O ministério integral (parte 3)
O Ministério Bilateral da Igreja
É este ministério abrangente, diante dos Poderes celestiais — tanto no plano espiritual, quanto no plano social — que estabelece o contexto de Efésios 4.7-16. E é nesta passagem que aprendemos que não há evangelismo integral sem uma eclesiologia integral. A transformação de pessoas e da sociedade pelo evangelho é conseqüente duma comunidade de discípulos transformada integralmente. Eis a passagem segundo a tradução de João Ferreira de Almeida, edição revista e atualizada:
(7) E a graça foi concedida a cada um de nós segundo a proporção do dom de Cristo. (8) Por isso diz: Quando ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro, e concedeu dons aos homens. (9) Ora, que quer dizer subiu, senão que também havia descido até às regiões inferiores da terra? (10) Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para encher todas as cousas. (11) E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres, (12) com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, (13) até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo, (14) para que não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para outro, e levados ao redor por todo vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro. (15) Mas seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo,…
Normalmente esta passagem é interpretada como uma bela referência à edificação interna e portanto, uni-direcional, da igreja. Três observações nos ajudam a entender a passagem duma maneira mais abrangente, como uma referência bidirecional tanto à edificação interna quanto à evangelização externa. Primeiro, a frase substantiva, “todas as cousas” em 4.10 e a frase adverbial, “em tudo” em 4.15, traduzem uma palavra que significa nos dois casos literalmente “o todo”. “O todo” por sua vez é um termo técnico usado nesta carta (1.10, 11, 22, 23, 3.9, 5.13) para abreviar a outra frase técnica mencionada acima, “as potestades e principados” [11]. Prefiro então traduzir a frase em 4.15 assim, “o todo cresce [12] (as potestades e principados, ou o cosmos) naquele que é o cabeça, Cristo”. Segundo, o “serviço” dos santos, mencionado em 4.12, à luz de 3.10, só pode se referir ao engajamento missionário da igreja. E terceiro, 4.12 deve ser lido sem as vírgulas como nos manuscritos antigos, que não possuíam pontuação. Eis a nossa tradução interpretativa à luz das observações acima:
(7) Mas a cada um de nós foi dada a graça conforme a medida do dom de Cristo. (8) Por isso se diz: [13] Quando ele subiu às alturas, cativou o próprio cativeiro, deu dons ao povo. (9) Que significa “subiu” senão que ele também desceu lá em baixo até a terra? (10b) Aquele que desceu é também aquele que subiu acima e além de todos os céus para que o todo [14] se completasse, (11) isto é [15] ele deu [16] uns para serem apóstolos, outros profetas, outros evangelistas, e outros pastores e mestres, (12) [17] para a capacitação dos santos para a obra do ministério para a construção do corpo de Cristo, (13) até que todos nós alcancemos a unidade da fé e do bom conhecimento do filho de Deus, à maturidade completa de pessoas, à medida da estatura da compleição de Cristo, (14) para que não sejamos mais crianças, arrastados pelas ondas e levados por qualquer vento de ensinamento pelo engano das pessoas e dos seus truques que nos levam à decepção. (15) Mas falando a verdade em amor, façamos crescer “o todo” [18] na direção daquele que é o cabeça, Cristo…
Primeiro, reparamos a atuação de Cristo nas duas esferas simultaneamente. Sua concessão dos “dons” da liderança à igreja corresponde à sua atuação nas regiões celestiais de dominar todos os Poderes e conceder dons às pessoas. No plano histórico, reparamos que uma descrição bidirecional do ministério da igreja começa a se vislumbrar — a edificação interna direcionada aos membros da igreja e a evangelização externa direcionada ao mundo ainda não atingido pela plenitude de Cristo (4.10). Para chegar ao alvo de “plenificar o todo” (4.10, compare Bíblia de Jerusalém) para que “façamos o todo crescer naquele que é o cabeça” (4.15), Jesus concedeu à igreja uma liderança. Esta liderança recebe a incumbência (4.12) de capacitar os santos (o sentido literal da frase “com vistas ao aperfeiçoamento dos santos”) para o seu engajamento evangelístico (o sentido de “o desempenho do seu serviço” de 4.12). Este engajamento também não é um fim em si, pois visa ainda a integração dentro da igreja dos evangelizados (o sentido de “edificação do corpo de Cristo”). E assim o círculo se completa: treinamento capaz levando ao engajamento evangelístico efetivo retornando para o próprio aumento da igreja e a sujeição deste mundo todo (compare “crescer o todo naquele que é o cabeça” de 4.15 com 1Coríntios 15.28 e Filipenses 2.10-11, 3.21).
igreja |
capacitação |
→ |
evangelismo |
mundo |
↑ |
↓ |
|||
edificação |
← |
integração |
Este “retorno” significa que o trabalho pastoral (de edificação e capacitação) tem uma finalidade evangelística enquanto o engajamento evangelístico tem, por sua vez, uma finalidade “pastoral”! Se quiser elaborar mais a direção interna e externa, pode incorporar de outras passagens bíblicas (especialmente Atos) áreas mais específicas do ministério da igreja. A tabela seguinte tenta sintetizar a discussão anterior.
O ministério bilateral da igreja mais detalhado
igreja |
Capacitação dos santos:1) pelo discipulado2) pelo treinamento |
→ |
Evangelismo dos não-convertidos:1) pela proclamação2) pelo testemunho |
mundo |
↑ |
↓ |
|||
Edificação do corpo:1) pela comunhão2) pelo ministério3) pelo ensino |
← |
Integração de recém-convertidos:1) pelo acréscimo |
Síntese
Finalmente o modelo começa a surgir para um conceito do ministério transformador e integral da igreja. Baseado nestas reflexões, sugiro quatro princípios para o seu desenvolvimento.
A coletividade de agentes e de audiência. O testemunho cristão é tarefa da igreja toda. A força dos seus agentes “especiais”, os evangelistas profissionais e as agências especializadas, depende da firmeza, fidelidade, e atuação da igreja toda. Por isso, Paulo, o apóstolo par excellence, gastou muito tempo escrevendo cartas “pastorais” encorajando a igreja a ser a nova alternativa da sociedade, isto é, uma nova criação. Um programa evangelístico duma denominação dependerá duma conscientização prática e abrangente, uma re-educação da igreja toda. A dinâmica da atuação evangelística da igreja sempre terá uma estreita relação à sua fidelidade e compromisso pastoral. Nós nos iludimos por almejar uma transformação integral do mundo se esta não nascer primeiro do modelo necessário duma comunidade cristã transformada integralmente.
Em termos de estratégia, o princípio de coletividade também se aplica. Em vez de focalizar apenas indivíduos, é mister pensar em coletividades culturais, sociais, políticas e geográficas. Isto corresponde à compreensão de etnias (povos não-alcançados podem ser enquadrados aqui); setores sociais desfavorecidos como crianças abandonadas, operários, grupos indígenas, etc.; a lutar contra a discriminação (veja a tática de Paulo em relação a Filemon) e a injustiça de toda sorte; e regiões geográficas de especial interesse como a Europa ocidental, o mundo muçulmano, nossas favelas urbanas e o êxodo rural.
A simultaneidade de atuação. A esfera da atuação da igreja é tanto espiritual quanto histórico-social. Isto significa que o ministério da igreja inclui as duas dimensões. É trágica a cegueira entre muitos líderes na igreja pelo esvaziamento do plano místico e espiritual. Talvez o maior impedimento à penetração do evangelho tradicional no Brasil seja a sua redução prática (apesar do discurso contrário) ao racionalismo e materialismo. A Bíblia nos fornece toda a base para recuperar esta visão do mundo habitado por espíritos, sem cairmos num fundamentalismo nem num novo gnostismo (os dois tem muito em comum fenomenologicamente) anti-histórico e anti-social.
Por outro lado, a conversão da igreja como instituição em plataforma meramente partidária simplesmente não é radical o suficiente. É preciso que os Poderes assumam seu devido lugar debaixo do senhorio de Jesus, e não paralelo ou acima dele. Sem a percepção e engajamento no plano espiritual que existe por trás das forças históricas que manipulam estruturas e sistemas, e através destes, as próprias pessoas, a transformação cristã destes últimos não vai acontecer, apenas a troca de potências.
A personalidade. Diante dos dois princípios anteriores, há um perigo da atuação evangelística da igreja não ser pessoal. A natureza apaixonadamente pessoal (de novo, não confunde “pessoal” com “individual”) das epístolas e do ministério de Jesus devem nos corrigir de engajamentos evangelísticos impessoais, vagos e intangíveis. Na organização de células de estudo, de culto e de ação, a personalidade da fé cristão se manifesta. A burocracia e a excessiva institucionalização, inclusive no ministério de desenvolvimento comunitário, por mais importante que estas sejam, tendem a abafar a personalidade do testemunho.
A integralidade de ministérios. O ministério integral é bidirecional. Não está de costas nem ao mundo e nem à igreja. Isto é, inclui não só a preocupação pastoral e de edificação, como também o preparo e envio da igreja ao mundo — o trabalho dia-a-dia do cuidado pastoral com fins evangelísticos. É preciso que a relação entre os diversos ministérios da igreja seja expressa na sua organização. Enquanto a sua separação institucional pode ser conveniente para a organização, de alguma forma sua integração precisa de expressão. Não é por acaso que os nossos membros tendem para o dualismo no conceito de ministério. Esta dupla direção da igreja pode ser especificada mais em termos dos oito ministérios mencionados na seguinte tabela.
O MINISTÉRIO INTEGRAL DA IGREJA
“para que o todo se completar”
Efésios 4.10 “o todo cresce naquele que é o cabeça, Cristo” Efésios 4.15
DIREÇÕES do ministério |
DIMENSÕES do ministério |
MINISTÉRIOS da Igreja |
EXEMPLOS de Efésios 4 |
EXEMPLOS da NT em geral |
INTERNO |
Edificação para |
Comunhão 59 |
“unidade da fé” Efésios 4.13 |
partir o pão, oração |
Ensino 212 |
“pleno conhecimento” Efésios 4.13 |
exposição bíblica |
||
Serviço 101 |
“humanidade completa” Efésios 4.13 |
assistência, visitação, dons, auxílio ao mestre |
||
Integração |
Acréscimo 28 |
“cresça o todo” Efésios 4.15 |
batismo |
|
EXTERNO
|
Capacitação para |
Discipulado 266 |
“aperfeiçoar os santos” Efésios 4.12 |
habilitação |
Treinamento 68 |
“não mais crianças” Efésios 4.14 |
disciplina |
||
Evangelização 133 |
Proclamação 72 |
“falar a verdade em amor” Efésios 4.15 |
pregação verbal |
|
Testemunho 173 |
“a obra de serviço” Efésios 4.14 // 2.10; 3.10 |
Testemunho de vida, atos de justiça |
(Observação: Os números ao lado das palavras gregas correspondem à ocorrência desta palavras e os seus cognatos imediatos — adjetivos e substantivos
(a ser continuado…)
Notas:
Todos os santos (e entre eles, cada santo) são capacitados pelos quatro ou cinco tipos de servos enumerado em 4.11 para cumprir-lhes o ministério dado, para que a igreja toda se envolva no serviço de Cristo e se incumba de substância, propósito e estrutura missionários….a igreja toda, a comunidade de todos os santos juntos, é o clero designado por Deus para um ministério para e em favor do mundo. Desta maneira duas opiniões muito conhecidas são refutadas: a pressuposição que o grosso dos membros da igreja seja reduzido a meros consumidores de dons espirituais, e a noção que a igreja como um todo deve procurar primariamente uma “edificação” que beneficia somente ela mesma. (op. cit., p. 479)