Quando, no princípio, Deus disse: “Haja”, o que se ouviu?

Que pergunta estranha, não? Mas insisto: será que havia alguém para ouvir essa ordem, que não fosse o próprio Deus?

Eu quero saber, na verdade, se o comando criador de Deus teve o som de uma voz do céu, como quando Jesus foi batizado, ou na transfiguração, se teve um som de ventania, de uma explosão, tipo big bang, o “som de muitas águas”, ou algo assim. Enfim, se houvesse “ouvidos para ouvir” o comando criador de Deus, o que teriam ouvido?

Sem mais delongas, minha resposta: música.

Está bem, está bem, (também sem mais delongas) eu sei que C. S. Lewis descreveu a criação de Nárnia dizendo que o Leão Aslam canta uma música maravilhosa que vai criando tudo. Imagino uma imensa, complexa e indescritível harmonia, com milhares de “instrumentos-tronco” perfeitamente mixados em seus timbres, harmônicos e volumes, tocando cada um suas notas geradoras e pausas-motrizes, de modo a trazer à existência o que não era.

No entanto, desta vez, não foi essa cena que me inspirou, mas outra história.

Eu estava assistindo a um filme antigo, chamado A Lenda do Pianista do Mar. (1900: La Leggenda del Pianista Sull’Oceano). Quis conhecê-lo porque soube que sua trilha sonora tinha a assinatura do mestre Ennio Morricone, que tenho apreciado há décadas.

A história é bem água-com-acúcar. Começa no ano 1900, e fala de um pianista excepcional que vivia num navio que fazia o percurso Europa-América. Entre outras habilidades, ele tinha o dom de improvisar músicas que descreviam o caráter das pessoas. Ele divertia seus amigos ao tocar “a música da pessoa”, assim que a observava entrar no salão de baile. E era admirável como a música se parecia com a pessoa “retratada”.

Montou-se um estúdio no navio para poder gravá-lo, uma vez que o pianista nunca pisava em terra firme. No momento em que ele começa a dedilhar algumas notas, em busca de inspiração, aparece uma moça, de rosto sujo, que usa a janela como espelho. Ela fica ali, arrumando o rosto e o cabelo, sem perceber que é vista de dentro do estúdio.

O pianista olha para ela, faz uma pausa e começa a tocar, sem tirar os olhos hipnotizados dela. Nos créditos autorais, lê-se que o título dessa música, tema principal do filme, até então somente sugerido, chama-se Playing Love[1]. A cena é de “música à primeira vista”. Claro, a música é linda e não há como dizer que não seja a “música da moça”. Morricone é um gênio. Além disso, é nesse momento que se percebe que todas as músicas de fundo que já haviam sido apresentadas nada mais eram que variações, prenúncios dessa. “Amor”.

O filme segue, mas eu fico aqui. Melhor não contar.

Isso tudo me leva a pensar na “minha música”. Se Deus um dia disse: “haja o Rubem”, como terá sido essa música? uma música que, inequivocamente, fosse minha, fosse eu?

Eu sei, estou viajando. Mas sinto que essa música tem tocado dentro de mim, a vida toda. Ela aparece aqui e ali, tímida, sutil, quase inaudível. Fica mais perceptível nos aniversários, nos casamentos ou quando uma criança nasce. Acho que aos pais é dado ouvir fragmentos da música de seus filhos, quando nascem, ou em momentos especiais de suas vidas.

Eu imagino ouvi-la dentro em mim quando Deus está recriando algo; refazendo o que se havia rompido, estragado, perdido. Ela quase se desmascara em momentos de confissão e perdão. Ah, sim, também nos reencontros muito acalentados, depois de longas separações.

É por causa dessas observações que penso que essa música essencial tem ligação com a ressurreição. Porque a ressurreição é uma nova criação; o que não era mais, volta a ser. Se for assim, o mundo (agora habitado) ouvirá novamente a música do grande “haja”, quando Deus disser: “eis que faço novas todas as coisas”. Será uma sinfonia celestial.

Não sei, num momento são acordes esparsos, noutro orquestrações cheias, mas que mostram apenas alguns compassos e logo se misturam com os sons da vida. Vão fazendo uma espécie de prelúdio, de ensaio, para o grande concerto.

Imagino que quando Deus finalmente tocar a minha música abertamente, talvez seja apenas um solo de oboé acompanhado de muitas cordas, e eu a reconhecerei e direi: essa sou eu; essa música é o meu nome. Ato contínuo, verei que essa “assinatura do Criador” estava escrita numa certa pedrinha branca, copiada de um livro antigo, escrito antes da fundação do mundo.

Então ouvirei todas as outras músicas, e me perceberei como parte da Criação, parte de uma imensa sinfonia de amor. E ouvirei Deus playing love.

Que viagem, hem? Mas agora preciso terminar o que comecei.

A música é ingrediente da minha receita. Não me refiro àquela que eu toco, não o imperfeito louvor ou a frágil adoração que apresento ao meu Criador (ecos longínquos da harmonia essencial que vibra em mim), mas aquela que me criou e ainda se desenvolve em mim, pelo seu Espírito; aquela da qual eu sou feito.


[1] Veja a cena, abaixo. https://www.facebook.com/ramorese/videos/1091907837506126/

    • Mas é claro. Tem a música de todos (a grande sinfonia) e a música de cada um. Na música de todos sempre cabe mais um. Na de cada um só cabe um. Nos encontramos, então, na grande sinfonia. 😉

    • Obrigado, Faustino. Veja alguns desdobramentos desse pensamento no texto “Os salmos e a música essencial”. A ideia é que, talvez Deus esteja nos ensinando a tocar, junto com ele, a “nossa música”, essa música na qual somos trazidos à existência, esse soar do nosso diapasão pessoal. E os salmos nos ajudam nesse curso de “música essencial”. Os salmos nos ensinam a vibrar na frequência do louvor e da adoração. E não consigo pensar em curso melhor a fazer: aprender a linguagem do coração. Em especial, quando ele devolve ao Criador, o que temos de melhor: nossa adoração que, ao final, é a harmonia total com o que ele é e faz. Concorda?

  1. Esse fluxo suave de sentimento que fluiu de seu coração e hidratou nossas ressequidas folhas foi música delicada que tocou as cordas da sensibilidade. Verei o filme, ouvirei a música, lelbrarei de vc, ainda moço. Obrigado.

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