*Versão ampliada de artigo publicado na seção Ponto Final da revista Ultimato edição #378.

Assim como a visão é usada como metáfora para o conjunto dos cinco sentidos, por ser mais completa, assim também a harmonia, no culto religioso, pode nos falar tanto de música quanto de adoração.

Se observarmos a forma como o autor de Hebreus usa o sentido da visão, em especial a partir do capítulo 11, perceberemos que há momentos em que o que não se vê com os olhos é avistado com “os olhos da fé”. Assim também, há momentos em que a harmonia musical se encontra com a harmonia da adoração; é quando os crentes entoam um cântico ao Senhor.

Esses pensamentos nos abrem portas para a construção de toda uma narrativa bíblica, baseada no uso metafórico ou literal do conceito de harmonia.

Assim é, já entrando no tema, quando definimos a adoração como uma profunda e grata harmonização do coração com aquilo que Deus é e faz. Há quem use a palavra “concordância” (adorar é concordar com o que Deus é e faz), mas imaginamos que harmonizar-se com Deus envolva mais que a dimensão racional, cognitiva ou ética dessa atitude; ela envolve dimensões emocionais e afetivas de um relacionamento. “Harmonizar-se” pode trazer a ideia de devoção, de colaboração, de submissão. De vibrar na mesma frequência, enfim.

Falando de música: na harmonia funcional o acorde “dominante” de uma escala qualquer é o quinto grau. Pense, por exemplo, na escala de dó maior: dó, ré, mi, fá, sol, lá e si. O acorde dó é o primeiro grau, a nota tônica; e o sol é o quinto grau (conte nos dedos, se precisar), a dominante. Psicologicamente falando, a “tônica” é a nossa casa, lugar de repouso e segurança, pelo qual nosso espírito anela. É o lugar de onde partimos, e para onde anelamos voltar. Já a “dominante” nos evoca um anúncio, um sentimento de “volta para casa”. Se você souber tocar um instrumento, experimente a seguinte progressão:

G7M | C7M | D | D7 | G7M

(tônica, subdominante, dominante, dominante com 7ª e, finalmente, a desejada tônica de volta).

A metáfora que proponho, ao tentar aproximar os dois conceitos ligados à palavra harmonia, é a do retorno ao Éden. O paraíso perdido seria nosso sonho de descanso, conforto, consolo, “colo” (Sl 131,2); o lugar para onde anelamos voltar. Dizem os antropólogos (e muitos teólogos) que tudo o que fazemos na vida reflete essa busca: a de “voltar para casa”, para o lugar onde experimentamos a harmonia primeira, e onde Adão introduziu acordes impróprios: sua desconfiança e desobediência, sua vontade própria, em dissonância com o que Deus é e faz. Adão resolveu tocar uma música diferente daquela com a qual, ou para a qual fora criado. Isso ocasionou a tragédia da expulsão.

Foi com Enos, 235 anos mais tarde, que surgiu o quinto grau da harmonia da adoração, “a dominante da adoração”; o grau que anuncia a volta para casa, para Deus (Gn 4,26). E muitos voltaram a bendizer ao Senhor, na busca da restauração da harmonia do coração com o Criador. Inclusive com letra e música. Por exemplo, no Salmo 103:

Bendize, ó minha alma, ao SENHOR, e tudo o que há em mim bendiga ao seu santo nome. Bendize, ó minha alma, ao SENHOR, e não te esqueças de nem um só de seus benefícios. Ele é quem perdoa todas as tuas iniquidades; quem sara todas as tuas enfermidades; quem da cova redime a tua vida e te coroa de graça e misericórdia; quem farta de bens a tua velhice, de sorte que a tua mocidade se renova como a da águia.

Como poderiam eles saber, na infância da era da fé, que com esses cânticos estavam moldando seus corações à vontade de Deus? Que, ao bendizer ao Senhor, estavam, na verdade, expressando um secreto anelo por voltar àquela harmonia original, plena e transbordante que haviam deixado no paraíso?

Até os profetas, como Isaías, anunciaram o tão sonhado retorno para casa. Isaías era messiânico. Por isso, era “subdominante”, como o foi João Batista. Elogiava os pés daquele que anuncia as boas novas:

Que formosos são sobre os montes os pés do que anuncia as boas-novas, que faz ouvir a paz, que anuncia coisas boas, que faz ouvir a salvação, que diz a Sião: O teu Deus reina! (Is 52,7)

Em resposta à esperança, o povo cantava: “Oh, vem Emanuel”. E esse cântico se ouviu na poeira dos séculos.

É interessante encontrar essa mesma temática na música negra espiritual, nos Estados Unidos. O “Negro Spiritual” fala muito de “goin’ home”, voltando para casa. Em alguns casos, referência literal à África e, em outros, metaforicamente ao céu.

Mas só em Cristo nós temos a “dominante” plena, anunciadora e consoladora.

Espere! Não seria ele “a tônica”? Sim, mas ainda não. Ele viria, primeiro, como dominante; e depois voltará como a tônica final de toda a sinfonia cósmica. Embora ainda não fosse a tônica, ele já prometia:

Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou preparar-vos lugar (Jo 14,2).

Enquanto esse retorno não se consuma, deixou-nos o seu Espírito para nos consolar dessa dor imensa do exílio, que nos torna incompletos, carentes, inseguros e emocionalmente órfãos.

E esse Consolador criou um poderoso casulo protetor para nossas frágeis almas: o “colo de Deus” entre os homens, o mistério oculto aos antigos, a igreja. Essa comunidade da harmonia, onde podemos, com liberdade e partitura (ou cifras), ao mesmo tempo improvisar “a nossa música” e harmonizar-nos com nossos irmãos. De modo que nosso cantar, nosso agir, nossos sentimentos em relação aos outros são semelhantes ao sentimento que teve Cristo Jesus (Fp 2); onde podemos oferecer e gozar de ternos afetos e misericórdias (Fp 2: 1,2).

Pensamento curioso: você gostaria de compor uma música para ser cantada no céu? Já pensou nisso? Quem sabe? Veja:

E entoavam o cântico de Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro, dizendo: Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus, Todo-Poderoso! Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei das nações! (Ap 5,3)

Sim, Moisés era músico, e seu cântico foi entoado no céu. Vai que…


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