Verdade e Amor II
Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte,efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor. (Ef 4:15,16)
izíamos na primeira parte desta conversa (Verdade e Amor I) que a verdade e o amor aparecem no argumento do apóstolo Paulo como a base para o crescimento e edificação do corpo de Cristo. Dizia ainda entender que o apóstolo está recomendando, como condição para “a justa cooperação de cada parte”, duas formas de entender a combinação entre verdade e amor, expressa na fórmula “verdade em amor”: uma verdade amorosa, no sentido de uma verdade que edifica e ajuda e um amor verdadeiro, entendido como aquele não mente para o ser amado.
Parece que o autor está pensando em juntas e articulações entre os membros do corpo. Parece também que a combinação dos dois termos se destina a amenizar a dureza da verdade, que pode se tornar cruel e justiceira, e a leniência do amor que não vê defeitos, não corrige nem disciplina.
Tanta coisa se poderia dizer sobre o tema aberto. Cortes se fazem necessários. Foi assim que terminei o texto anterior perguntando: quanto amor é preciso para resistir (ou suportar) à verdade que nossa comunhão requer para que cheguemos à intimidade cristã? Perguntando de outra maneira: nosso amor resistirá à verdade que deve existir entre nós?
Do pouco que tenho aprendido sobre essa questão, percebo que o ideal dos apóstolos é que não mintamos uns aos outros. Um dos sinais da conversão ao evangelho é o abandono da mentira e a disposição de pagar o preço do falar a verdade uns aos outros.
Não mintais uns aos outros, uma vez que vos despistes do velho homem com os seus feitos (Cl 3:9).
Por isso, deixando a mentira, fale cada um a verdade com o seu próximo, porque somos membros uns dos outros (Ef 4:25).
Este último verso está no contexto da argumentação sobre um corpo que trabalha seu próprio crescimento e “se edifica a si mesmo em amor”. Ou seja, cresce de forma saudável, conforme a orientação da cabeça.
Percebe-se que a questão da mentira não se restringe ao aspecto do “pecado”, visto pelo ângulo legal: “mentir é pecado, e crente evita o pecado”. A abordagem de Paulo certamente não menospreza esse ângulo, mas apresenta um sentido mais amplo para a busca e vivência da verdade: a construção de relacionamentos saudáveis. Como que a dizer que não se constroem relacionamentos do estilo “corpo de Cristo” com concessões à mentira.
Acrescente-se ainda que Paulo não se refere apenas ao ato de dizer a verdade ou não; ele está falando de trevas e de luz. Mentira, para ele, não é apenas a intenção de enganar; é também a ausência da verdade. Daí ser compreensível que “deixar a mentira” seria como deixar um ambiente de penumbra, de trevas. Nesse ambiente, o mentiroso, aquele de quem João diz: “e a verdade não está nele”, pode também estar sendo enganado. Poderíamos chamar a esse engano de mentira sincera; distorções da realidade nas quais acreditamos, ou sobre as quais não refletimos adequadamente. Ausência da luz da verdade.
Num ambiente assim, vivemos como se estivéssemos numa sala escura, dando encontrões uns nos outros, machucando uns aos outros, intencionalmente ou não. É o caso dos preconceitos de cor, raça, religião, classe social, sexo etc., pelos quais menosprezamos ou desprezamos pessoas, grupos ou situações. Pelo lado contrário, é o caso de mistificações, endeusamentos, fanatismos e coisas assim, pelas quais pensamos de pessoas ou grupos mais do que realmente são.
Enquadram-se como mentiras sinceras sobre nós mesmos a vaidade, o orgulho, a soberba, a presunção, a vaidade e tantos outros vícios que distorcem nossa visão de nós mesmos, colocando-nos acima dos outros. Ao contrário, também, a baixa autoestima, a síndrome de perseguição, a desconfiança sistemática, a suspeição, o medo infundado (ou de origem ainda não esclarecida), a timidez paralisante etc. Ao misturarmos essas mentiras todas em uma experiência pessoal ou coletiva, criamos um ambiente onde a luz se enfraquece, e a visão clara se torna difícil.
Não é o caso de investir mais nesse conceito de mentira, que pode ser sincera. Precisamos de mais cortes.
Proponho, no momento, pensar em um relacionamento em que as juntas sejam marcadas por essas “mentiras tenebrosas”. Talvez não consigamos excluir ninguém, se formos sinceros. Será que nossas relações têm chance de crescer e se edificar, a ponto de se tornarem maduras, duradouras?
Termino lançando uma ideia que não desenvolverei no momento. Mas que me parece ser a resposta para essas considerações para mim aflitivas. No texto anterior eu adiantava que a resposta estava no evangelho. Agora digo que a resposta está na Aliança. Em uma aliança de amor. Explico.
Só é possível a verdade verdadeira, como componente saudável das articulações do corpo, se ela acontecer no ambiente de uma aliança de amor. Uma aliança de verdade em amor celebrada explicitamente. Não virtual, nem tácita. É preciso que seja dita, verbalizada, celebrada, se possível. E se for o caso, com a Santa Ceia. Sugiro que essa aliança seja construída verbalmente, entre casais de noivos, entre marido e mulher, no grupo de oração ou na igreja, em nome de Jesus. E que o Espírito de Deus seja invocado, como quem pede milagre; poder para vencer a mentira.
A verdade, então, será dita “em amor”, e assim será recebida. Ela será buscada nas conversas, na convivência, sob o pressuposto de que somos amados; de que há segurança, de que a confissão de pecados é possível; de que a retirada das máscaras é viável; de que a luz não vem para me julgar e condenar, que ela não vem para me humilhar.
O amor, por seu turno, não será omisso, negligente, insosso, “bondoso” (como o do Papai Noel). Não, ele será verdadeiro; não passará a mão na cabeça do engano e do erro; terá espaço para a exortação, para a correção, para a admoestação. Para a verdade. Mas acontecerá dentro dos pressupostos da Aliança. O amor se entregará para salvar, para soerguer, para redimir, para reconciliar. Mas não deixará que o outro se perca, ou que a relação se desgaste; que a articulação adoeça, por medo da verdade. O amor não se calará por medo de perder o outro. Não, ele abrirá mão da sua glória e encarnará para salvar — e talvez para salvar-se.
Como pode ser isto? — perguntará você. É possível, nos dias de hoje, em que guardamos distância segura de todos, para não ferir e não sermos feridos, celebrar uma aliança dessas? É possível, em tempos de indiferença, celebrar e viver essa proximidade perigosa? Será que sobreviverão minhas atuais amizades se realmente souberem quem sou ou se eu começar a lhes propor a verdade, ainda que em amor? Será que, iluminadas as nossas relações, nossa igreja sobreviverá?
Perguntas difíceis. Minha resposta será uma resposta de fé, de quem decide crer que sim. De quem crê na comunhão dos santos. De quem crê na Aliança, na oração, no corpo de Cristo.
De todo modo, se não for assim, se não buscarmos diligentemente esse ideal, o que nos restará? Trago, para pensarmos, o texto de 1 João 1:5-9:
Ora, a mensagem que, da parte dele, temos ouvido e vos anunciamos é esta: que Deus é luz, e não há nele treva nenhuma. Se dissermos que mantemos comunhão com ele e andarmos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade. Se, porém, andarmos na luz, como ele está na luz, mantemos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado. Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós. Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça.
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