Livro da Semana   |   John Stott

 

O pluralismo se deve, principalmente, a três fatores: o declínio da igreja como instituição, o crescimento de religiões alternativas e a fragmentação da natureza da crença.

 

O que faremos sobre isso?

As duas respostas mais comuns a essa pergunta retratam extremos opostos. Uma é a imposição, a forte tentativa de coagir as pessoas a aceitarem o estilo de vida cristão por meio das leis. A outra é a laissez-faire*, a decisão derrotista de deixar as pessoas em paz e não interferir ou não tentar influenciá-las de modo algum. Precisamos olhar cuidadosamente para essas alternativas, junto com alguns exemplos históricos, antes de irmos para a terceira e melhor opção.

IMPOSIÇÃO

Aqui estão cristãos com um zelo por Deus louvável. Eles acreditam na revelação divina e se importam profundamente com a verdade e com a vontade de Deus reveladas nas Escrituras. Eles anseiam por ver a sociedade refletindo isso. Assim, o desejo de conseguir esse fim por meio da força é uma tentação compreensível. Um exemplo disso foi a Inquisição, que começou em 1252 e durou 300 anos. Durante esse tempo, a Igreja Católica Romana procurava aqueles que eram considerados hereges e, usando a tortura e outros meios coercivos, tentava fazer com que eles confessassem as heresias. Caso não confessassem, eram levados a julgamento e depois eram mortos, muitas vezes na fogueira. Hoje ficamos envergonhados de tais métodos, com razão, pois são incompatíveis com a fé cristã. Já mencionei a incompatibilidade de qualquer regime autoritário com o cristianismo e a Inquisição é um outro exemplo disso.

Porém a política de imposição é inaceitável para aqueles que defendem uma doutrina bíblica dos seres humanos. Deus fez o homem e a mulher para serem responsáveis. Deus disse a eles para serem frutíferos, isto é, exercerem seus poderes de procriação, para subjugarem a terra e dominarem suas criaturas, para trabalharem, descansarem e para obedecê-lo – “façam isso”, “não façam aquilo”. Todas essas prescrições não teriam sentido se Deus não tivesse dotado a raça humana de dois dons singulares – a consciência, para discernir alternativas diferentes, e a liberdade, para escolher uma entre elas. Todo o resto da Bíblia confirma isso. Em toda a Bíblia, os seres humanos são considerados seres morais, responsáveis por suas ações. Eles conhecem as exigências da lei moral, uma vez que elas estão “gravadas em seu coração” (Rm 2.14-15). Eles são exortados à obediência e advertidos das penalidades da desobediência, mas nunca coagidos. Nenhuma coerção é usada, somente a persuasão, por meio de argumentos: “‘Venham, vamos refletir juntos’, diz o Senhor” (Is 1.18).

Você não pode forçar as pessoas a acreditar no que elas não acreditam ou a praticar o que elas não querem praticar. Seria semelhante a imaginar, hoje, que podemos forçar as pessoas a terem convicções e padrões cristãos na Europa, o que é totalmente fora da realidade. É um desejo tolo e nostálgico de ter uma cristandade que há muito tempo já desapareceu.

LAISSEZ-FAIRE

O oposto à imposição, sugiro que seja o laissez-faire. O termo foi usado originalmente no século 18, relacionado aos economistas que defendiam o livre comércio, e foi um conceito importante no debate econômico e na definição de diretrizes políticas do século 19. Ele expressava uma crença no princípio da não interferência do governo na economia.

Em nossa era pós-moderna, existe uma confusão tão grande entre tolerância e laissez-faire que algumas vezes acredita-se que discordar de alguém é ser intolerante com a pessoa. Considera-se que todas as cosmovisões estão em igualdade e que, portanto, nenhuma perspectiva tem o direito de achar que é mais correta do que uma outra. Contudo, como já mencionei, se os cristãos acreditam que Deus revelou a verdade em Jesus Cristo, então assumir essa posição não é uma opção. O que tem acontecido é que a verdadeira tolerância, que respeita outros pontos de vista enquanto discorda deles, tem se tornado uma tolerância falsa, ou vazia, que não se importa em se envolver e então se iguala à indiferença. Também é importante destacar que, em muitas ocasiões, aqueles que se dispõem a ser tolerantes com todas as outras perspectivas acabam sendo intolerantes com as perspectivas cristãs e terminam, com isso, por entregar o jogo.

Os cristãos devem ser tolerantes com as opiniões dos outros e devem mostrar respeito a todas as pessoas. Devem também ser socialmente tolerantes, no sentido de desejarem ver as minorias políticas e religiosas aceitas na comunidade e protegidas pela lei, assim como uma minoria cristã, em um país que não é cristão, espera ser legalmente livre para professar, praticar e propagar o evangelho. Mas como nós, cristãos, podemos ser intelectualmente tolerantes com opiniões que sabemos ser falsas ou com ações que sabemos ser más? Que tipo de indulgência inescrupulosa é essa? Deus não é indiferente a questões de justiça social; assim, como a Igreja pode o ser? Permanecer calado e inerte quando o erro ou o mal está em questão tem consequências muito sérias, pois a opção cristã é colocada de lado pela omissão. Será que nosso país não tem se desancorado e se afastado de seu porto cristão em parte porque a Igreja não tem levantado a voz para Jesus Cristo?

O exemplo moderno mais grave de laissez-faire cristão é a omissão das igrejas alemãs que não levantaram a voz contra o tratamento dado aos judeus pelos nazistas. Tal omissão foi muito bem documentada por Richard Gutteridge em seu livro Open Thy Mouth for the Dumb [Abra tua boca a favor do mundo].3 Depois da Primeira Guerra Mundial, houve várias tentativas de dar um fundamento teológico aos pontos de vista arianos associado ao movimento nacional-socialista. Essas tentativas citavam a necessidade de manter o cristianismo puro e separado de seus elos com o judaísmo. Somente algumas vozes corajosas, como as de Karl Barth e Paul Tillich, ergueram-se em protesto. Enquanto isso, o “movimento dos cristãos alemães”, sob proteção do Partido Nazista, ratificava a visão ariana.

Depois que Hitler chegou ao poder, em 1933, uma lei foi publicada para tirar do serviço civil os trabalhadores que não tivessem descendência ariana e, por mais incrível que possa ser, os “cristãos alemães” envolvidos com a questão racial queriam aplicar esse “requisito ariano” à igreja. Vários sínodos o adotaram, mesmo com a oposição de homens como Martin Niemöller, Walter Künneth, Hans Lilje e Dietrich Bonhoeffer. Apesar de tudo isso, “a igreja evangélica nunca se manifestou oficialmente contra a legislação ariana no geral”. Bonhoeffer ficou profundamente chateado com o silêncio da igreja e frequentemente mencionava Provérbios 31.8: “Erga a voz em favor dos que não podem defender-se”.4

No terrível massacre de novembro de 1938, dezenas de milhares de judeus sofreram de forma horrível nas mãos de Hitler e seus seguidores. O público, em geral, estava aterrorizado e alguns líderes eclesiásticos, então, protestaram. Mas tanto a igreja evangélica quanto a Igreja Católica se mantiveram praticamente mudas. Foi apenas em 1943, dois anos depois do início da “solução final” de Hitler, que uma conferência de líderes da Igreja Luterana resolveu criticar o Reich devido às suas atrocidades antijudaicas. Barth chamou essa omissão da Igreja em não denunciar o antissemitismo de “o pecado contra o Espírito Santo” e uma “rejeição à graça de Deus”.5 Alguns outros líderes eclesiásticos foram igualmente ousados e pagaram caro por sua coragem. Contudo, quando os líderes da igreja evangélica se encontraram, logo depois do final da guerra, publicaram a “Declaração de Stuttgart” e tiveram de reconhecer seu erro: “Acusamos nós mesmos de não termos feito uma profissão de fé mais corajosa”.6 É claro que os líderes da igreja tiveram de assumir sua parcela de culpa, mas não houve, entre o restante do povo cristão, expressão alguma de uma indignação justa. Uma condenação abrangente teria sido levada a sério pela liderança nazista.

A história que Richard Gutteridge conta fala por si. Não precisa de comentários adicionais de minha parte. A cumplicidade dos “cristãos alemães”, que falharam em desenvolver uma crítica bíblica do descarado racismo nazista, deveria ser suficiente para declarar o laissez-faire errado para sempre. Eles não poderiam ter impedido o Holocausto?

PERSUASÃO

Melhor do que os extremos imposição e laissez-faire é a estratégia de persuasão pela argumentação. Essa é a maneira como a mente cristã advoga, pois é resultado natural das doutrinas bíblicas sobre Deus e sobre os seres humanos.

A natureza de Deus

O Deus vivo da revelação bíblica, que criou e sustenta o universo, planejou que os seres humanos que ele fez vivessem em comunidade de forma amorosa. Ele ama todas as pessoas independentemente de sua condição e deseja que elas sejam salvas. Nós também devemos amar os outros. Devemos respeitar os homens e as mulheres, que foram criados à imagem de Deus, procurar a justiça, odiar a injustiça, cuidar dos necessitados, conservar a dignidade do trabalho, reconhecer a necessidade de descanso, manter a santidade do casamento, zelar pela honra de Jesus Cristo e ansiar que todo joelho se dobre diante dele e toda língua o confesse. Por quê? Porque tudo isso é interesse de Deus. Como podemos consentir com aquilo que o desagrada veementemente ou ser indiferente àquilo que tanto o interessa? A política do laissez-faire é inconcebível para cristãos que defendem uma doutrina bíblica de Deus.

O respeito pela consciência

Um fundamento básico para isso é que a consciência humana deve ser tratada com o maior respeito possível. Paulo expressa sua determinação pessoal em “conservar minha consciência limpa diante de Deus e dos homens” (At 24.16). Ele também tem muito a dizer sobre as consciências das outras pessoas. Elas podem ser fortes, ou seja, bem ensinadas e livres, ou fracas, isto é, excessivamente escrupulosas e cheias de dúvidas e preocupações sobre se o que a pessoa faz está certo ou não. Contudo, qualquer que seja a condição da consciência de uma pessoa, ainda que esteja errada, deve ser respeitada. Consciências fracas devem ser fortalecidas e consciências enganadas, ensinadas, mas não deve haver bullying de consciências. Somente em circunstâncias muito extremas, as pessoas devem ser incitadas a agir de modo contrário às suas próprias consciências. Em geral, as consciências devem ser educadas, não violadas. Esse princípio, que surge da doutrina cristã sobre os seres humanos, deve influenciar nosso comportamento e nossas instituições sociais. Essa é a razão pela qual os cristãos se opõem à autocracia e apoiam a democracia. A autocracia esmaga as consciências; a democracia, pelo menos na teoria, respeita-as, pois os governos democráticos obtêm “seus justos poderes do consentimento dos governados”, como afirma a Declaração de Independência dos Estados Unidos.7 No entanto, uma vez que as leis tenham sido promulgadas, seja na democracia ou seja na autocracia, todos os cidadãos ficam sob a restrição das leis, são obrigados a obedecê-las. Eles não podem fazer o que querem. Porém, em questões de grande importância, como o recrutamento militar em tempos de guerra, um governo civilizado permitirá uma oposição consciente. Essa provisão também é fruto de um raciocínio cristão.

Assim, tanto a doutrina bíblica sobre Deus quanto a doutrina sobre os seres humanos guiam nosso comportamento em uma sociedade pluralista, de forma que a primeira descarta o laissez-faire e a última descarta a imposição. Devido a Deus ser quem ele é, nós não podemos ficar indiferentes quando a sua verdade e a sua lei são desrespeitadas, mas, por causa dos seres humanos serem quem eles são, nós não podemos tentar impô-las pela força.

O que, então, os cristãos devem fazer? Nós devemos procurar educar a consciência pública para conhecer e desejar a vontade de Deus. A Igreja deve buscar ser a consciência da nação. Se não devemos impor a vontade de Deus pela legislação, também não devemos convencer as pessoas a seu respeito meramente pela citação bíblica. Ambas as abordagens são exemplos de autoridade que vem de cima, com a qual as pessoas se ofendem e ficam resistentes. Mais efetiva é a autoridade que vem de baixo, a verdade intrínseca e o valor de algo, os quais são autoevidentes e, portanto, validam a si próprios. Não que as duas autoridades sejam incompatíveis; a autoridade de Deus está, essencialmente, em ambas. Esse princípio se aplica igualmente ao evangelismo e à ação social.
No evangelismo, não devemos tentar forçar as pessoas a acreditarem no evangelho; também não devemos permanecer calados, como se fôssemos indiferentes à sua resposta, nem devemos confiar exclusivamente na proclamação dogmática dos textos bíblicos – a qual é vital, assim como a exposição bíblica competente. Antes, devemos, como os apóstolos, argumentar com as pessoas sobre a natureza e sobre as Escrituras, recomendando o evangelho de Deus a elas por meio de argumentos racionais.

Na ação social, semelhantemente, não devemos tentar impor, pela força, os padrões cristãos a um público que seja relutante, nem devemos permanecer calados e passivos diante da decadência contemporânea; também não devemos confiar exclusivamente na afirmação dogmática de valores bíblicos. Em vez disso, devemos argumentar com as pessoas sobre os benefícios da moralidade cristã, recomendando a eles a lei de Deus por meio de argumentos racionais. Nós cremos que as leis de Deus são boas em si mesmas e universais em sua aplicação, uma vez que, longe de serem arbitrárias, elas são perfeitamente adequadas aos seres humanos que Deus criou. Essa é a reivindicação de Deus a respeito de suas leis desde o princípio. Ele as deu e disse: “[…] para o seu próprio bem” (Dt 10.13), e pediu ao povo que as obedecessem, “assim tudo iria bem com eles e com seus descendentes para sempre” (Dt 5.29). Deste modo, havia uma correspondência essencial entre o que era “bom e certo perante o Senhor” e “tudo [ir] bem com vocês” (Dt 12.28). O bom e o bem coincidem. Nós acreditamos também que todos têm uma noção disso, mas, por serem incapazes ou por serem relutantes em reconhecê-la, precisamos desenvolver argumentos que demonstrem que as leis de Deus visam ao nosso bem-estar enquanto indivíduos e enquanto sociedade.

Portanto, precisamos de uma apologética doutrinária no evangelismo – para debater a verdade do evangelho – e uma apologética ética na ação social – para argumentar a bondade da lei moral. Apologetas de ambos os tipos são procurados urgentemente nas igrejas do mundo hoje.

Em muitos sentidos, esse livro proporciona um conjunto de exemplos de persuasão pelo argumento. Desejo que, qualquer que seja o assunto que você discutir ou a campanha que você organizar, você descubra que os capítulos seguintes fornecem uma mistura de critérios bíblicos e análises sociais, a qual é necessária para sermos cristãos informados e entrarmos nos debates atuais com confiança.

• Trecho retirado de Os Cristãos e os Desafios Contemporâneos, de John Stott (Editora Ultimato)

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