A magia dos vitrais cristãos
Versão ampliada do artigo publicado na seção Arte e cultura, da Ultimato 366.
Por Armindo Trevisan
Só é possível compreender o surgimento da técnica do vitral, de sua evolução estética, e de sua utilização maciça nas catedrais góticas, quando evocamos uma das principais características do imaginário cristão: a obsessão pela luz.
Semelhante obsessão derivou da Bíblia.
No Livro do Gênesis lê-se:
No princípio, quando Deus criou o céu e a terra, a terra era um caos sem forma nem ordem. Era um mar profundo coberto de escuridão; e um vento fortíssimo soprava na superfície das águas. Então Deus disse: “Que a luz exista!” E a luz começou a existir.[1]
A luz foi considerada pelos medievais o atributo divino por excelência. Francisco de Assis dedicava particular afeição ao fogo. A luz era, também, apreciada pela sociedade medieval por uma razão sócio-ambiental: as pessoas viviam literalmente na rua, à luz do sol, não conhecendo outra forma de iluminação senão a do fogo.
O fogo obteve, inclusive. seu lugar nos rituais cristãos. Um dos mais belos momentos da liturgia cristã é a liturgia do Sábado Santo, em cuja noite o fogo é “extraído da pedra” – para significar a vitória de Jesus sobre a morte, visto que o Salvador saiu vivo do sepulcro, onde o tinha depositado José de Arimatéia. Nessa mesma noite é acendido o Círio Pascal, símbolo de Cristo. Durante sua veneração unto ao altar, canta-se o texto mais poético da liturgia católica, o Exultet. Os versos finais deste hino são de um lirismo ingenuamente cósmico: “O círio que acendeu as nossas velas/ possa esta noite fulgurar! Misture sua luz à das estrelas, cintile quando o dia despontar.”
Além do imaginário bíblico derivado do Antigo Testamento, existe um imaginário cristão específico, que valorizou, de modo especial, as palavras de Jesus: “Eu sou a luz do mundo”.
A simbologia da luz adquiriu relevância singular nos textos do Pseudo-Dionísio Areopagita, monge bizantino que viveu entre 482 e 530 d.C., cuja obra Sobre a Hierarquia Celeste forneceu as bases de uma “Teologia da Luz”, e também de uma Estética da Luz.
Mais tarde, no século XII, o grande Abade Suger (1085-1151), monge que dirigia a Abadia Real de Saint-Denis, tornou-se um grande divulgado das teorias místicas do Pseudo-Dionísio. Mandou por isso traduzir a obra anteriormente citada. Suger é considerado o “Pai da Arquitetura Gótica”, por ter construído o primeiro exemplo desse estilo, a Basílica de Saint-Denis nos arredores de Paris. Notemos que Suger herdara de seus ancestrais bárbaros a paixão pelos metais preciosos e pelas pedrarias. O que o Abade sentia por elas pode ser intuído no seguinte texto de sua autoria: ”Pelo efeito do prazer que me causa a beleza da casa do Senhor, o encanto das gemas multicores me faz esquecer as afeições externas, e uma pura meditação me induz à reflexão sobre a variedade das virtudes sagradas,de modo que o material é transferido ao imaterial (…) Sob certo sentido, o Abade substituiu o brilho dos metais e das pedrarias pelo brilho dos vitrais, com os quais inundou entre 1144-1145, sua Basílica. Devido aos seus vitrais, a Basílica de Saint-Denis foi até chamada de “gaiola de vidro”. Suger foi o inventor de um tema,que teve grande aceitação entre os vitralistas, o da Árvore de Jessé, cujo exemplar mais belo é o da Catedral de Chartres ( de 8,40 m alt.x 3,80 m larg). Os vitrais de Suger podem, ainda hoje, ser apreciados na sua Basílica em Saint-Denis, cidade que ultimamente se tornou famosa por seu Stade de France, uma espécie de Maracanã francês, com capacidade para 80.000 pessoas.
A técnica do vitral preexistia à Idade Média. Supõe-se que já existiam vitrais na Basílica de Santa Sofia, em Constantinopla, hoje Istambul. A mais antiga figura humana, pintada num vitral, é uma cabeça do século IX, que pertence ao Museu de Darmstadt, à qual segue, cronologicamente, a cabeça do Cristo de Wissembourg, do Museu da Strassbourg, anterior provavelmente ao ano 1060. O primeiro conjunto de vitrais conservado é o do Catedral de Augsburg, na Alemanha, constituído de cinco figuras de profetas, datadas aproximadamente de 1100.
A formula básica do vitral foi-nos transmitida pelo Monge Teófilo no seu “Tratado das Diversas Artes” do século IX. A fórmula é aparentemente simples um terço de areia de água pura; um terço de cinzas de faia; e um pouco de sal para facilitar a fusão. Por causa da madeira e da areia, os ateliês situavam-se junto às florestas, nas proximidades dos regatos.
O vidro era obtido a uma temperatura de 700 ou 800 graus, e reduzido a placas. Para se obterem as cores desejadas, os artesão adicionavam à massa vítrea uma série de óxidos metálicos à base de cobre (para o vermelho), de ferro e manganês (para o amarelo) e de cobalto para o azul. Em Chartres, o azul teria sido obtido mediante safiras moídas, e o púrpura com adição de ouro puro. A espessura dos vidros variava de 2 a 6 mm. Grande parte da magia dos vitrais é devida a imperfeições técnicas e à irregularidades da própria fusão, como bolhas de ar, ou à presença de minúsculos grãos de areia na massa. Cada cor era representada por um só fragmento de vidro colorido. Em cada metro de vitral encaixavam-se de 350 a 450 pedaços de vidro.
Para se avaliar a importância artística, religiosa e social e social dos vitrais, é preciso retroceder oito séculos. Nos séculos XII e XIII, somente os clérigos sabiam ler. Os fiéis compensavam o próprio analfabetismo lendo os vitrais, isto é, deixando-se orientar mentalmente pelas narrativas representadas neles, ou por sua simbologia alegórica, que era explicada nos púlpitos.
Nesse período os vitrais exerceram nas catedrais a mesma função do mosaicos nas igrejas bizantinas, e das pinturas murais nas igrejas românicas.
Os vitrais pioneiros da Basílica de Saint-Denis foram seguidos pelos vitrais das seguintes catedrais: Chartres (de 1200 a 1240; nesta catedral existem atualmente 152 dos vitrais originais do século XIII), Poitiers, Bourges, Rouen (onde se encontra o único vitral assinado da Idade Média: Clemente), Sens, Laon, Soissons, Troyes, Notre-Dame e Sainte Chapelle em Paris, Tours, Le Mans, Angers, Beauvais, Reims, Clermont-Ferrand, Strassbourg.
As mais ricas coleções podem ser contempladas em Chartres, Bourges, Le Mans, Poitiers, Sens, e Paris.
• Armindo Trevisan é professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e autor do livro: O Rosto de Cristo. A Formação do Imaginário e da Arte Cristã. Porto Alegre, Editora AGE, 2003.
[1] Gênesis.1,1-3. Bíblia Sagrada. Tradução Interconfessional do hebraico, do aramaico e do grego em português corrente. Lisboa, Sociedade Bíblica de Portugal, 1993. p.1.
Nilsa Alves de Melo
Que texto lindo, esclarecedor, formativo e informativo! Muito Obrigada!
Aprecio, amo, tenho prazer em ler a ULTIMATO. Todos os seus artigos. Só enriquecem.
Não são fechados, distantes. Nada de “eu sou o salvo, você, não”.
Gosto quando citam a Igreja, em cuja fé nasci, e a citam com carinho, merecimento.
PARABÉNS! Gostaria de conhecê=los.