Uma nação invisível
Por Carlos Fernandes
Reportagem – Surdos são quase 10 milhões de brasileiros, mas a Igreja não os tem alcançado como deveria
A fé vem pelo ouvir a Palavra de Deus, diz a Escritura, mas, para Nelson Peixoto Santos, hoje com 44 anos, o evangelho entrou em seu coração por outros caminhos. Surdo de nascença devido a uma rubéola mal tratada que acometeu sua mãe na gestação, ele entrou pela primeira vez em uma igreja evangélica aos 14 anos de idade. Não entendeu quase nada do que era pregado, claro — porém, o ambiente de alegria o deixou interessado. Por meio de leitura labial, Nelson foi instruído nos fundamentos da fé, recebeu a Cristo e foi batizado. Porém, nos cultos, ficava, naturalmente, meio isolado, com os olhos atentos à boca dos outros. Na época, ele já sabia boa parte do gestual da Língua Brasileira de Sinais — Libras e divertia-se mostrando aos outros adolescentes da comunidade como seriam representados alguns versículos bíblicos e expressões como “Jesus” — com os dedos médios de uma mão tocando a palma da outra, como que imitando os cravos da cruz –, “aleluia”, “glória a Deus” etc.
Com o passar do tempo, vários jovens já estavam reproduzindo os sinais, e até “cantando” os hinos em Libras. Então, o que era quase uma brincadeira entre amigos se transformou em um ministério que, durante mais de vinte anos, alcançou dezenas de deficientes auditivos para o Senhor. “Com o tempo, aquele grupo acabou desfeito porque muitos surdos se transferiram de igreja, mas foi ótimo enquanto durou”, lembra o hoje servidor público Nelson. Assim como ele, e em diferentes graus de comprometimento auditivo — da incapacidade parcial de ouvir à surdez absoluta –, cerca de 10 milhões de brasileiros convivem com essa deficiência física. Destes, cerca de 2 milhões incluem-se nas categorias dos severamente afetados ou de surdos totais. Trata-se de um enorme grupo de pessoas para quem as políticas oficiais de inclusão social, educação e acesso ao mercado de trabalho ainda são incipientes. No que se refere ao aspecto espiritual, são igualmente excluídos, já que relativamente poucas igrejas e organizações cristãs desenvolvem ministérios específicos e eficientes. “Os surdos brasileiros podem ser considerados um grupo não alcançado pelo evangelho”, aponta o jornalista e professor Saulo Xavier. “Eles constituem um dos segmentos socioculturais e sociolinguísticos menos evangelizados do país.”.
Saulo, que é baiano de nascimento e cresceu no Ceará, onde se converteu ao evangelho aos 18 anos, fala com conhecimento de causa. Envolvido com o que chama de “causa da pessoa surda” há mais de quinze anos, ele não tem casos de deficiência auditiva na família. No entanto, sentiu um direcionamento divino para esse tipo de ministério a partir de uma situação prosaica. “Na Santa Ceia, naquela hora de comunhão em que trocamos os elementos com os irmãos, havia um crente surdo e eu não sabia o que falar, e nem como dizer algo, a ele”, lembra. Mais tarde, interessou-se tanto pelo tema que o incluiu em seus trabalhos no curso de comunicação social. “Meu estudo de conclusão de curso foi a produção de um telejornal na linguagem dos surdos”, conta Saulo. Em 2002, participou do Encontro Nacional de Obreiros com Surdos, em Guarapari, ES, com mais de seiscentas pessoas, entre ouvintes e deficientes auditivos. Àquela altura, já estava totalmente envolvido. “Quando voltei, organizei um encontro no Ceará para intérpretes de Libras.” O passo seguinte foi buscar a especialização profissional que ele sabia ser essencial ao ministério que abraçara. “Tornei-me intérprete profissional em escolas e fui para o campo missionário acompanhando surdos vocacionados de minha igreja.” Logo vieram o mestrado em tradução de Libras e o doutorado. Hoje, Saulo tem no currículo o título de professor e pesquisador especializado e é um dos maiores experts do país, atuando, entre outras atividades docentes, na capacitação de estudantes de pós-graduação lato sensu na área de tradução e interpretação de Libras.
“Enxergar a pessoa”
“O Senhor foi trabalhando no meu coração para eu enxergar a pessoa, e não a deficiência.” Com essa certeza no coração, Saulo diz que não tem trabalhado para os surdos, mas sim, com eles. “Eles são participantes do reino de Deus tanto quanto eu, e a gente não pode negar o acesso ao evangelho que salva a uma pessoa por falta de acessibilidade linguística”, pontifica. Hoje congregando na Igreja Maranatha, de Goiânia — ligada à Igreja Presbiteriana do Brasil –, comunidade que tem entre seus membros cerca de quarenta deficientes auditivos, ele entende que ainda há muito a fazer. Por isso mesmo, tem desenvolvido uma série de iniciativas em benefício desse segmento, inclusive o estímulo para que haja pequenos cursos de Libras para os membros das igrejas. “Assim, o surdo que chega como convidado pode ser recebido por pessoas capazes de se comunicar com ele, ainda que no nível básico, para dar as boas-vindas e prestar informações”, explica. Tal acolhimento, garante, traz excelentes resultados. “É mais fácil, assim, que a pessoa surda sinta-se alvo do amor de Deus.”
Apesar de certa efervescência nos anos 1980, quando vários grupos se formaram nas igrejas e surgiram ministérios especializados, Saulo reconhece que houve um refluxo. Além da falta de conscientização e apoio por parte da liderança, diz, houve certa perda de foco. “Houve maior concentração na realização de eventos e nas tarefas e demandas dos ministérios, o que é importante, sem dúvida. Mas não se pode perder a prioridade do anúncio do evangelho de Cristo.” Além disso, destaca, não é tão difícil pregar para o surdo quando se domina o básico. O desafio é discipulá-lo, capacitá-lo no conhecimento da Palavra e no envolvimento efetivo com a Igreja e o reino de Deus. Falta de obreiros e de investimento e prioridade por parte das igrejas, além do momento de questionamento às instituições eclesiásticas, são alguns dos motivos. Mas Saulo está otimista com novas abordagens. “Muitos surdos evangélicos estão galgando posições importantes, inclusive nas universidades, o que abre a visibilidade sobre as necessidades da pessoa com deficiência auditiva. Já existem cursos teológicos e de formação de liderança específicos. Há estratégias novas, e creio que cada um vai encontrar o seu lugar de ação”, avalia.
“Um dos problemas desse grupo é não ter à sua disposição a Bíblia Sagrada na língua que fala ao coração deles, a língua de sinais”, aponta o pastor Erní Seibert, diretor de comunicação social da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB), uma das maiores publicadoras das Sagradas Escrituras no mundo. A Casa desenvolve o programa “A Bíblia para pessoas com deficiência auditiva”, inspirado em iniciativas anteriores da SBB em favor de portadores de cegueira. A ideia, claro, é prover a acessibilidade total. “Os primeiros movimentos nesse sentido aconteceram na década de 1990. Mas somente nos últimos anos conseguimos produzir as primeiras publicações em Libras”, continua Seibert. Segundo ele, a tradução da Bíblia em Libras tem toda a complexidade da tradução para uma língua nova. “Graças a Deus, este trabalho está em andamento. Precisamos orar e contribuir com nossas ofertas para que ele possa ser acelerado”, comenta.
Com larga tradição na área social, a SBB trabalha em parceria com organizações especializadas em diversos públicos. “Quando se leva a Bíblia Sagrada, a Palavra de Deus, para a comunidade surda, temos um programa que transmite amor e orientação para a sua vida, que os inclui tanto na comunidade de fé, a igreja, como na comunidade social.” Por enquanto, a entidade disponibiliza materiais em vídeo para o público infantojuvenil, como a série Aventuras da Bíblia em Libras, que é distribuída mediante cadastro prévio. Além disso, a SBB realiza dois encontros anuais para pessoas com deficiência auditiva. “O objetivo dos encontros é promover a inclusão e integração dos surdos e seus familiares, possibilitando o contato com a mensagem bíblica e a participação em um evento cultural e interativo”, conclui Erní Seibert.
O legado de Peterson
Na verdade, não é de hoje que a Igreja enceta esforços para levar à pessoa surda os conteúdos essenciais da fé cristã. Acredita-se que o primeiro professor de surdos tenha sido o espanhol Ponce de Leon, religioso beneditino, responsável pela instrução dos surdos filhos da nobreza no século 16. Consta, até, que alguns de seus ex-alunos foram pessoas de destaque como historiadores, astrônomos e filósofos da época Renascentista. Já em 1755, o abade Charles Michel De L’Epée recolheu os surdos pobres que vagavam nas ruas de Paris e, aprendendo a linguagem de sinais com eles, deu início a um trabalho revolucionário para a época. Segundo alguns historiadores, a partir do conhecimento da Língua de Sinais Francesa, o abade catalogou um número significativo de sinais, dando origem a um vocabulário que associava gestos com palavras escritas e imagens.
Aqui no Brasil, o pioneirismo coube ao padre Eugênio Oates, que, nos anos 1940, percorreu o país expandindo a assistência religiosa católica entre os surdos brasileiros. Dez anos depois, era ordenado ao sacerdócio o primeiro padre deficiente auditivo, Vicente Burnier. Os dois religiosos organizaram diversos encontros no país. O primeiro Encontro Nacional de Ensino Religioso para Pessoas Surdas foi realizado no ano de 1975. Além da publicação de diversas obras, Oates destacou-se pela catequização de deficientes auditivos. Com o tempo, diversas pastorais de surdos e programas religiosos voltados para essa parcela da sociedade foram desenvolvidos. Já o pastor americano John Everett Peterson, enviado ao Brasil pela Associação de Batistas para a Evangelização do Mundo (ABWE, sigla em inglês), iniciou seu ministério entre os surdos brasileiros em 1979. De acordo com o trabalho “Comunicando com as Mãos em LSB — contribuições do doutor John E. Peterson para a língua de sinais do Brasil”, apresentado por José Edmilson Felipe da Silva e Ivan Jean Peterson no 1º Encontro Científico de Educadores do Rio Grande do Norte, foi enorme a contribuição do missionário para a consolidação dos direitos da pessoa surda no país.
“Pastor João”, como era carinhosamente conhecido pelos brasileiros, aprendeu a Libras — na época, chamada comumente de “mímica” — com os próprios surdos, em um tempo no qual a linguagem era desprezada até pelos educadores. Além das ações de evangelismo e discipulado, Peterson desenvolveu o Vocabulário de Mímica para Surdos, catalogando mais de quinhentos sinais que, ainda hoje, são de uso comum entre os surdos brasileiros. Outra contribuição muito importante do pastor — esta voltada mais diretamente para a atividade espiritual — foram os acampamentos e retiros espirituais. Nesses eventos, além da programação religiosa, eram comuns os cursos de língua de sinais para ouvintes. “Sessenta semanas de acampamentos” foi o alvo inicial, e os encontros se realizaram de norte a sul do país. “Surdos e ouvintes que participaram destes primeiros encontros são hoje fluentes em Libras, líderes, instrutores e intérpretes espalhados por todo o território nacional”, dizem os pesquisadores em seu trabalho. As sementes lançadas por Peterson e sua equipe frutificam até hoje.
O pastor Silas Andrade conviveu com Peterson e foi bastante influenciado por ele. “Nasci num lar cristão, muito comprometido com o evangelho e especialmente com missões. Minha família era membro de uma Igreja Batista Regular, em Campinas, SP, e meu pastor era o doutor John Everet Peterson”, lembra. O missionário estimulou a igreja a iniciar um ministério com surdos, área que até então era praticamente inexplorada pelos evangélicos. Logo havia oito surdos congregando. Outro missionário americano, Donald Cabbage, pregava em inglês e fazia sinais em português. “Numa dessas mensagens, o Senhor tocou o meu coração e me dediquei ao ministério com surdos”, lembra Silas.
Depois de liderar ou colaborar com diversas congregações, inclusive a Primeira Igreja Batista de Surdos do Brasil, o pastor Silas hoje está ligado à Igreja Batista Boas Novas, em Hortolândia, SP. Ali, todos os cultos são interpretados em Libras e todo último sábado de cada mês é realizada uma reunião totalmente direcionada aos surdos. “Recebemos, em média, cerca de oitenta deficientes auditivos”, acrescenta. Há, ainda, uma classe especial de Escola Bíblica Dominical para surdos.
Discipulado efetivo
Silas concorda que a maior dificuldade para os ouvintes entrarem em contato com os surdos é ter fluência em Libras. Segundo ele, o evangelismo para os surdos, vencida a barreira da comunicação, é muito simples, e os surdos são bastante receptivos ao evangelho. “O problema vem depois”, pondera. “Ganhar a alma do surdo é razoavelmente fácil; difícil é ganhar a sua vida. Um agravante é que os surdos que são alfabetizados podem ler a Bíblia, mas não entendem o que estão lendo, porque não conhecem as palavras em português.”
O pastor é um dos organizadores do Encontro Nacional de Surdos e Intérpretes, que acontece há quatro anos em Hortolândia. “Tivemos a presença de setecentas pessoas na edição passada, oriundas de várias cidades”. Apesar do entusiasmo com os resultados, Silas sabe que há um imenso caminho a percorrer. “As igrejas, em geral, não têm interesse nesse trabalho e, mesmo dentre aquelas que já tiveram um ministério específico, muitas estão parando por falta de envolvimento, interesse e amor por este grupo”, lamenta. Por outro lado, destaca, boas iniciativas têm surgido profissionalmente. “Os intérpretes têm migrado para a profissionalização do seu trabalho, uma vez que a remuneração tem sido razoavelmente boa.”
Apesar das grandes lacunas e dificuldades que os ministérios evangélicos voltados às pessoas surdas enfrentam, em muitas comunidades o trabalho tem crescido e se multiplicado, como diz a Bíblia, a trinta, a sessenta e a cem por um. É o caso da Igreja Batista Getsêmani, de Belo Horizonte, MG, cujo trabalho com deficientes auditivos conta com uma equipe de cinco pastores (sendo dois deles, surdos) e dez intérpretes de Libras. Além dos 160 membros portadores de surdez, há sete diáconos e dois conselheiros nesta condição. “Temos, ainda, o culto em Libras, todo sábado, um acampamento e um congresso anual”, enumera o pastor Rainer da Silva Nonato, que perdeu a audição aos 3 anos de idade devido a uma meningite. O trabalho vai além da esfera religiosa e presta também assistência aos deficientes da comunidade, como o SOS Surdos. “Promovemos, gratuitamente, acessibilidade em consultas médicas, psicológicas, casamento civil, audiências etc.”, continua Rainer.
Amplo e diversificado, o ministério da Getsêmani voltado aos portadores de surdez investe nas famílias, com cursos para noivos e assistência aos casais, e na formação teológica. “Desde o ano passado, temos investido na formação de oito alunos surdos seminaristas que cursam o Seminário Koinonia”, diz Rainer. As aulas são ministradas em português por professores ouvintes e traduzidas para Libras por dois intérpretes. Casado com a também pastora Gislaine e pai de Daniel, de 18 anos — ambos, ouvintes –, Rainer Nonato recebe convites para participar de vários acampamentos e encontros pelo país e até no exterior. “Tive a oportunidade de fazer uma viagem missionária, em que ministrei por doze dias em diversas igrejas evangélicas com trabalhos direcionados aos deficientes auditivos na Holanda e ainda visitei escolas, asilos e um centro missionário para surdos em Amã, na Jordânia”, conta.
Além de instrutor de Libras há dezoito anos, Rainer ministra palestras sobre inclusão da pessoa com surdez em escolas, faculdades e órgãos públicos. “Temos trabalhado para conscientizar as igrejas da necessidade desse tipo de trabalho, pois os surdos são um povo marginalizado”, assevera. Segundo ele, muitas denominações evangélicas têm despertado para esta necessidade, sobretudo nas grandes cidades. “Porém, no interior e nas regiões mais carentes, a situação deixa muito a desejar”, lamenta.
“Como Igreja, precisamos enxergar que o discipulado também deve acontecer com as pessoas com deficiência”, avalia Saulo Xavier. Mas, prossegue, não basta oferecer ferramentas de inclusão e acessibilidade apenas nos momentos de culto e outras programações locais. “É preciso ir além, promovendo um discipulado efetivo. Para isso, é necessário incluir intercessão, aconselhamento pastoral mediado por intérpretes de Libras, entre outras medidas inclusivas.” Isso, sem falar no preparo adequado para os diversos casos de pessoas que têm sua vocação despertada para atuar com esse segmento — “tanto os que se sentirão chamados a servir à comunidade local quanto aqueles que percebem o direcionamento do Senhor ao campo transcultural, entre outros exemplos. Tudo isso, tratando com dignidade, incluindo com acessibilidade, acompanhando com diligência e discipulando com responsabilidade.”
• Carlos Fernandes é jornalista, editor e redator e membro da Igreja Missionária Evangélica Maranata, no Rio de Janeiro.