Dan Blazer, velho conhecido dos leitores da Ultimato, autor de Freud versus Deus — como a psiquiatria perdeu a alma e o cristianismo perdeu a cabeça, foi o convidado especial do 32º Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em Brasília, nos dias 15 a 18 de outubro.

dan_blazer2A seguir a entrevista do professor e psiquiatra norte-americano ao jornal Correio Braziliense, publicada no último fim de semana.

Entre a cruz e a psique

Autor de vários livros que tratam da relação entre a religião e os mistérios da mente, o psiquiatra e cristão norte-americano garante: psiquiatria e teologia se completam.

Por Gláucia Chaves

A busca por amparo é algo intrínseco ao ser humano. A procura é, também, um caminho pessoal: enquanto alguns encontram aconchego emocional na religião, outros preferem apostar nos conhecimentos da ciência para aplacar angústias, resolver conflitos e entender a si mesmo e o mundo. Uma terceira opção, talvez não tão popular, também é possível. Unir teologia e psicologia é o campo de estudo de Dan Blazer, psiquiatra autor de diversos livros e artigos sobre o assunto, como Freud versus Deus: Como a psiquiatria perdeu a alma e o cristianismo perdeu a cabeça (Editora Ultimato). O psiquiatra americano esteve em Brasília como convidado especial do 32º Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Antes, concedeu, por e-mail, entrevista à Revista para falar sobre a relação entre religião e psiquiatria.

Professor na Duke University School of Medicine, é autor de 19 livros, entre eles, The age of melancholy: major depression and its social origins (sem tradução para o português) obra de 2014 que deu a ele o “Oscar Pfister Award”, pela integração entre religião e psiquiatria. Blazer fala com a propriedade de quem convive nos dois mundos. Além de psiquiatra, é cristão. 

Qual seria o papel da religião e da espiritualidade no tratamento de transtornos psiquiátricos?

Sofrimento emocional e transtornos psiquiátricos vão ao cerne do que somos como pessoas. Seja qual for a causa, tal como sofrimento, comportamento desordenado ou pensamentos que surgem a partir de um transtorno psiquiátrico, vão impactar o núcleo espiritual de cada um de nós. Não podemos entender a dor infligida por um distúrbio como depressão crônica se não entendermos como a dor é sentida, espiritual, psicológica e fisicamente. Uma vez que entendemos o componente espiritual da dor, podemos recorrer aos recursos espirituais da pessoa que sofre, bem como os recursos da comunidade de fé a que pertence a pessoa, se ela pertencer a alguma (e a maioria tem um relacionamento com uma comunidade de fé) .

É possível que uma “religiosidade excessiva” ocasione transtornos mentais?

Sim, especialmente entre pessoas que se ligam a um movimento de culto e transferem todo o controle de suas vidas para outra pessoa, sob o pretexto de desenvolver uma vida espiritual mais profunda. Muito dano pode ser feito a pessoas suscetíveis a transtornos mentais pelos chamados líderes espirituais, que não reconhecem isso e prejudicam o bem-estar psicológico das pessoas que colocaram sua fé em tais líderes. No entanto, devemos reconhecer que os transtornos mentais por si só podem (sem qualquer coerção externa) se manifestar através da espiritualidade excessiva. Durante a era puritana nos EUA, encontramos casos bem documentados de indivíduos com depressão grave (geralmente mulheres) que se tornaram excessivamente religiosas e, posteriormente, se comprometeram com exercícios espirituais extremos, como o jejum prolongado.

Eu acredito que ambos, psiquiatras e teólogos, devem abrir suas mentes para as opiniões dos outros e não descartá-las

Estamos nos tornando mais melancólicos e depressivos ou o problema sempre existiu, mas só agora está sendo discutido?

O problema da depressão severa (ou o que nós geralmente pensamos como sendo melancolia) tem estado presente, tanto quanto sabemos, desde os primórdios da civilização. No entanto, existem características da sociedade moderna que nos colocam em risco especial para a depressão. Nossa sociedade é muito complexa. Isso aumenta nosso estresse percebido, um estresse que não diminui ao longo de grandes períodos de tempo. O estresse e a ansiedade resultante que sentimos, eventualmente, podem causar depressão grave ou melancolia. Além disso, em muitos lugares, as pessoas não se sentem seguras. O constante estado de vigilância, tentando evitar a violência, certamente pode aumentar a frequência de depressão. A ameaça de violência é sentida não só por aqueles em perigo imediato, mas também pela maioria de nós por meio das imagens que vemos quase que instantaneamente na mídia.

Psiquiatria e teologia são dois conceitos opostos? Por quê?

Prefiro vê-los como complementares. Só quando nos recolhemos em um único modo de olhar o mundo, com pouco respeito por outros pontos de vista, os dois campos entram em conflito. Quando a psiquiatria tem uma visão totalmente materialista da humanidade, quando se descarta a importância da natureza espiritual das pessoas, ela certamente será contrária à teologia. Quando a teologia não reconhece que Deus dá as ferramentas que a psiquiatria usa para curar o sofrimento emocional, quando a teologia não considera as realidades do sofrimento humano através das doenças psiquiátricas, então ela certamente vai se opor à psiquiatria. Eu acredito que ambos, psiquiatras e teólogos, devem abrir suas mentes para as opiniões dos outros e não descartá-las. Freud, psiquiatra e ávido ateu, não descartou a teologia. Ao contrário, ficou intrigado com a teologia e, talvez, a levou consigo em sua amizade que mais durou, com um ministro presbiteriano que estava interessado em psicanálise, Oscar Pfister. Precisamos continuar essas relações entre líderes espirituais, como Pfister, e psiquiatras, como Freud. Eles podem não concordar, podem até parecer estar em extremos opostos, mas, se conversarem, se compartilham ideias, se fizerem um esforço para entender um ao outro, então eu acredito que muito do conflito desaparecerá.

Você acha difícil equilibrar psiquiatria e religião? A psiquiatria afetou sua fé?

A psiquiatria em nenhum momento me fez duvidar da minha fé. Na verdade, minha fé tem evoluído ao longo das décadas em que venho praticando a psiquiatria. Quando entrei na psiquiatria, prometi a mim mesmo que não permitiria que meu crescimento espiritual como cristão ficasse atrás do meu crescimento como psiquiatra acadêmico. Eu começo todas as manhãs com uma hora de oração e estudo religioso. Ao longo das décadas de minha vida como cristão que pratica psiquiatria, muitas perguntas sobre sofrimento emocional e seu tratamento têm sido respondidas, mas muitas continuam sem resposta. No entanto, eu não me preocupo em não ter encontrado todas as respostas. Como um psiquiatra acadêmico, eu sei que nunca encontrarei todas as respostas e, na verdade, minha carreira seria muito chata se não houvesse perguntas restantes no horizonte para perseguir. Como cristão, eu acredito que Deus está acima de tudo e em todos. Não posso “cavar” as profundezas de sua sabedoria e poder. Em vez disso, fico maravilhado com sua criação. Por isso, em muitos aspectos, acho que minha vida como psiquiatra acadêmico e cristão não está em conflito; é uma vida significativa de admiração e louvor. Minha fé só fez crescer nesses anos de psiquiatria. E espero e confio que me tornei um psiquiatra cada vez mais competente e solidário por causa da minha fé.

Muitos acham na religião uma forma de aliviar o sofrimento. Outros preferem ver um psiquiatra. Qual é a diferença entre os dois métodos?

Mais uma vez, acredito que a distinção “esse ou aquele” não é válida. Tomemos, por exemplo, alguém sofrendo de depressão grave. Se a pessoa recusar a assistência que um psiquiatria pode fornecer, essa pessoa está ignorando dons que Deus tem proporcionado para a cura. Por outro lado, a depressão grave pode desafiar a fé e o senso de sentido da vida até mesmo dos cristãos mais dedicados. O tratamento psiquiátrico não pode por si só responder a esse desafio. Pelo contrário, a comunidade da fé deve ajudar a pessoa a passar por esse período de sofrimento e ajudá-la a restabelecer a sua fé e o sentido da sua vida.

Thomas Keating fez uma ligação entre pecado original e a sensação de nunca estar satisfeito. O pecado original, então, seria a perda da inocência, o momento em que percebemos que precisamos de algo mais. Há estudos em psiquiatria nesse sentido?

Infelizmente, a psiquiatria tem ignorado tais questões nos últimos anos, especialmente com o surgimento da psiquiatria biológica. Esse tipo de investigação é exatamente em que psiquiatras e teólogos poderiam trabalhar juntos para entender melhor a profundidade da condição humana. Gostaria de acrescentar uma nota de cautela, no entanto. Nem a psiquiatria nem o cristianismo está livre de uma perspectiva particular sobre o mundo. A psiquiatria hoje é muito impulsionada por uma visão determinista, materialista da existência humana, embora eu suspeite que a maioria dos psiquiatras não está plenamente consciente das implicações dessa dominação biológica dentro de nosso campo. No entanto, a psiquiatria no passado (e, suspeito, no futuro) abraçou outras perspectivas holísticas, que reconhecem o escopo completo do florescimento humano. Os cristãos são cristãos, não judeus, hindus, muçulmanos etc. Não devemos supor que a nossa perspectiva cristã é a única sobre a interseção da fé e da psiquiatria.

Se você tivesse que escolher, escolheria Darwin ou Gênesis?

Sou grato de não precisar ter que escolher (embora alguns insistam que a escolha deve ser feita). Em minha opinião, a mensagem fundamental do Gênesis é que Deus criou o mundo, criou o homem à sua imagem, e continua a sustentar a sua criação, eventualmente, para resgatá-la. O Gênesis não é um tratado científico, mas é interessante notar que o surgimento da “teoria do big bang” sobre a origem do universo coincide com a ordem de Deus para que haja luz, nos primeiros versículos de Gênesis. Acredito que aprendemos muito sobre como a vida na Terra mudou ao longo do tempo, mas ainda sabemos pouco sobre como a vida surgiu, especialmente a existência humana. E eu acredito que a teoria da evolução nos proporcionou uma estrutura para entender muito dessa mudança ao longo do tempo. Podemos ver a evolução como um processo ainda hoje, quando vemos como mutações e/ou variações genéticas de organismos podem ser adaptáveis a determinados ambientes. No entanto, estamos diante de uma tarefa muito mais difícil quando tentamos olhar para trás, para as origens. Deus é o criador, eu sou a criatura. Não estou preocupado de não conseguir explicar em detalhes os mecanismos das minhas próprias origens ou as do universo. As escrituras dizem que “a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que se não veem”. Eu posso viver com o mistério.

  1. Em Novembro de 2010 postei o seguinte comentário em ULTIMATO online: “Sugiro a leitura da resenha oferecida pelo AMAZON BOOKS do livro”.

    Seria bom se ULTIMATO fornecesse ao leitor a entrevista, que admito, deve ter sido feita em inglês.

    Ao final da entrevista, lê-se, “Eu acredito que ambos, psiquiatras e teólogos, devem abrir suas mentes para as opiniões dos outros e não descartá-las”, recebendo destaque especial por ULTIMATO.

    Eis o problema: a tentativa de juntar ciência e fé.
    Nos Estados Unidos em alguns círculos, ainda se consegue. Na Europa, provavelmente nem casas publicadores se darão ao trabalho de publica-los. No Brasil o campo é inteiramente novel e pronto para semeaduras.

    Cientistas não interessam por essa combinação, evangélicos adoram. O que me chama a atenção é que o evangélico só acha que se será ouvido de cooptar ciência para si, fortalecendo a fé se ouvir aplausos do campo científico. Ledo engano.

    CORREIO e ULTIMATO: “Excelente matéria. Sem dúvida, a união da religião (da fé) e da psiquiatria são complementares para superação de problemas psiquiátricos como a depressão. As conquistas da medicina realizadas pelo homem também são graças de Deus”.

    Volto à AMAZON ( + )
    “Provocante livro por notável psiquiatra e educador médico abordando um mundo terapêutico, onde, segundo ele, os cristãos batizaram [sacramentaram] alguns dos piores aspectos da psiquiatria e de psiquiatras seculares [por] ter[em estes] alijados a si mesmos da ‘alma’.”

    Isto é, muitos cristãos ‘domesticaram’ Freud ou, como Tomás Aquino fez, ‘cristianizaram-no’ com Aristóteles. Tarefa de estofo para alguém como o Dr. Blazer que não é especialista em teologia e criticado entre seus pares. Duke é uma universidade respeitável, todavia.

    A AMAZON publicou dois comentários sobre o livro de Blazer, mais tarde traduzido para o português. Eis os comentários, com minha tradução livre:

    QUATRO ESTRELAS (+ )

    “Como cristão, estudante de medicina e psiquiatria, achei este livro muito valioso: única publicação atualizada que conheço que aborda o interface integrando cristianismo e psiquiatria.

    “Resumindo, o livro apresenta a psiquiatria e o cristianismo de modo a oferecer ajudar o emocionalmente / mentalmente o paciente. As tentativas de integração [psiquiatria e teologia] têm sido praticamente ausente nos últimos anos. Blazer coloca diante de suas sugestões sobre onde ir a partir daqui.

    “Valorizo diversos aspectos deste livro. Em primeiro lugar, os relatos [de] histórias[oferecidos nas áreas] de psiquiatria, psicologia, cristianismo, e a interface que ele [autor] oferece entre [todos] eles. Elas dão boa base e o contexto na busca de meu interesse em psiquiatria cristã.

    “Em segundo lugar, valorizo ​​as histórias de seus pacientes que ele usa para ilustrar seus pontos. Tais histórias jogam luz em muito dos conceitos abstratos discutidos de modo mais claro e relevante.

    “Por outro lado, tive dificuldade para seguir sua [do autor] discussão em um bom número de pontos ao longo do caminho. Talvez porque eles exigem um pouco mais de conhecimento em psiquiatria para eu entendê-los.

    “O capítulo 2, sobre a história da conversa entre o cristianismo e a psiquiatria, foi particularmente difícil. Não o mais fácil, mas, certamente é bom ser desafiado com difícil leitura, vez por outra.”

    Recomendo o livro para os cristãos interessados ​​em ajudar o doente emocional/mental/ espiritualmente.” [o autor do comentário é anônimo].

    DUAS ESTRELAS ( – )

    “O livro relata a história das técnicas de saúde mental ao longo dos últimos 200 anos, incluindo a aplicação primitiva e não-científica de tais modos pseudo-científicos de ‘cura’, [tais] como lobotomias e eletro-choque.

    “Na sequência ele concentra sua atenção sobre o novo ‘tratamento prodígio’ da psico-farmacologia – “melhor pensar por meio da química.”

    “O grande defeito do ‘cristão psiquiatra’ Blazer, é que ele não consegue pesquisar completamente aqueles a quem ele cita. Embora o livro seja bem pesquisado, ele não oferece as mais recentes pesquisas históricas sobre figuras de proa em sua área.

    “Por exemplo, levou 100 anos para aprender que Freud era um viciado em cocaína e que tratava seus pacientes com cocaína em prejuízo deles; que Jung foi ocultista [esotérico] por boa parte de sua vida, foi influência na teoria ocultista nazista, e que só voltou a um sistema de crenças cristãs, pouco tradicional, em seus últimos anos, em uma espécie de ‘conversão no leito de morte’.

    “Dr. Blazer, embora admitindo suas próprias dificuldades espirituais, não reconhece que alguns de seus conceitos mais preciosos são os de pessoas que tiveram suas próprias [e] sérias dificuldades espirituais durante períodos de suas vidas quando inventaram essas mesmas teorias.

    “Em suma, o livro é uma tentativa juvenil em [oferecer uma] catarse para este profissional da era da pseudo-ciência desacreditada da psiquiatria, no qual ele tenta equilibrar a sua própria ‘religião à jacuzzi’ [PS. A expressão aparece em um livro de J.I. Packer, “Hot Tub Religion”], ao admitir seus próprios fracassos pessoais de sua vida profissional como psiquiatra.

    “É questionável se ele é bem sucedido em sua busca pessoal para lavar a culpa que exibe ao longo do livro. Certamente representa uma outra apresentação da coligação moderna de espiritualidade-pop, ou psicologia-pop!”

  2. Cada dia mais entendo que a psiquiatria é uma ferramenta analítica do conhecimento que empobrece a compreensão das patologias psíquica. Ela mesma se tornou uma forma epistemológica pobre de explicar fenômenos psíquicos ou morais do mundo atual. Essa reportagem feita é uma expressão caricatural fiel dessa realidade pauperizada da psiquiatria hoje.

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