thésis), que significa, ao pé da letra, o “ato de pôr”. Nesse sentido, tese e proposição são sinônimos. Eu preparei um trabalho sobre a questão das indulgências por meio de frases curtas e enumeradas. Cinco delas têm apenas duas linhas em letras de imprensa. A maior parte tem três e quatro linhas (é o caso de 76 proposições). A maior de todas tem apenas oito linhas.
Repórter – Qual era a sua idade na época?
Lutero – Dez dias depois de tornar conhecidas as 95 teses, comemorei meu 34o aniversário.
Repórter – Segundo eu saiba, parece que o doutor já tinha escrito uma outra coleção de teses.
Lutero – De fato, dois meses antes, entre 21 de agosto e 4 de setembro daquele mesmo ano (1517), eu havia escrito 97 teses a respeito da teologia escolástica — aquele conjunto de doutrinas e sistemas teológico-filosóficos que até então exerceu uma grande influência sobre a Igreja.1 No meu entender, a teologia precisava ser libertada, sobretudo da ditadura de Aristóteles, aquele palhaço que, com sua máscara grega, tanto enganou a Igreja, como escrevi ao meu amigo João Lang, de Erfurt. Nosso compromisso com o famoso filósofo, que nasceu quase quatro séculos antes de Cristo, era tão grande que se dizia entre nós que sem Aristóteles ninguém se tornaria teólogo. Então eu afirmei o contrário: Ninguém se torna teólogo a não ser sem Aristóteles (44a tese). Pois Aristóteles está para a teologia como as trevas estão para a luz (50a tese).
Repórter – Julgava que essa primeira coleção de teses era para a Universidade de Wittenberg conferir o grau de bacharel em Estudos Bíblicos ao seu aluno Francisco Günther.
Lutero – Essa foi a primeira finalidade das Teses sobre a Teologia Escolástica (Disputatio Contra Scholasticam Theologiam). Sob minha presidência, como decano da Faculdade de Teologia de Wittenberg, uma banca de professores ouviu o candidato Francisco Günther a respeito do assunto e lhe conferiu, por unanimidade, no dia 4 de setembro, o desejado título.
Repórter – Suas proposições de setembro foram bem recebidas?
Lutero – Mandei cópias dessas teses para meus ex-professores da Universidade de Erfurt e também para Nuremberg. Coloquei-me à disposição para ir a Erfurt e discutir publicamente o assunto. Mas eles não me responderam diretamente e me taxaram de arrogante e precipitado. Soube, todavia, que, entre os jovens, minhas teses foram recebidas como um ato de libertação das verdades bíblicas de seu cativeiro aristotélico-escolástico. Isso me foi suficiente.
Repórter – Deixemos de lado as 97 teses de setembro e voltemos para as 95 teses de outubro. Se as primeiras foram contra a escolástica, as segundas foram contra o papa?2
Lutero – Não necessariamente contra o papa, mas contra o mercado das indulgências. Trato o Santo Padre com respeito. Digo que, se o papa tivesse conhecimento da traficância dos apregoadores de indulgência, ele mesmo preferiria ver a basílica de São Pedro ser reduzida a cinzas a ser edificada com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas (50a tese). Afirmo também que são inimigos de Cristo e do papa aqueles que por causa da prédica de indulgências proíbem a Palavra de Deus nas demais igrejas (53a tese). Naquela época eu ainda era muito ingênuo e até acreditava que teria o apoio do papa para combater tamanha simonia.
Repórter – Mas, na 86a tese, o doutor afirma que a fortuna do papa é maior do que a de qualquer Creso, o poderoso rei da Líbia, e que ele deveria construir a basílica de São Pedro com dinheiro de seu próprio bolso e não com o dinheiro dos cristãos pobres…
Lutero – Talvez tenha exagerado um pouco. Todavia, todo mundo sabe que de alguns anos para cá a Igreja perdeu por completo aquele estilo de vida simples da era apostólica e dos primeiros séculos de sua história. Há mais de trezentos anos, desde quando recebemos dotações em quantidade excessiva nos séculos 11 e 12, adotamos uma cristocracia de dinheiro e propriedade. Atualmente, muitos abraçam a carreira eclesiástica não por vocação nem para servir a Deus, mas para possuir parte dos bens e do poder da Igreja. Os papas portam-se como príncipes seculares e mantêm relações políticas com outras potências. O bispo, em geral, é um absenteísta inveterado: deixa sua diocese para servir ao rei ou para fazer carreira na corte pontifícia. Temos bens demais e poder espiritual de menos.3 Não faz muito tempo, o clero da Inglaterra, com um por cento da população, dispunha de 25 por cento do produto interno bruto. Em algumas partes da França e aqui da Alemanha, a Igreja possui entre um terço e metade de todos os imóveis. Nossa imagem é financeira, não espiritual. A Igreja tem inventado muitas maneiras de levantar dinheiro, inclusive as tristes famosas taxas mortuárias. Quando os fiéis morrem sem pagar todos os seus dízimos, a família do morto é obrigada a passar para a Igreja sua segunda melhor propriedade como compensação. Outro dia, alguém afirmou, com justiça, que os curas têm mais amor às mortuárias que às próprias vidas.4
Repórter – E quanto ao comércio de indulgências? Seria outra invenção da Igreja para obter dinheiro?
Lutero – Não resta a menor dúvida. As indulgências têm destacada importância sob o aspecto financeiro. A Cúria e o Estado papal dependem em grande parte das rendas auferidas com esse mercado.
Repórter – Por que o povo compra as indulgências?
Lutero – Porque os fiéis veem na indulgência uma oportunidade de se protegerem do purgatório e do juízo eterno. Em alguns casos, os pregadores de indulgência dão sermões horrorizantes sobre o fogo do inferno por razões óbvias. Acontece, então, o perfeito casamento entre a vontade de vender e a vontade de comprar.
Repórter – O doutor se refere a João Tetzel?
Lutero – Esse homem morreu aos 54 anos, em 1519, dois anos depois das 95 teses. Ele era meu conterrâneo e pertencia à ordem fundada por São Domingos no despontar do século 13. Dedicou os últimos 15 anos de sua vida à pregação e à venda de indulgências. Foi também inquisidor para a Polônia e Saxônia. João Tetzel garantia a plenos pulmões que “a alma sai do purgatório no preciso momento em que a moeda ressoa na caixa”.
Repórter – Então os certificados assinados e promulgados pelo papa e vendidos pelos pregadores de indulgências beneficiam também os mortos?
Lutero – Os breves de indulgência promovem a remoção da culpa daquele que ainda está vivo e daquele que já morreu. No primeiro caso, o fiel adquire a indulgência para si; no segundo, para alguém da família ou de seu círculo de amizade que não está mais entre os vivos. A indulgência se apoia numa doutrina solidamente arquitetada: em virtude da comunhão dos santos e da reversibilidade dos méritos, a Igreja se considera uma espécie de banco espiritual. Ela ajunta todo o excedente dos méritos de Cristo e dos santos e vende esse tesouro para os que precisam dele. Em outras palavras: a igreja ensina que alguns santos que já morreram fizeram mais obras boas do que as necessárias para se salvarem. Então, ela administra esse excedente em benefício de outros pecadores ainda em débito diante de Deus, por meio das indulgências, que o papa não distribui graciosamente, mas vende.
Repórter – O doutor condena apenas o comércio das indulgências?
Lutero – Deploro tanto o mercado como o esquema das indulgências. Na 52a tese, afirmo que esperar ser salvo mediante breve de indulgência é vaidade e mentira, mesmo se o comissário de indulgências e o próprio papa oferecessem suas almas em garantia. Numa tese anterior (36ª), eu já havia explicado que todo cristão que se arrepende verdadeiramente dos seus pecados e sente pesar por ter pecado, tem pleno perdão da pena e da dívida, mesmo sem ter adquirido seu breve de indulgências.
Repórter – Se alguém lhe solicitasse a menção de uma só das 95 teses como resumo de tudo, que proposição o doutor citaria de imediato?
Lutero – A 62a tese: O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo evangelho da glória e da graça de Deus.
Repórter – Por que o povo não lança mão desse tesouro e abandona as indulgências?
Lutero – O verdadeiro tesouro é muito desprezado e odiado porque faz com que os primeiros sejam os últimos (63ª tese), enquanto que o tesouro das indulgências é notoriamente o mais apreciado porque faz com que os últimos sejam os primeiros (64ª tese).
Repórter – Ouço falar que o doutor afixou ostensivamente com prego e martelo as 95 teses à porta da Igreja de Wittenberg, pouco depois do meio-dia de 31 de outubro de 1517. É verdade?
Lutero – É lenda. O que eu fiz de fato foi enviar as ditas teses ao arcebispo Alberto de Mogúncia, comissário dos indultos, um jovem de apenas 27 anos, e ao meu bispo diocesano Jerônimo Schulz, de Brandemburgo.5
Repórter – No dia 31 de outubro?
Lutero – Sim, no dia 31 de outubro de 1517, na véspera do Dia de Todos os Santos.
Repórter – Por que não incluiu o dominicano João Tetzel entre os destinatários das teses?
Lutero – Não valeria a pena gastar mais tinta e papel com esse mercenário. Mas ele não demorou a ler o material, pois eu o fiz publicar e espalhar, depois de esperar em vão alguma reação dos bispos.
Repórter – Houve algum reboliço em Wittenberg com a publicação das teses?
Lutero – Em toda a Alemanha e, pouco depois, em toda a Europa. Elas foram imediatamente traduzidas para várias línguas. Primeiro para o alemão, e depois para o espanhol, o holandês e até para o italiano. O doutor em teologia Conrado Wimpina, professor e reitor da Universidade de Frankfurt, escreveu em nome de João Tetzel 156 teses e antíteses em defesa das indulgências e da autoridade papal, em janeiro de 1518. Nessa mesma cidade, o cabeça-dura dominicano, armou um cadafalso e nele queimou minhas teses, dizendo que o autor delas teria a mesma sorte…
Repórter – A intenção do doutor era causar uma ruptura na Igreja?
Lutero – Dou a minha palavra de que não tinha essa intenção. Ao contrário, eu queria que o papa tomasse as devidas providências para acabar com o escandaloso abuso das vendas das indulgências. Aliás, a essa altura, eu ainda não conhecia toda a amplitude dos males que assolavam a Igreja. Até então, eu chamava o Santo Padre de “cordeiro entre lobos”. Não me dei conta que eu estava mexendo numa caixa de marimbondos. O Senhor Jesus é testemunha de que eu, bem consciente de minha própria miséria e indignidade, desde muito estava protelando o que naquele mês de outubro cumpri com ousadia. Não me era possível calar mais tempo diante daquela situação.
Repórter – Foi para evitar essa ruptura na Igreja que o doutor não afixou literalmente as teses na Igreja de Wittenberg, como dizem por aí?
Lutero – Se eu tivesse feito isso, não teria dado tempo aos bispos para responder.
Repórter – Mas eles não lhe responderam…
Lutero – Certo. Mas eu fiz a minha parte. O que eu mais queria era uma reforma de dentro para fora.
Repórter – O papa Leão X tomou alguma providência contra o doutor a propósito de suas teses?
Lutero – O papa foi informado de tudo pelo arcebispo Alberto de Mogúncia, mas, a princípio, não se preocupou demasiadamente com o assunto. Deixou o problema nas mãos da ordem dos monges agostinianos, a qual eu pertencia. Em abril de 1518, eles me chamaram a Heidelberg, me ouviram e apoiaram. Isso trouxe um grande embaraço para o papa, que, então, resolveu tomar o caso em suas mãos. Fui chamado a Roma, mas não fui. Então, Leão X enviou à Alemanha o recém-nomeado cardeal Tomás de Vio, mais conhecido como Caetano, na esperança de me fazer calar e me desculpar por ter escrito as Noventa e Cinco Teses. Caetano deixou bem claro que a paciência do papa estava quase no fim e que terríveis castigos já estavam a caminho. Todavia eu não capitulei. No mês seguinte, escrevi uma carta ao Beatíssimo Pai, Leão X, o Sumo Pontífice, dando-lhe conhecimento da minha não-retratação e colocando-me à disposição dele para o que desse e viesse: “Prostrado aos pés de Vossa Beatitude, ofereço-me com tudo o que sou e tenho”.
Repórter – Parece que o doutor publicou um livro sobre as indulgências.
Lutero – Trata-se do volume Explicações do Debate sobre o Valor das Indulgências (Resolutiones Disputationum de Indugentiarum Virtute), publicado em agosto de 1518, dez meses depois das Teses. Nesse livro, de 127 páginas, eu explico cada uma das 95 teses, fundamentando-as teológica e juridicamente. Pela primeira vez na vida usei a palavra reforma no que diz respeito à Igreja.
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