Minha conversa com meu pai, hoje (24/7), foi sobre nossa inutilidade para Deus.

Tenho conversado com ele todos os dias, desde 2013, quando minha mãe morreu. Brasília-Curitiba, videoconferências, via FaceTime.

O curioso é que temos conversado sobre nossa velhice. Vê se pode, nós dois idosos, conversando sobre audição, zumbido, limitações, dores, exercícios, alimentação, “cuidado com o tombo na banheira” e coisas assim.

Hoje ele disse que está cansado. Pudera, a pandemia agrava qualquer quadro de idade e solidão. E como o isolamento vai se estendendo além do imaginado, surge o desânimo com a vida.

Mas o ponto dele era mais profundo. Perguntou por que Deus não nos leva, assim que paramos de produzir. Usou essas palavras.

Com naturalidade, eu lhe perguntei se ele se sentia inútil. Ele respondeu que sim; que, aos 91 anos, pouco poderá fazer por Deus, e será cada vez mais pesado para os filhos e amigos.

Nesse momento, ocorreu-me que nós éramos, ele e eu, inúteis um para o outro. E só tínhamos a sustentar essa longa série de conversas matinais nossa vontade de estar um com o outro. Mas também, de repente, demo-nos conta de que, de um modo diferente, agora somos amigos.

Acho interessante como as utilidades que um dia existiram, de parte a parte, foram desaparecendo com as limitações da idade; foram sendo vencidas pelo tempo. Antigamente, ele era meu pai; e eu talvez o amasse porque ele era provedor, juiz e premiador. Eu tinha interesse, certamente inconsciente, em agradá-lo, em deixá-lo orgulhoso de mim, ao chegar em casa com boas notas, em lavar o carro, recolher o lixo e coisas assim. Em ser um bom filho, enfim. Talvez eu agisse como o salmista: “Amo o Senhor, porque ele ouve a minha voz e as minhas súplicas. Porque inclinou para mim os seus ouvidos, invocá-lo-ei enquanto eu viver” (Sl 116: 1, 2). E se ele deixar de ouvir minha voz, eu deixo de amá-lo? E se ele deixar de inclinar para mim os seus ouvidos, deixo de invoca-lo? Questões impertinentes para o salmista.

Por outro lado, a relação de meu pai comigo também tinha a ver com utilidade: “o que você vai ser, quando crescer?”. Não sei o quanto do seu amor por mim estava ligado a essa perspectiva futura de eu poder orgulhá-lo com uma carreira profissional de destaque, com realizações pessoais que fizessem justiça ao seu esforço para me prover alimentação, segurança, educação e estudos. Ou talvez ainda de poder assisti-lo na sua velhice. Em tempos passados, um pai festejava quando lhe nascia um filho, porque significava mais um braço para segurar uma enxada ou uma espada. Já uma filha, em muitos casos, era motivo de desapontamento.

O fato é que, quando meu pai me abordou teologicamente, hoje cedo, sobre a razão por que Deus não nos leva, “quando deixamos de lhe ser úteis”, todos esses pensamentos me vieram à cabeça.

Entretanto, ali estávamos, encontrando-nos, virtualmente, e conversando um com o outro. Seria por causa de algum compromisso? Ou porque um filho não abandona o pai? Porque deve honrar pai e mãe? Bem, esses pensamentos nos levaram a considerar que ainda que sejamos inúteis para Deus, sabemos que ainda assim ele nos ama. Sua palavra nos ensina que ele nos amou quando ainda lhe éramos inimigos! E isso faz sentido, porque não há nada que possamos lhe oferecer que ele já não tenha. Nossa utilidade pessoal para ele talvez consista em participarmos, como cooperadores, de seu projeto de reconciliação. (2Co 5,20-6,1). Mas até nisso sabemos que se de todo nos calarmos, ele pode fazer as pedras falarem. Logo, essa cooperação não pode ser a razão de seu interesse por nós.

Então, por que ele ainda nos ama? Será que, se todas as perspectivas interesseiras e utilitárias nos fossem tiradas — e também o medo que eventualmente tenhamos dele — nosso amor desapareceria?

Não precisei recorrer ao livro de Jó, onde esse desafio aparece na boca de Satanás, em forma de acusação. Não, bastou olhar para nós mesmos, naquele momento, diante da tela do computador. Estávamos ali, como temos estado há anos, dia após dia, por um único motivo: porque somos amigos. Porque eu gosto dele e ele gosta de mim. Queremos estar um com o outro; gostamos dessa visita matinal. Senão já teríamos encontrado uma desculpa socialmente aceitável para interromper, ou, pelo menos, “espaçar” as chamadas. Há dias, inclusive, em que ele não consegue ouvir bem o que estou dizendo. Seu aparelho de surdez fica desregulado. Desligamos? Não. Se combinamos meia hora, ficamos ali meia hora. A conversa fica mais para silenciosa.

Tem crescido entre nós uma plantinha que não existia quando éramos pai e filho. Uma plantinha pós-utilidade. Com sua flor de afeto.

Posso nem saber do que estou falando, mas, olhando para isso tudo, respondi a ele assim: papai, Deus não o levou, até agora, porque há uma plantinha que ainda falta florescer entre vocês dois. E ela não tem nada a ver com sua capacidade de produzir, nem com as bênçãos que ele possa lhe dar, em troca. Tem a ver com amizade. Uma amizade que se inicia aqui e, quem sabe, se desenvolverá e se tornará plena no porvir. Mas acho que ela precisa começar aqui. Ela precisa nascer e crescer neste tempo, debaixo do sol. E agora você está sozinho; e não tem ninguém que possa ser amigo dele, em seu lugar. Agora é só você e ele. É hora de amá-lo e de se deixar amar por ele de um modo novo.

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