Socorro, sou pastor!
Por Pr. Éber Lenz César
Coisas muito estranhas acontecem até em reuniões de Presbitério*. Veja esta que aconteceu há uns poucos anos numa reunião do meu Presbitério. Se bem me lembro, era uma reunião fechada, só de pastores e presbíteros representantes das igrejas.
O relator da Comissão de Legislação e Justiça apresentava seu relatório, descrevendo uma situação delicada numa das igrejas do Concílio. E a discussão encrespou. A certa altura, o relator sabiamente resolveu interromper o acirrado debate, dizendo que precisavam todos se acalmar e buscar a direção de Deus. Pediu-me para dirigir uma oração. Todos de pé, refleti por alguns instantes e orei. Foi mais uma oração de confissão comunitária e súplica. Quando terminei, ouviu-se aquele coro de améns e, simultaneamente, a voz forte de um colega pastor:
— Senhor Presidente, esta oração está fora de ordem! Muitos comentaram que nunca tinham ouvido algo semelhante. Ficou na história do Concílio, creio eu, talvez indicando alguma coisa não muito evidente…
Tenho muito a agradecer o acolhimento que tive neste Presbitério, há vinte anos, e também porque não me impediu de exercer meu pastorado de modo mais simples, menos formal… Entretanto, tenho lamentado a falta de oportunidades e tempo no concílio para convivência fraternal e amiga, menos clerical e menos institucional. Quem sabe, crescendo no conhecimento mútuo e na confiança, poderíamos compartilhar nossas lutas e vitórias pessoais, familiares e pastorais? …
Fui membro de sete Presbitérios, incluindo o Presbitério de Pretória, da Igreja Reformada Holandesa na África do Sul. Em nenhum deles tivemos encontros informais, promovidos pelo Concílio, somente para reflexão, oração, compartilhamento e confraternização. Conforme relatei, na África do Sul eu participei de reuniões com os colegas brasileiros onde somente conversávamos, orávamos e comíamos juntos… Em Uberlândia e em Recife, formamos grupos de oração e compartilhamento só de pastores, de diferentes denominações.
Provavelmente, todos nós, pastores, já pregamos nas igrejas sobre os textos de “mutualidade”, com a expressão “uns aos outros”, tão frequentes no Novo Testamento. Uma vez, contei mais de trinta passagens que, de um modo ou de outro, recomendam compartilhamentos e cuidados mútuos nas igrejas. Diríamos que estas instruções bíblicas aplicam-se somente às ovelhas, e não, aos pastores? Certamente que não! Pastores e presbíteros também necessitam destas práticas, talvez até mais!
Em quase todas as igrejas que pastoreei, ministrei uma série de dez mensagens sobre os textos com a expressão “uns aos outros”. Dei-lhe o título Membros uns dos outros (disponível neste blog, em Cursos Bíblicos). Dois ou três destes textos preciosos me chamam mais a atenção. O primeiro é este:
“Habite ricamente em vocês a Palavra de Cristo; ensinem e aconselhem-se uns aos outros com toda a sabedoria…” (Colossenses 3.16).
Supostamente, senão seguramente, os pastores conhecem a Palavra mais do que os membros das igrejas. Seria só para ministrar estudos bíblicos e pregar sermões? Ou também para “instruírem e aconselharem uns aos outros”? Que falta fazem na vida do pastor esta instrução e estes conselhos amigos, humildes, de colega para colega, homem para homem… Uma vez, numa reunião de Presbitério, dois ou três colegas informaram terem-se divorciado. Sem nenhum julgamento, e muito menos condenação, pensei e falei, em plenário: teriam estes colegas compartilhado suas dificuldades conjugais e familiares, suas lutas, suas tentativas e seus sofrimentos com algum ou alguns colegas no Concílio? Teriam recebido ajuda em aconselhamento e oração? O desastre poderia ter sido evitado? Numa outra reunião, ouvi também, estarrecido, denúncias muito sérias contra um pastor, situações escandalosas, que estavam destroçando uma igreja… Mas o mal já estava feito!
De todos os textos “uns aos outros”, talvez o mais difícil de praticar seja o de Tiago 5.16, o segundo texto que me chama especialmente a atenção:
“Confessem os seus pecados uns aos outros e orem uns pelos outros…”.
Em seu excelente livro “A Igreja, Corpo Vivo de Cristo”, o Pr. Ray Stedman comenta esta passagem:
“Confessar as faltas certamente significa admitir fraquezas e reconhecer fracassos no viver como cristãos. Muitas vezes é difícil levar cristãos a fazer isso, apesar da clara orientação da palavra […]. Muitos cristãos imaginam que serão rejeitados pelos outros se admitirem quaisquer faltas. Mas, nada poderia ser mais destrutivo à koinonia cristã do que o costume geral de hoje, de se fazer de conta que não se tem problema algum. Muitas vezes é assim que lares cristãos estão cheios de briga, discussões, acessos de raiva […]. Para piorar a situação, esse tipo de conspiração do silêncio é considerada como a atitude cristã, e a hipocrisia […] é vista como uma parte do ‘testemunho’ diante do mundo. Quão positivo, quão maravilhosamente útil seria se um dos membros dessa família (de preferência, o pai) admitisse honestamente, numa reunião de irmãos cristãos, que sua família está passando por dificuldades […], e que ela precisa muito de suas orações e conselhos neste período de perturbação”. (p. 88-89).
Há ainda um outro texto “uns aos outros” que eu quero mencionar:
“Levem os fardos pesados uns dos outros e, assim, cumpram a lei de Cristo. Se alguém se considera alguma coisa, não sendo nada, engana-se a si mesmo” (Gálatas 6.2-3). Ou, como parafraseia Eugene Peterson, na Bíblia A Mensagem: “Compartilhem aquilo que pesa a vocês e cumpram, desse modo, a lei de Cristo. Se pensam que são bons demais para agir assim, estão muito enganados”.
A “lei de Cristo”, evidentemente, é a lei do amor! Na prática deste amor recíproco, não somente confessamos que estamos com problemas, mas também aceitamos o ombro amigo que se dispõe a nos ajudar a carregar o fardo! Certamente, é mais difícil quando o fardo é a consciência pesada… (Ver João 8.9; Romanos 2.15). Neste caso, o amigo, amigo verdadeiro, nos ajudará denunciando nosso pecado e encorajando- nos a confessá-lo e deixá-lo. Foi exatamente isto que o profeta Natã fez com o rei Davi, de Israel. Confrontou-o com o seu duplo pecado: o adultério com Bate-Seba e o assassinato indireto de Urias, marido de Bate-Seba. Davi não lhe havia dito nada, mas Natã, de algum modo, ficou sabendo (2 Samuel 12). Todo mundo sabia ou foi Deus quem o revelou ao profeta? Não importa. O fato é que Natã foi de grande ajuda!74 Confrontado, o rei livrou-se da carga terrível que o estava esmagando. Sua oração de confissão e cura está registrada no Salmo 32:
“Como é feliz aquele que tem suas transgressões perdoadas e seus pecados apagados. Como é feliz aquele a quem o Senhor não atribui culpa e em quem não há hipocrisia! Enquanto eu mantinha escondidos os meus pecados, o meu corpo definhava de tanto gemer. Pois dia e noite a tua mão pesava sobre mim; as minhas forças foram-se esgotando… Então reconheci diante de ti o meu pecado…” (Ver também o Salmo 51).
Sem um Natã, muitos não conseguem se livrar da carga que os oprime. E as coisas só vão piorando. Lembro-me de casos extremos que ilustram a que ponto pode chegar o irmão sobrecarregado de problemas ou esmagado pela culpa.
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Numa das cidades onde pastoreei, o pastor de uma igreja pregou no domingo de manhã e de noite. Na segunda-feira cedo, depois que a esposa saiu para o trabalho, ele levou a filha menor à escola, voltou para casa, entrou no banheiro e deu um tiro na cabeça!!! Planejado? Por que uma arma em casa? Não é preciso comentar a tristeza, a consternação e a indagação da multidão de parentes, irmãos e amigos que se reuniu no templo para o funeral… Eu nunca me esqueci. E como muitos outros, me pergunto até hoje: Depressão? Tentação? Pecado? Culpa? O que não foi compartilhado? O que ninguém percebeu?
Alguns anos depois, estando eu à frente da igreja de uma outra igreja, em Minas Gerais, num sábado à noite, fui visitar um diácono e sua família. Encontrei-os na sala, embrulhando balas e docinhos para a festa de aniversário da filha, no dia seguinte. Ajudei-os por um pouco, enquanto conversávamos. O diácono pareceu absolutamente normal, participando da conversa. Orei com a família e saí. Na manhã seguinte, domingo, bem cedo, um outro diácono me telefonou, pedindo-me que fosse depressa àquela mesma casa, pois algo terrível tinha acontecido. Quando cheguei, levaram-me ao paiol da casa: o diácono da noite anterior, o que tinha ajudado a esposa a arrumar os docinhos para o aniversário da filha, havia se enforcado e ainda estava ali pendurado na corda… Uma cena que também nunca saiu da minha mente. O que aquele irmão não compartilhou? O que ninguém percebeu? O que faltou?
Este capítulo já estava escrito quando um dos meus filhos pastores enviou-me uma nota do dia, publicada num site:
“Nos últimos 30 dias, três suicídios de pastores conhecidos chocou a igreja dos Estados Unidos […]”. Seguem-se os nomes dos pastores e respectivas igrejas. Sobre um deles, o que se matou com um tiro na cabeça, o articulista acrescenta: “Sua esposa o encontrou caído na entrada da garagem de sua casa num domingo. Ele já havia pregado naquela manhã e teria de pregar novamente naquele dia. Nenhum bilhete ou explicação foi deixado.”.
Mais à frente, o comentário: “Existem muitas estatísticas sobre como os pastores enfrentam problemas como depressão, esgotamento físico e mental. Nenhuma delas é animadora. Segundo o Instituto Schaeffer, 70% dos pastores lutam constantemente com a depressão, e 71% estão ‘esgotados’. Além disso, 72% dos pastores dizem que só estudam a Bíblia quando precisam preparar sermões, 80% acredita que o ministério pastoral afeta negativamente as suas famílias, e 70% diz não ter um ‘amigo próximo’. O Instituto Schaeffer também estima que 80% dos estudantes de seminário (incluindo os recém- formados) irão abandonar o ministério dentro de cinco anos. Não há dados consistentes sobre quantos cometem suicídio, mas está claro que os pastores não estão imunes a isso.”
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No Natal de 1992, minha esposa me deu de presente um livro intitulado “Esgotamento espiritual” (SMITH, M, Editora Vida, 1991). Eu o li de enfiada, com grande interesse e proveito. Mas fiquei me perguntando: “Por que será que minha esposa me deu este livro? O que ela pensa que está acontecendo comigo? Bom, ela me acompanhou de perto e participou de todos os momentos felizes e de grande turbulência narrados neste livro…”. Por isso mesmo, sugeri que ela também lesse o “Esgotamento espiritual”…
A propósito, tenho observado que muitos pastores evitam envolver suas esposas nos ministérios e principalmente nos problemas das igrejas. Não lhes tiro a razão, até certo ponto… Todavia, não considero bíblico e correto que uma esposa de pastor pouco frequente a igreja ou não participe de qualquer dos seus ministérios. Deve fazê-lo, como todo cristão! Tem talentos e dons que devem ser usados no serviço de Cristo, em casa, no trabalho e, claro, na igreja… (Ver Hebreus 10.25). Também não considero bíblico e correto que o pastor não compartilhe com sua esposa as dificuldades que enfrenta no ministério, ainda que, em casos excepcionais, decida resguardá-la do desgaste emocional. De modo geral, pode ser salutar e importante que orem juntos a respeito. E bem pode ser que a esposa some percepções e conselhos sábios… Bom, considerando que estamos falando de esposas cristãs, espirituais, prudentes, sábias…companheiras idôneas!
Nesse contexto, tento imaginar como era a relação conjugal e ministerial de Áquila e Priscila, que, juntos hospedaram e acompa- nharam o Apóstolo Paulo (Atos 18.1-4,18). Os dois, depois de ouvirem Apolo pregar, “convidaram-no para ir à sua casa e lhe explicaram com mais exatidão o caminho de Deus” (Atos 18.24-26). Posteriormente, escrevendo aos cristãos romanos, o mesmo apóstolo incluiu uma palavra especial de saudação e gratidão a este casal amigo:
“Saúdem Priscila e Áquila, meus colaboradores em Cristo Jesus. Arriscaram a vida por mim. Sou grato a eles; não apenas eu, mas todas as igrejas dos gentios. Saúdem também a igreja que se reúne na casa deles” (Romanos 16.3-5).
Gosto de ver nestas passagens que os verbos estão no plural e que o apóstolo, mesmo naquela cultura, não se importa em colocar o nome de Priscila na frente do nome do seu marido. Já ouvi pastores defendendo a ideia machista de que lugar da esposa é em casa, cuidando da família e do fogão! Será que pensam assim quando se trata de emprego ou profissões remuneradas, ditas “seculares”? A propósito, mesmo tendo trabalhado fora por vários períodos e me ajudado incansavelmente no nosso ministério, minha querida esposa e cooperadora cuida muito bem da casa e faz uma comida mineira que atrai de volta, com frequência, nossos filhos e os agregados… Só não sei como ela consegue! Talvez porque sou eu quem lava a louça e as panelas… e, às vezes, ajuda na faxina!
* Faz parte do governo presbiteriano. As igrejas presbiterianas de uma determinada região compõem um concílio maior chamado presbitério. (Wikipédia)
• Éber Lenz César é pastor desde 1966 e é o irmão mais novo do redator da revista Ultimato, Elben Lenz César.
Nota:
Este artigo é o capítulo 38 do livro Vida de Pastor: lembranças de uma jornada (2014). Veja mais sobre este livro e depoimentos de leitores no blog do autor.