O Ministério Bidimensional da Igreja

Talvez a expressão mais precisa, mais abrangente, e mais integral do ministério da igreja se encontre resumida em Efésios 3.10. Tanto a introdução a este versículo quanto a conclusão reforçam a natureza superlativa deste ministério. Aqui lemos que a missão da igreja é uma tarefa cósmica. Diversas vezes na carta aos Efésios, encontramos a frase “principados e potestades nas regiões celestiais” (1.3, 20-21, 2.2, 6, 3.10, 6.12) como o âmbito da vida e testemunho da igreja. Em outros lugares no Novo Testamento a esfera da missão se confina mais restritamente às “nações” ou aos “gentios e judeus”.

Expositores bíblicos interpretam a frase “principados e potestades” duma de duas maneiras. Alguns entendem que estes, os “Poderes celestiais” possuem um significado apenas “espiritual” e se referem ao mundo angélico — ou as forças demoníacas de Satanás ou os exércitos angélicos de Deus. Isto é a interpretação comum e popular de Efésios 6.10-20. No seu extremo, esta perspectiva limita missões apenas à “batalha espiritual” vencida em oração e evidenciada pela conversão individual de almas a Cristo. O mercado de literatura evangélica está começando a se encher de livros a respeito deste assunto.

Outros preferem uma interpretação “sociológica”, interpretando os Poderes como referências a estruturas sociais que precisam ser sujeitas aos valores de Deus como a justiça e a paz. Observe-se, por exemplo, que Efésios 6.10-20, onde a mesma linguagem aparece, se localiza imediatamente num contexto de relações sociais justas entre empregado e patrão (6.5-9). No seu extremo, esta perspectiva reduz a tarefa prioritária da igreja apenas a uma “luta social” ganha pelo engajamento político e evidenciada pela transformação coletiva de estruturas sociais.

As duas interpretações parecem tão mutuamente distantes que dificilmente uma poderia ter algo a ver com a outra. Entretanto, uma compreensão mais detalhada desta passagem invalida tal oposição. Ela revela o ministério da igreja em duas esferas, sendo tanto uma batalha espiritual quanto um engajamento histórico e social. São dois aspectos da mesma realidade. Não são posições contraditórias.

Uma analogia apropriada se encontra em Daniel 10-11. Nesta passagem a transformação de estruturas sociais aqui na terra — a dominação dos governos da Pérsia, Grécia, Síria e Egito — é reflexo duma batalha angélica no céu [5].  Dois príncipes ou anjos maus, da Pérsia e da Grécia, pelejam contra um anjo de Deus que aparece para Daniel e que foi socorrido pelo bom príncipe, Miguel, um dos chefes dos anjos. O quadro se descreve tanto do lado “espiritual” (capítulo 10) quanto “social”, de tal forma que os dois se confundem. Concluímos que há duas esferas inseparáveis e simultâneas de atuação para a igreja, a esfera espiritual e a esfera histórica e social. A missão da igreja ocorre nos dois planos ao mesmo tempo.

Oscar Cullmann deixou clara a proeminência dada aos Poderes angélicos no pensamento dos primeiros cristãos, especialmente em todo lugar onde o senhorio absoluto de Cristo é discutido. [6]  Para ele, estes Poderes, na fé do cristianismo primitivo, estão por trás de tudo que ocorre no mundo. [7] É necessário, portanto a evangelização dos próprios Poderes. Seu destino não é inequivocamente perdição, mas são os objetos de evangelização pela igreja [8] (cf. 1 Coríntios 6.3).

O uso da expressão, “regiões celestiais” em Efésios 1.3, 20, 2.6 e 3.10 sugere que os lugares celestiais são a esfera onde os cristãos, com um pé em cada um de dois mundos, já experimentam a vida ressurreta em Cristo, mas também onde os Poderes ainda exercem domínio. Com eles a igreja luta, e a eles a igreja prega e faz a multiforme sabedoria de Deus conhecida. Que isto esclarece a proclamação do evangelho entre as etnias do mundo se evidencia pelo paralelo próximo à expressão em Efésios 3.8, onde o apóstolo Paulo recebe a graça de pregar aos gentios. A idéia é revolucionária para uma missiologia integral e transformadora: a evangelização dos povos do mundo, inclusive qualquer prioridade dada aos povos “não-alcançados” — Romanos 15.20-21 — só se realiza efetivamente dentro do contexto maior de redimir as potências espirituais por trás deles, no plano espiritual e no plano sócio-político. É uma e a mesma tarefa.

Carl Jung uma vez relatou, muito inquieto, que no período depois da Primeira Guerra Mundial e logo antes de Hitler chegar ao poder, seus pacientes alemães sofriam do distúrbio de pesadelos mitológicos de violência e crueldade que pareciam transcender os limites da consciência pessoal. Algum monstro profundo e esquecido estava se mexendo, prestes a irromper no mundo, encarnado não em um endemoniado solitário e selvagem entre os túmulos, mas num homem capaz de galvanizar uma nação inteira numa possessão diabólica. [9]

Precisamos recuperar o ministério de exorcismo, espiritual e político. O exemplo paradigmático de exorcismo coletivo no Novo Testamento é a purificação do templo por Jesus (Marcos 11.11, 15-19 par). No Evangelho, o ato estabelece o clímax do seu ministério, o enfoque central da sua viagem a Jerusalém, e a provocação final antes da sua prisão e execução. Todos os relatos, inclusive o de João, usam o termo formuláico para exorcismo, exballo, para descrever o seu ato de “expulsar” os comerciantes do templo. Seu ato ao mesmo tempo foi espiritual e político e assim também foram as repercussões.

Em resumo, é necessário fazer uma outra distinção: Primeiro, o ministério da igreja tem uma característica coletiva, não só individual. Não é fácil entender e aceitar esta idéia no Ocidente aonde o individualismo predomina. Entretanto, isto não é o caso da cultura hebraica e por conseqüência da perspectiva bíblica. Lá, é o princípio de solidariedade corporativa que predomina. Basta lembrar dos conceitos bíblicos da eleição, da aliança, do dilúvio, do exílio e no Novo Testamento do corpo de Cristo. O alvo da nossa missão implica não somente no anúncio a indivíduos. Implica também num anúncio a todos os Poderes que governam o nosso mundo, e isto porque a ressurreição de Jesus realizou uma mudança não só na vida de indivíduos mas na própria direção da história. Esta não mais caminha para a “vaidade” e a “escravidão da corrupção”, e sim para a “liberdade da glória” e a “libertação” (Romanos 8.18-25).

Segundo, o ministério da igreja também possui uma característica pessoal, não impessoal. Dizer que o alvo da missão não é só individual mas também coletivo não significa que o objeto da missão seja impessoal. Há muita confusão no uso destes termos quando se trata da perdição, da salvação e do ministério evangelístico da igreja. Esclarecemos, “pessoal” não é o antônimo de “coletivo”, mas de “impessoal”. Por sua vez, “individual” não é o antônimo de “impessoal”, mas de “coletivo”. O evangelho é anunciado por e para seres pessoais, não estruturas impessoais, como algumas interpretações sociológicas afirmam. Enquanto capítulo 6 nos diz que a nossa luta não é contra “carne e sangue”, isto é, contra seres humanos, não diz que a luta é impessoal, como se fosse uma luta apenas econômica, política ou até demográfica. Não, “os principados e as autoridades” são seres pessoais, como já vimos na referência ao livro de Daniel. Finalmente, é importante manter estas duas características juntas — coletivo e pessoal — não predominando uma sobre a outra, no que se diz a respeito do ministério da igreja. A tarefa de “transformar as estruturas sociais”, encarada e assumida tanto na sua dimensão angélico-espiritual quanto na sua encarnação político-social, é integral a missão da igreja. [10]

Em síntese, o engajamento missionário é uma luta espiritual. Por esta razão, o apóstolo enfatiza em capítulo 6 a necessidade dum preparo espiritual, destacando uma vida de oração, um discernimento da verdade, a prática da justiça, o manejo do anúncio do evangelho, a defesa da fé, e uma apologética da salvação (o pano de fundo de Efésios 6 em Isaías 59 duma nação injusta, mentirosa, violenta e imoral). Porém, tal espiritualidade não é extraterrestre como a espiritualidade monástica que aborrece este mundo e esta história. Ao contrário, o ministério da igreja se realiza aqui neste mundo e dentro da nossa história. É também uma missão histórica e social. Estas duas esferas “se casam” de tal forma que a “espiritualidade” evangelístico roga “seja feita tua vontade assim na terra como no céu”. Tal “espiritualidade” invade toda dimensão de relação humana. Depende de oração, oração essa que não foge do mundo mas que mergulha para dentro dele, como Jesus alcançou aos pecadores, a fim de transformá-los pelo poder do Espírito Santo. São duas esferas do ministério da igreja, espiritual e histórico-social. Também há duas características deste ministério, coletiva e pessoal.

(a ser continuado…)

Notas:

[5]  Veja, por exemplo, Daniel 10.13,20-21, Isaías 41-46 e 48, Jubileus 15.31-32, 1 Enoque 89-90, 3 Enoque 14.2, 17.8 e 26.12, Testamento de Néftali 8 e Apocalipse 12-17. Para a relação íntima entre a dimensão “espiritual” e a “político-estrutural” veja o uso em Lucas 12.5 de exousia para se referir primeiro ao “poder” de Satanás, e em 12.11, apenas seis versículos depois, às “autoridades” humanas! Também a mesma relação bipolar se estabelece em Colossenses 1.16: “porque nele [o Filho, v.13] foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis: Tronos, Soberanias, Principados, Autoridades, tudo foi criado por ele e para ele” (tradução da Bíblia de Jerusalém).
[6]  The Earliest Christian Confessions. London: SCM Press, 1949, pp. 58-62; veja também, Das origens do evangelho a formação da teologia cristã, São Paulo: Novo Século, 2005.
[7]  Christ and Time. Philadelphia: Westminster, 1964, pp. 191-192
[8]  A tradução de katargéō em 1 Coríntios 15.24 e 26, em vez de “destruir”, deve ser “nulificar”, ou “entregar”. Afinal de contas, se houver destruição, o que sobra para Cristo sujeitar (hupotássō, o virtual sinônimo de katargéō)? Pois, os poderes são pressupostos novamente em versículos 27-28. A perspectiva se evidencia num documento de Nag Hammadi, O Tratado Tripartido (124:25-28), “Não somente os humanos precisam de redenção, mas também os anjos, precisam da redenção”. Certamente, esta é a posição apresentada em Colossenses 1.20, que aguarda a reconciliação “de todas as cousas, quer sobre a terra, quer nos céus”.
[9]  Citado por WINK, Walter. Unmasking the Powers: The Invisible Forces that Determine Human Existence. Philadelphia, Fortress, 1986, p. 50.
[10]  Niels Bohr, o pai da mecânica quantum, usou linguagem semelhante quando se referiu à “inseparabilidade das perspectivas materialista e espiritualista,” já que “o materialismo e o espiritualismo, que são definidos somente por conceitos emprestados um do outro, são dois aspectos da mesma coisa”. Veja HONNER, John “Niels Bohr and the Mysticism of Nature”, in Zygon, 17 (1982), página 246.

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *