Zazá em um campo de refugiados

Zazá em um campo de refugiados na África

Leia, a seguir, a versão completa do artigo “Um grito de esperança no meio da dor!”, de Zazá Lima, publicado na seção “Caminhos da Missão”, da revista Ultimato 359.

 

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Niko muhanga, niko mushindi! (Sou sobrevivente, sou vencedor, em swahili). O grito ecoava entre as mangueiras em flor e o milharal já quase seco, num acampamento no oeste de Uganda.

Estávamos em Rwamwanja, um campo de refugiados habitado por mais de 50 mil pessoas. Elas tiveram de deixar a República Democrática do Congo, ameaçadas pela guerra gerada pelos intermináveis conflitos entre forças do governo e grupos rebeldes.

A guerra civil do Congo se arrasta por quase vinte anos alimentada por constantes conflitos que surgem, e como ferida aberta não para de sangrar, deixa milhares de pessoas sem lar, sem esperança e profundamente marcadas pelas cicatrizes e traumas do abuso e da violência que atingem grande parte da população, principalmente as mulheres.

Rwamwanja parece viver em constante movimento, a cada dia chega mais gente, crianças famintas e órfãs, adultos e idosos cansados e desesperados, pais feridos e impotentes diante das necessidades gritantes e do futuro incerto dos seus filhos, jovens desorientados, multidões dilaceradas pela dor de terem sido forçadas a fugir do seu próprio país deixando para trás familiares que se perderam ou morreram no caminho, ou que não tiveram forças para fugir.

Eles guardam na memória lembranças de um tempo diferente, em que a colheita era farta e a vida mais esperançosa. Com nostalgia e tristeza lamentam a abundância de recursos e a riqueza que parece ter transformado uma região conhecida pela qualidade dos seus diamantes, pelo valor do seu cobalto e pela imensidão das suas terras férteis em um verdadeiro campo de guerra.

Ali, mais uma vez, fomos expostos à dura realidade das contradições do coração humano e da crueldade da guerra, do dilema do sofrimento humano… Em meio a esse contexto tão difícil e triste foi surpreendente e inspirador ver as mulheres dançando e rompendo cadeias de silêncio, vergonha e medo com um grito emblemático: Somos vencedoras, somos sobreviventes! Um grito que começou como um sussurro frágil e que foi tomando força e transformando-se em uma verdadeira declaração de fé e afirmação de dignidade naquele grupo bonito. Não sei ao certo quantas eram, sei que eram muitas – talvez 120 ou 150 mulheres. Sei que eram belas com seus vestidos e lenços coloridos e que ainda sabiam sorrir e bailar ao ritmo harmonioso de canções contagiantes que nos convidavam a olhar para a cruz de Cristo e a receber o amor ali revelado.

Passamos duas semanas em Rwamwanja reunidos em encontros de aprendizagem, cura e reconciliação por meio de uma bonita parceria entre algumas organizações internacionais (Refugee Aliance, CIBI, MAIS, PMI, Retalhos de Esperança e outras) e muitas igrejas locais, que nos permitiu aprender uns com os outros e experimentar a generosidade e a diversidade dos dons presentes no corpo de Cristo. Estávamos participando de um curso sobre resiliência e terapia pós-trauma e nos sentíamos imensamente privilegiados em vermos o tesouro da graça de Deus se revelar na vulnerabilidade de nossos vasos de barro.

Foram muitas reuniões, encontros, celebrações, lágrimas e risos. Tivemos a oportunidade de conhecer muitas crianças e mulheres, pastores e líderes do acampamento, e cada um deles nos ofertou parte da sua história e muito dos seus corações.

A cada dia eles chegavam de todos os lados, apressados, cansados, esperançosos, alguns moravam em lugares distantes, outros eram da vizinhança. Pés empoeirados acostumados a desbravar caminhos espinhosos e íngremes, olhos cansados e sofridos, acostumados com as noites escuras e os dias ensolarados, mãos calejadas e feridas pelo trabalho duro e interminável, ombros doloridos encurvados ante o peso dos feixes de lenha, dos filhos pequenos, das latas de água, do medo, da vergonha… Cada parte dos seus corpos parecia revelar um percurso de dor e de sofrimento e teimava em sinalizar uma esperança maior, resistindo àquelas duras circunstâncias.

Por mais que eu me esforce, não conseguiria expressar o quanto esses encontros movem o meu coração e me ensinam sobre a bondade de Deus, mostrando-me um caminho mais excelente, talvez mais simples, por meio do qual as nossas feridas e rachaduras são expostas ao bálsamo sanador da graça de Deus e do seu infinito amor.

Os encontros com pessoas refugiadas começaram de forma espontânea, quando há seis anos visitei pela primeira vez um campo de refugiados no Sudão. Diante das perdas e sofrimento daquele povo, vislumbrei o amor de Deus e a sua generosidade desconcertante, onde eu nunca teria imaginado.

Depois do Sudão tivemos a alegria de viajar para o Quênia e participar de uma conferência com irmãos sudaneses. Ali, no meio da celebração da comunhão, ouvi testemunhos impactantes de histórias de sofrimento, tortura e morte e testemunhei maravilhada a disposição deles em perdoar e se reconciliar com aqueles que abusaram das suas filhas e esposas, queimaram as suas casas e roças e os expulsaram do seu pedaço de chão.

Estive em outros campos de refugiados, em diferentes ocasiões: na Tunísia, na Jordânia, no Quênia e em Uganda – onde tive a oportunidade de participar do acompanhamento educativo e psicológico de crianças, da formação e capacitação de voluntários, da distribuição de alimento e roupas, do apoio à logística e documentação; na maioria das vezes me senti impotente e desajeitada, mas sempre surpreendida e maravilhada pela grandeza do amor de Deus e a resiliência e beleza do ser humano. Também vi pessoas desesperadas, sem forças para perdoar, sem ânimo para continuar, acabrunhadas e sufocadas pela sua dor, marcadas por histórias de desmedida crueldade e desespero.

Nesses contextos, mais do que realizar projetos ou executar programas,  senti- me convidada a participar de verdadeiros encontros e descobertas profundas. Em cada um deles recebi muito e fui imensamente impactada e inspirada pelo testemunho de companheiros e colegas que me ensinaram preciosas lições através de suas vidas e entrega e pela generosidade sem medida daqueles que nos convidavam para repartir o seu último pedaço de pão e copo de chá, com desprendimento e alegria. Aprendi que a hospitalidade não é privilégio de quem tem muito a oferecer, mas de quem se atreve a convidar o outro para entrar em sua barraca e compartilhar a sua vida.

As guerras continuam explodindo em vários países. Muitas pessoas continuam sendo forçadas a deixar a sua pátria e as suas casas, muitas crianças continuam sendo expostas à violência e crueldade, muitas famílias continuam sendo marcadas por perdas e traumas profundos. Diante desse contexto, qual deve ser a nossa atitude? A indiferença, a piedade vazia, os medos? Ficaremos acomodados em nossas previsões políticas bem elaboradas, em nossas preocupações legítimas, em posturas polarizadoras e preconceituosas, em previsões inteligentes e racionais, em temores justificados?

Não quero simplificar o que é complexo, nem banalizar o que é complicado. Tampouco quero sugerir soluções simplistas e mágicas ou ingênuas. Só gostaria que escutássemos o grito daquelas mulheres de Rwamwanja e o seu convite para olharmos para a cruz e nos identificarmos com aquele que se esvaziou a si mesmo para que pudéssemos ter acesso às boas notícias do seu amor e a declarar a vitória que não se mede pelo que temos, mas pelo que somos nele!

 

Elizete “Zazá” Lima, trabalha em diferentes países do Norte da África e Oriente Médio e atualmente também serve como diretora internacional da missão PMI e colabora com outras missões em outras regiões do mundo.

 

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