No processo de estudar e ponderar alguma passagem bíblica costumo consultar alguns comentários. Favoreço especialmente N. T. Wright tanto pelo seu conhecimento técnico da língua e cultura antigas e a sua perspicácia teológica mais abrangente quanto pela sua facilidade de comunicação. Normalmente procuro sintetizar as suas ideias com as contribuições de outros para chegar às minhas, mas quando li o comentário de Wright sobre Atos 1.9-14 achei que valia à pena, especialmente pela sua explicação de “céus” e “terra”, simplesmente traduzir e passar adiante. O que se segue, portanto, é a minha tradução do seu comentário sobre a passagem unto com a minha tradução da tradução dele da passagem…

9Quando Jesus falou isto, ele foi elevado enquanto eles estavam olhando, e uma nuvem o encobriu da sua vista. 10Eles estavam olhando para o céu quando ele desapareceu. Então, bem aí, dois homens apareceram, vestidos de branco, em pé ao lado deles.

11“Galileus”, eles falaram, “por que vocês estão aqui olhando para o céu? Este Jesus, que foi levado de vocês para o céu, voltará do mesmo jeito que vocês o viram indo para o céu.”

12Então eles voltaram para Jerusalém do monte chamado Monte das Oliveiras, que era perto de Jerusalém, mais ou menos a distância você iria viajar num sábado. 13Eles então (“eles” aqui significa Pedro, João, Tiago, André, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago o filho de Alfeu, Simão o nacionalista, e Judas o filho de Tiago) entraram na cidade e foram para a sala no andar superior onde estavam hospedados. 14Eles todos se dedicaram de todo o coração à oração, com as mulheres, inclusive Maria, a mãe de Jesus, e os seus irmãos.

Estávamos jantando com alguns amigos que haviam se mudado recentemente para o oeste do Canadá.

“Então”, a minha esposa começou, “vocês já se sentem em casa em Vancouver?”

“Não é como meu lar”, respondeu a esposa energeticamente. “É o céu!”

“Bem, querida”, comentou o seu marido, um teólogo, chamando sua atenção e talvez demonstrando piedade excessiva, “se você soubesse das coisas, saberia que o céu é o seu verdadeiro lar.”

“Não”, ela respondeu. “o lar é um lugar onde há trabalho duro, e perturbação, e todo tipo de dificuldade. Aqui, estou livre de tudo isto. Aqui é o céu!”

Tenho pensado nessa conversa muitas vezes, e quero discordar com o teólogo-marido. Embora muitos hinos e orações (a maioria do século XIX e início do século XX) falem do céu como o nosso lar, esta não é a maneira que a Bíblia habitualmente coloca a questão. Na Bíblia, o céu e a terra são as duas metades do mundo criado por Deus. Eles não são tanto como duas metades de uma laranja, mais ou menos idênticos, mas ocupando espaço diferente. Eles são mais como o peso de um objeto e o material de qual é feito, ou talvez como o significado de uma bandeira e o tecido ou papel de qual ela é feita: duas maneiras (relacionadas) de ver a mesma coisa, duas dimensões diferentes e interligadas, uma talvez explicando a outra. Falar sobre “o céu e a terra” é a maneira, na Bíblia, de falar sobre o fato, como muitas pessoas e muitas culturas tem percebido, que tudo no nosso mundo (vamos chamar de “terra” por enquanto, embora isto possa dar confusão porque isto também é o nome que damos para o nosso planeta específico dentro do nosso sistema solar específico, enquanto “terra” na Bíblia se refere mesmo ao cosmos inteiro de espaço, tempo e matéria) possui uma outra dimensão, um outro tipo de realidade, que faz parte dele também.

 

Pode chamar esta outra realidade, esta outra dimensão, de realidade “interior”, se quiser, pensando talvez em uma bola de golfe que possui uma realidade exterior (a superfície dura e mosqueada) e uma realidade interior (o interior elástico, bem compactado). Mas pode também facilmente pensar na terra como a realidade “interior”, o material denso do mundo onde moramos neste momento, e o “céu” como a realidade exterior, o “lado” da nossa realidade que está aberto a todo tipo de outras coisas, a significados e possibilidades que a nossa realidade “interior”, nosso pequeno e ocupado mundo de espaço, tempo, e matéria às vezes exclui.

Se estas ilustrações não ajudam, deixe-as de lado e concentre-se na realidade. A realidade é esta: “céu” na Bíblia é o espaço de Deus, e “terra” é o nosso espaço. “Céu” não é simplesmente “o lugar feliz onde o povo de Deus vai quando morre,” e certamente não é o nosso “lar” se por isto você quer dizer (como muitos cristãos, infelizmente, querem dizer) que o nosso destino último é de deixar completamente “terra” e ir, ao invés disto, para o “céu”. O plano de Deus, como vemos vez após vez na Bíblia, é de haver “novo céu e nova terra”, e de os dois se unirem de uma vez por todas em sua renovação. “O céu” pode até ser o nosso lar temporário, depois desta vida presente; mas o mundo inteiro novo, unido e transformado, é o nosso destino último.

Parte do objetivo da ressurreição de Jesus é que era precisamente o início desta renovação maravilhosa e transformadora deste mundo. Não foi simplesmente um acaso ele ter voltado à vida de novo, como se fosse por algum equívoco de “natureza” anteriormente insuspeita, ou por algum “milagre” extraordinário aonde Deus fez o impossível só para mostrar o quão poderoso ele era, onde a morte de repente virou do avesso neste caso específico. Ao contrário, foi porque na cruz ele de fato lidou com a principal força do mal, a decadência e a própria morte, que o poder criativo de Deus, não mais detido como era pela rebelião humana, pode finalmente irromper e produzir o início, o projeto piloto da realidade da união do céu e da terra que era o plano de Deus para o mundo inteiro. Isto é parte, pelo menos, da explicação da pura estranheza do corpo ressurreto de Jesus, que nos choca em todos os relatos da páscoa. No momento exato que eles estão nos explicando que realmente era ele, que ele não era um fantasma, que ele podia comer e beber, justamente naquele momento ele aparece e desaparece sem aviso. É como se os primeiros discípulos realmente não soubessem como explicar isto também, e estavam simplesmente fazendo o melhor possível para explicar o que viam.

Mas uma vez que compreendemos o que “céu e terra” significam na Bíblia, e o que “céu” não é, repito, não um local dentro do nosso próprio cosmos de espaço, tempo e material, situado em algum lugar lá em cima (“em cima” do ponto de vista de quem?  Europa? Brasil? Austrália?), então estamos prontos, ou tão prontos quanto poderemos estar, para entender a ascensão, descrita aqui por Lucas bem simples e brevemente. Nem Lucas e nem os outros primeiros cristãos pensavam que Jesus se tornara, de repente, um astronauta primitivo, disparando para entrar em órbita ou ir além, de tal modo que se você buscasse até aos confins daquilo que chamamos do “espaço” poderia eventualmente encontrá-lo. Eles acreditavam que “céu” e “terra” eram duas esferas interconectadas da realidade de Deus, e que o corpo ressurreto de Jesus era o primeiro (e, por enquanto, o único) objeto que está plenamente à vontade em ambas e assim, em qualquer uma, antecipando o tempo quando tudo será renovado e unido. E assim, já que como T.S. Elliot afirmou, “a humanidade não aguenta muita realidade”, esta realidade nova e espantosa de uma criatura de céu-e-terra não poderá ainda viver em ambas as dimensões juntas, mas ficará à vontade dentro da dimensão “celestial” por enquanto, até a hora que céu e terra finalmente serão renovados e unidos. Naquele momento, é claro, este próprio Jesus renovado será a figura central.

Este é o ponto do evento, e a sua explicação, como os encontramos nos versos 9-11. Jesus é “elevado”, indicando para os discípulos não que ele se destinava para algum lugar além da lua, além de Marte, ou onde quer que seja, mas que ele estava indo para o “espaço de Deus”, a dimensão de Deus. A nuvem, como frequentemente na Bíblia, é o sinal da presença de Deus (pense no pilar da nuvem e fogo quando o povo de Deus peregrinava pelo deserto, ou a nuvem e a fumaça que enchia o templo quando Deus repentinamente se tornara presente de uma nova maneira). Jesus havia ido para a dimensão da realidade de Deus; mas ele estará de volta no dia quando essa dimensão e a nossa dimensão presente serão unidas de uma vez por todas. Esta promessa paira no ar sobre toda a história cristã desde aquele dia até hoje. Isto é o que nós queremos dizer pela “segunda vinda”.

Há mais duas coisas que são, como dizemos, “estão acontecendo” nesta passagem. Alguns leitores do primeiro século teriam percebido uma delas, alguns a outra, alguns talvez ambas. Primeiro, uma das promessas centrais do Antigo Testamento para os primeiros cristãos estava em Daniel 7, onde “um como o filho do homem” era elevado, nas nuvens do céu, para o “Ancião dos Dias”, e apresentado diante dele e recebia poder real sobre as nações, e especificamente sobre as “bestas”, os monstros representando as forças do mal e do caos. Para aquele que há muito tempo ponderava aquela passagem – e há bastante indícios que os primeiros cristãos faziam exatamente isto – a história da ascensão de Jesus iria indicar que Daniel 7 fora cumprido de uma maneira dramática e inesperada, com a figura humana que sofrera nas mãos dos poderes malignos do mundo agora sendo exaltado para a própria presença de Deus mesmo, lá para receber poder real. Isto se encaixa tão bem com a passagem anterior (vv. 6-8) que é difícil supor que Lucas não o tivesse intencionado.

Segundo, muitos dos leitores de Lucas saberiam que quando um imperador romano morria, era costume declarar que alguém tinha visto a sua alma escapando do seu corpo e subindo para o céu. Se você for para o topo do Fórum em Roma, e ficar embaixo do Arco de Tito, e olhar para cima, verá uma gravura da alma de Tito, que era imperador nos anos 80 do século I, ascendendo para o céu. A mensagem era clara: o imperador se tornara um deus (que possibilitava a transformação” do seu “filho” e herdeiro em “filho de Deus”, que era um título útil se você quisesse governar o mundo). O paralelo esta vez não é tão exato, já que Lucas claramente afirma que não foi a “alma” de Jesus que ascendeu para o céu, deixando o seu corpo em algum lugar para trás, mas sim todo o seu ser, renovado, completo e corporal. Mas há um sentido de que Jesus estava superando qualquer coisa que os imperadores romanos pudessem imaginar para si mesmos. Ele é a realidade, e eles a paródia – um tema que reparamos mais que uma vez no desdobramento da história que Lucas conta. E quando, no final do livro de Lucas, as boas novas de Jesus são pregadas em Roma mesmo, abertamente e sem impedimentos, deduzimos “de fato, é assim que tinha que ser”! Ele é o rei verdadeiro e de direito do mundo, compartilhando o próprio trono, e de alguma forma, a identidade do único Deus verdadeiro.

A primeira e mais importante resposta para este evento extraordinário, sem precedentes e ainda difícil de descrever, é, de fato, o culto. Lucas frequentemente nos informa sobre a devoção dos primeiros cristãos à oração. Quando voltamos com eles nesta ocasião para o Monte das Oliveiras para a casa onde foram hospedados, e olhamos à sala e vemos estes homens e mulheres perplexos, mas animados – inclusive a própria mãe de Jesus – se dedicando à oração, devemos sentir uma identificação forte com eles. Todos aqueles que nomeiam o nome de Jesus, que o cultuam, que estudam a sua palavra, são chamados para serem povo de culto e oração. Por que?

Bem, é óbvio, não é? É precisamente no culto e oração que nós, enquanto ainda na “terra” no sentido que já explorei, nos encontramos compartilhando a vida do “céu”, onde Jesus está. As referências constantes à oração em Atos são um sinal que é assim que seres profundamente humanos normais, frequentemente perplexos, os apóstolos e outros com eles, descobriram que a sua história se misturava com a história daquilo “que Jesus continuava a fazer e ensinar”.  A partir da ascensão, a história dos seguidores de Jesus ocorre nas duas dimensões. Isto, por sinal, é a razão do conflito inevitável com o Templo, porque o Templo era visto como o lugar chave onde o céu e a terra se encontravam. A ressurreição e a ascensão de Jesus afirmaram o contrário, e os seguidores de Jesus tiveram que trabalhar o significado disto. Como nós hoje em dia não apenas lemos Atos mas tentamos seguir Jesus e testemunhar do seu senhorio sobre o mundo, é por meio da oração e culto que nós também podemos conhecer, apreciar e ser energizados pela vida do céu, aqui mesmo na terra, e desenvolver o que isto significa em termos de outras reivindicações, outros senhores, outras maneiras de viver.

 

Wright, N.T. Acts for Everyone, Part One: Chapters 1-12 (The New Testament for Everyone) (pág.s 10-15). Westminster John Knox Press. Kindle Edition. 2011.

  1. Obviamente estamos enganados em pensar que o seu é apenas um lugar de descanso. Será um lugar de governo, de cidades, de príncipes que terão o domínio e autoridade sobre nações, ninguém via para o céu para ficar andando de nuvem em nuvem sem ter nada para fazer. Um Deus que trabalhou 6 dias e no sétimo descansou certamente não vai deixar milhares de pessoas paradas na eternidade por toda a eternidade.

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