Tenho observado os idosos à minha volta, com a perspectiva do “eu sou você amanhã”. E percebo que já apresentamos, hoje, sinais do que seremos quando nos faltarem forças para sermos gente boa, e sobrar apenas o que realmente somos.

Ao fazer essa avaliação, vejo grande vantagem nos velhinhos sorridentes, alegres, bondosos, de fácil trato, que gostam de gente, de criança, de parque, de viagens em cadeira de rodas, de empregados, de arrumadeiras, de fisioterapeutas, médicos, enfermeiras etc., enchem o peito com o ar da montanha dos balões de oxigênio e sentem carinho num banho de toalha. Velhinhos gente boa. Mesmo quando são maltratados e esquecidos, vivem melhor. E morrem melhor. Talvez porque tenham vivido melhor.

O problema, a meu ver, é como chegar a ser gente boa, de modo que, quando as forças faltarem, sejamos naturalmente assim. Será uma condição que se adquira? Que se aprenda? Que se cultive? Há alguma coisa que eu possa fazer, hoje, para ser um “velhinho gente boa” amanhã?

Pensando sobre isso, imaginei que o Dia Nacional de Ação de Graças, celebrado ontem, 25 de novembro, seja uma resposta possível. Positiva, graças!

É que gratidão traz alegria, e a alegria traz felicidade; o coração alegre e feliz atrai companhia; o ingrato afasta; o coração grato nos faz confortáveis no mundo; o ingrato nos faz vítimas dele; o coração grato constrói para si e para os outros; o ingrato é sabotador de si mesmo.

Passando de “achologia” para teologia, percebo que não existe gratidão sem alguma graça. Graça, aqui, é a dádiva imerecida; o presente. Gratidão é o resultado misterioso, em nosso coração, do reconhecimento de que recebemos algo a que não tínhamos direito. Tipo, se você pagou, não precisa agradecer. Veja como o apostolo Paulo toca no assunto, ao dizer que Abraão foi justificado pela fé: Ora ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e, sim, como dívida (Rm 4:4). E a razão que apresenta para o cultivo de um coração grato: E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido? (1 Co 4:7).

De volta aos velhinhos, penso no poder formador da gratidão. Talvez seja por isso que Paulo insista conosco, em direção a Deus: Em tudo, dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco (1 Ts 5:18). Já em direção às pessoas ele recomenda: seja a paz de Cristo o árbitro em vosso coração, à qual, também, fostes chamados em um só corpo; e sede agradecidos (Cl 3:15). Que verso interessante! O apóstolo insere a gratidão como “ingrediente” de um convívio pacífico e harmônico no corpo de Cristo.

E como podemos cultivar, hoje, esse coração grato, de modo a que sejamos gente boa quando as forças nos faltarem e só restar o que realmente somos? Deixando que a gratidão conforme nossa personalidade. Talvez, num primeiro momento, buscando perceber a graça que existe nas coisas que nos acontecem. Ao reconhecer que coisas boas não vieram de nós mesmos; ao perceber que muito pouco do que temos foi de alguma forma comprado ou pago; ao distinguirmos presentes nas alegrias e também nas limitações e tristezas, começaremos a percorrer o caminho da gratidão; começaremos a desenvolver em nós uma crescente sensibilidade para “o que nos é dado”, gratuitamente. O resultado é que começamos a agradecer. Desenvolvemos uma atitude agradecida.

Mas talvez ainda não seja gratidão. Acho que há o passo seguinte; o fenômeno misterioso, que simplesmente acontece em nosso coração: sentimo-nos alegremente gratos.

Claro, poderíamos nos sentir incomodados; revoltados por depender tanto dos outros ou de Deus para ter nossas necessidades satisfeitas. Sim, alguns prefeririam poder adquirir tudo o que precisam, de modo a não dever nada a ninguém. Muito menos a Deus. Certamente, alguns até tentam. (e tendo o conhecimento dele, não o reconhecem como Deus, nem lhe dão graças. Achando-se muito espertos, tornam-se loucos” — minha paráfrase de Rm 1:21,22). E, ao tentar, conscientemente ou não, permitem que atue em seus corações o poder formador da ingratidão. Serão velhinhos rabugentos. Morrerão sozinhos e pedindo para não serem incomodados. Achando que o mundo lhes deve muito, porque foram injustiçados pela vida.

Termino tentando propor a ótica do ditado popular, que sugere “fazer de um limão uma limonada”. Ou seja, buscar dentro de si uma atitude, uma força capaz de transformar o azedo do limão, em algo doce e gostoso. O ditado não nos ensina como fazer isso. Também o popular não nos diz o “como” do ditado: “para bom entendedor, meia palavra basta”, ou sua versão mais divertida: “para bom entendedor til é acento”. Então, se não é preciso explicar a bons entendedores como fazer limonadas, aqui vão algumas frases minhas, para definir um coração grato. Sem muitas explicações. Quero chegar a ser velhinho, com um coração parecido. É por isso que estou pensando nisso hoje.

Para um coração grato,

  • refeição é banquete;
  • barraco com teto de zinco é um lar;
  • bicicleta é condução;
  • sorriso recebido é dia de sol;
  • bolinho de chocolate é pétit-gâteau;
  • cobertor “parahiba” é edredon;
  • atenção é carinho;
  • seu presente é você, caprichosamente embalado;
  • lembrancinha é consideração;
  • barraco limpo é aconchegante;
  • fogueira debaixo da ponte é lareira acesa;
  • desconto é presente;
  • manhã de chuva é dia lindo;
  • manhã de sol é nova vida;
  • crítica é aula.
  1. Caro Rubem,
    Amo considerar a vida a partir de Jesus e através das letras e pensamentos daqueles que conseguem por no papel o que vai em meu coração. Obrigada pelo texto que traduz em muito o meu desejo de olhar a vida com pureza de coração, de perceber o bem onde aparentemente não existe e de expressar gratidão nas pequenas coisas de todos os dias. Viver e envelhecer com um coração grato é de fato um desafio para mim. Eu me chamo Ana, que significa “cheia de graça” e penso que tenho esse nome justo pra lembrar que sou agraciada tds os dias de multiplas maneiras e seu texto me faz pensar que assim que quero viver e morrer: repartindo a graça que de graça recebi, com alegria e gratidão genuínas. Muito obrigada pela reflexão!

    • Prezada Analice: fico feliz com suas palavras. Tenho uma filha, a quem chamei Ana, exatamente por causa do significado que você menciona. No caso, recebi seu nascimento como uma grande graça concedida a mim e à Ângela. Melhor parar, senão eu choro.

  2. Querido Rubem ,VC se supera em cada texto ,e nós é ganhamos ! este texto ,eu já estou vivendo um pouco ,agradeço a Deus ,por ter pessoas como vc e Ângela que sempre me acodem !! Graças a Deus pelas suas vidas !!

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