Ao refletirmos sobre a leitura bíblica devocional dissemos que devemos pedir que Deus nos fale pessoalmente. De tal modo que ela se transforme, também, em uma leitura da nossa própria vida. Terminamos dizendo que, crendo que Deus nos fala por meio da sua Palavra, podemos assumir a postura de quem ouve.

Então pergunto: o que significa assumir a postura de quem ouve? A imagem que me vem, como resposta a essa questão é a do Filho Pródigo. No início da parábola, Jesus o descreve como impenetrável, intratável; ao ponto de não restar opção ao pai senão dar-lhe sua parte na herança e deixá-lo partir. Esse filho não ouvia mais. Não sabemos quando essa distância se instalou, mas certamente ela vem de barreiras que surgiram na relação e que o levaram a uma surdez seletiva; uma surdez à voz do pai.

O que percebemos em relação à atitude do pai é a esperança de vê-lo aparecer de volta lá na esquina. Só que, para que isso aconteça, é necessário que o filho volte a ouvir. E o pai o conduzirá a essa condição, se ele deixar. Durante esse tempo de estranhamento, a voz que ressoará, ainda que inaudível, no coração do filho, há de ser: “vinde, pois, e arrazoemos, diz o Senhor; ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a lã” (Is 1:18).

Arrazoemos? Sim, uma palavra que chama à razão, ao diálogo, à argumentação, de ambas as partes. Para que isso acontecesse, em sua parábola, Jesus o conduz a uma condição de quietude, de silêncio, de aparente fim-de-linha. E ali, entre os porcos, ele readquire a capacidade de ouvir. Na verdade, esse “ouvir” assume a forma de leitura, de meditação.

Que transformação! Não sabemos quanto tempo se passou para que isso fosse possível. Mas sabemos que agora ele tem condições de ler, criticamente, o discurso da sua vida; sua “narrativa pessoal”. A partir dessa postura mais permeável, a leitura que faz, certamente difícil e tumultuada, entre mágoas, acusações e, também, consciência de pecado, se transforma em “arrazoado”, estabelecido com o pai, presente apenas em seu interior, como um interlocutor invisível.

Agora, serenado o coração, ponderações feitas, grandes e inflamados discursos reduzidos ao choro, o rapaz medita. Um movimento que envolve corpo, alma e espírito. Este último, atuando, por obra do Espírito Santo, como canal de comunicação para o Pai. Sim, ele já não está lendo, compreendendo, falando, chorando sozinho. Está na presença do Pai. Mesmo que não tenha plena consciência do fato. E o pai só está presente porque ele está ouvindo.

Sabemos como termina essa meditatiodo filho: “Então, caindo em si, disse: quantos trabalhadores de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui morro de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com o meu pai” (Lc 15:17-18a).

Caindo em si? Sim, em sua surdez, ele esteve fora de si. Entretanto, por conta da paciência daquele que nos chama à razão, ele chegou ao ponto em que a leitura de sua própria vida se tornou não somente possível, mas também redentora.

A meditação devocional (meditatio) é um fenômeno de natureza espiritual no qual a leitura das escrituras se transforma, frequentemente, em leitura da própria vida; o texto se transforma em voz de Deus; essa voz, uma vez ouvida, se transforma em arrazoado, em conversa. E libera poder (porque o evangelho é poder de Deus), a desencadear profundas transformações no coração piedoso. Um poder tão forte e tão completo que pode ser descrito, sem exagero, como algo que estava perdido e foi achado; ou como alguém que estava morto reviveu.

Nem toda meditação precisa ser assim tão dramática. Mas é necessário que desenvolvamos a habilidade de ouvir, no silêncio de nós mesmos.

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