Colocando-me no lugar do reformador Lutero, percebo o quão nova e perturbadora lhe deve ter sido a ideia de um Deus que justifica o ímpio, pagando, ele mesmo, no sangue de seu Filho unigênito, o preço do resgate; nada mais deixando a ser feito, senão o gesto de apropriação que o coração e a boca devem executar, ao exercer a fé.

Mas como? Como se desenvolve essa justiça-processo, que sentencia como justo ao ímpio, ao satisfazer a uma justiça que se apresenta como “escrito de dívida”? Se não é por meio da compra de títulos de indulgência — pensaria nosso monge agostiniano —; se não é por meio de sacrifícios, de penitências ou autoflagelações, então como será? De graça?!

De fato, Lutero, a exemplo de seu mestre Agostinho de Ipona, lutou com o conceito da graça: uma dádiva que não saiu de graça ao Credor. Custou-lhe a vida de seu Filho para, agora, ser oferecida gratuitamente a todos — judeus e gregos. Entretanto, surpreendentemente, ela não salva a todos indistintamente; somente aquele que crê. Assim ele lia, atônito, do apóstolo Paulo: “porque [o evangelho] é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Rm 1,16).

Ao se aprofundar nos ensinos de Paulo, ele depara com uma espécie de pedra fundamental: “a palavra da fé”. Como que um ferro em brasa, para marcar corações e bocas. E Lutero lê Rm 10, 8-10:

A palavra está junto de ti, na tua boca e no teu coração; esta é a palavra da fé, que pregamos, a saber: Se com a tua boca confessares ao Senhor Jesus, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Visto que com o coração se crê para a justiça, e com a boca se faz confissão para a salvação.

“Duas condições para a salvação”, concluiria nosso monge. “As duas envolvem certa ‘palavra’. Uma se realiza no coração e a outra se elabora com a boca”. Parecem dois movimentos harmônicos, destinados a produzir um efeito de validação espiritual.

A “palavra”, aqui, traz para o plano da existência um movimento da alma em reação ao evangelho; movimento pelo qual me aproprio daquilo que ele me revela — crendo. Um gesto tão simples! Todavia, tão poderoso, tão integral! Capaz de gerar dentro de mim uma nova vida.

Se eu pudesse traduzir esse fenômeno em palavras, eu diria que, lá dentro, o coração declararia, diante de Deus, em relação ao evangelho: “isso é meu”. Ato contínuo, a boca elaboraria um pouco mais e confessaria: “isso sou eu”. E do céu, aquele que sonda os corações selaria esse ato com o Espírito Santo, como sendo eternamente válido. (Ef 1:13).

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