Raouf Karray. "A pérola negra" (2010). Tinta sobre papel feito à mão.

Raouf Karray. “A pérola negra” (2010). Tinta sobre papel feito à mão.

Há algum tempo chegou às nossas mãos um exemplar do bonito La perle noire, livro organizado pela educadora Zazá Lima, parceira da Associação de Colaboração na Tunísia para o Desenvolvimento e a Educação (ACT). Ele reúne informações sobre a “terra abençoada das oliveiras”- a Tunísia – e receitas que incluem o azeite de oliva como um de seus principais ingredientes. A voz e a palavra em forma de receitas é de mães de crianças com deficiência atendidas pela ACT e os belíssimos desenhos do artista Raouf Karray, professor do Instituto de Artes e Ofícios de Sfax, na Tunísia. (Um dos desenhos de Raouf Karray foi publicado no topo da seção “Arte e cultura” da edição de janeiro/fevereiro de 2015 da revista Ultimato). Leia mais detalhes do projeto a seguir.


1. Conte-nos sobre a ideia que originou o La perle Noire.

Zazá – Mais que de uma ideia, La Perle Noire (A Pérola Negra) se originou da experiência compartilhada em encontros com pais de crianças com deficiência e necessidades de aprendizagem. Deste lugar e momento, surgiu o desejo de registrar o que fizemos e experimentamos com lápis colorido, retalhos floridos, comida saborosa regada com azeite de oliva, lágrimas, risadas e muita ternura. Trata-se de um  projeto que foi construído a partir de muitas conversas, de histórias compartilhadas de dor e de esperança, de sofrimento e de transformação. Sentados ao redor de uma bandeja de chá e comendo doces de frutos secos e mel, permitimos que as ideias fossem tomando conta de nós e despertando a generosidade e a criatividade presente em cada pessoa que se tornou artista e autor da sua história escrita, desenhada, recontada.
Era outono em Sfax (cidade do Sul da Tunísia). As oliveiras e as laranjeiras em flor anunciando o inverno nos inspiraram e nos convidaram ao aconchego da sala decorada com tapetes berberes coloridos, no Centro de Apoio e Acompanhamento a Pessoas com Paralisia Cerebral, em El Mouroua. As mães das crianças e jovens do Centro El Mouroua foram as autoras do projeto e protagonistas do encontro. Cada uma delas começou a tecer fios coloridos de linhas e de esperança e a reinventar as suas realidades através dos momentos de troca onde a conversa sobre a dor e o sofrimento abriu caminho para a esperança dignificadora e bordou histórias de mudanças. A Casa da França em Sfax e a Associação de Colaboração na Tunísia para o Desenvolvimento e a Educação (ACT) foram parceiras solidárias nesta caminhada

 

2. Pelo livro, notamos que há um esforço em promover a arte e a assistência a mães de crianças com deficiência. Qual é a relevância de trabalhos como este (tanto em termos artísticos como de reconciliação com Deus, com a promoção da justiça e do cuidado)?

Zazá – O projeto é, em si mesmo, um ato de reconciliação, de restauração e justiça. Desde o início houve um desejo espontâneo de resgatar o belo e a arte presentes em cada pessoa. Cada participante se transformou em um artista e reescreveu a sua história com tons de alegria e cheiro de mudança. Houve profunda gratidão a Deus e os valores do seu Reino encheram cada espaço de muita esperança.

Os momentos de contos, que permearam cada encontro foram mágicos e de uma beleza sem medida. Mãos desajeitadas teceram bordados cheios de vida e olhares tristes se iluminaram a cada gesto criativo e inovador.

O artista Raouf Karray, de Sfax, foi companheiro do caminho. Atento a cada gesto, escutou com muita atenção e sensibilidade e o seu olhar era acolhedor e terno, o que motivou cada participante a compartilhar a sua história sem medo. [veja ilustração acima]

Mais do que assistência houve reciprocidade; mais do que ajuda houve troca e todos saímos transformados desses encontros, enriquecidos por compartilhar experiências e leves ao abandonar cargas e preconceitos tão pesados.

A justiça se encarnou no cotidiano, se adornou de esperança, desafiou relações de poder e se vestiu de amizade e solidariedade. O impacto desse trabalho ainda é sentido no empoderamento dos pais, no sorriso das crianças, na formação de educadores e profissionais valorizados e comprometidos com a sua vocação.

Uma mãe compartilhou: “Do anonimato envergonhado da minha dor virei autora de um livro bonito e inspirador. Aprendi muito nesses encontros. Nossas filhas com dificuldades especiais nos ensinaram um caminho mais digno. Eu e meu marido, que nunca saíamos de casa com as meninas nos vemos aqui  participando de um desfile de inclusão com nossas três filhas com dificuldades especiais e estamos mais do que nunca convencidos de que elas são imagem de Deus e têm dignidade, isso é um verdadeiro milagre”.

3. Quem são os protagonistas do livro?

Zazá – Os pais das crianças com dificuldades especiais são os principias autores desse projeto, juntamente com os educadores, artistas e diferentes pessoas da sociedade civil. Cada participante teve um papel muito importante e contribuiu de forma significativa para que o projeto virasse realidade e tocasse a vida de cada pessoa. El Mouroua, ACT, La Maison de France de Sfax, foram parceiros generosos, juntamente com  muita gente preciosa da sociedade de Sfax. A coordenação do projeto não foi tão difícil contando com gente tão comprometida e criativa. O fato de querer incluir todos e ouvir cada pessoa com atenção inseriu o projeto em uma caminhada de mais de um ano, o que permitiu a consolidação da amizade e da confiança instalada em nosso meio.

4. Os desenhos do Raouf Karray chamaram nossa atenção. O que as crianças atendidas pelo projeto acharam das ilustrações?

Zazá – Os desenhos foram saltando de uma sucessão de momentos, de lágrimas, de risos, de celebração. Quando o desenho nascia já havia sido apropriado por cada um de nós. Nada veio desconectado do contexto e do encontro. A arte estava em todos os lugares, na cozinha onde o azeite de oliva  esverdeado  irrigava a  pasta vermelha de pimentão e se transformava em bela imagem de hospitalidade;  nas oficinas de costura onde  as agulhas dançavam sobre belos retalhos de algodão, no salão onde a música acalmava os corações e acariciava nossas almas, na voz embargada dos familiares testemunhando suas histórias e dos educadores compartilhando suas experiências. Tudo era arte e Raouf Karray se fez participante discreto que soube apreender o momento e eternizá-lo em suas telas e nas páginas de um livro compartilhado. Já se passaram mais de quatro anos desde que empreendemos esta caminhada, mas tudo continua vivo em nossos corações e marcado em nossa memória. Ficou muita coisa bonita e a convicção de que vale realmente a pena acreditar na vida, ser tocado pelo amor do Criador e construir parcerias além das nossas fronteiras e zonas de conforto. Que nestes singelos atos de amor o Reino do nosso Deus continue se revelando e o seu nome sendo  glorificado!

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