O debate sobre religião e ciência — uma introdução
Ciência e teologia têm coisas a dizer uma à outra, uma vez que ambas se preocupam com a busca da verdade, alcançada por meio da crença fundamentada. Entre os tópicos importantes para tal diálogo estão a teologia natural, a criação, a providência divina e os milagres. Este artigo apresenta um breve panorama do estado atual do diálogo.
Os participantes do debate entre ciência e religião empregam diversas estratégias, dependendo do que procuram — confronto ou harmonia. Para uma introdução ao assunto, a primeira tarefa é resumir a agenda de discussão.
O parceiro natural para o diálogo com a ciência é a teologia, a disciplina intelectual que descreve a experiência religiosa, da mesma forma como a ciência descreve a investigação humana do universo físico. Tanto a ciência como a teologia reivindicam explorar a natureza da realidade, mas claramente o fazem em níveis diferentes. O objeto de estudo das ciências naturais é o mundo físico e os seres vivos que nele habitam. As ciências tratam seus assuntos objetivamente, por meio de um modo impessoal de encontro, que emprega a ferramenta investigativa da interrogação experimental. A natureza é submetida a testes, baseados em experimentos passíveis de repetição, tantas vezes quantas o pesquisador quiser. Mesmo as ciências históricas como a cosmologia física ou a biologia evolucionária apoiam muito de seu poder explanatório nas descobertas das ciências diretamente experimentais, como a física e a genética. O propósito da ciência é obter uma compreensão precisa de como as coisas acontecem. Sua preocupação é com os processos que ocorrem no mundo.
A preocupação da teologia é com a questão da verdade sobre a natureza de Deus, daquele ao qual é próprio se aproximar com reverência e obediência, o qual não está disponível para ser posto sob teste experimental. Como ocorre em todas as formas de relacionamento, o encontro com a realidade transpessoal do divino tem de ser baseado na confiança, e seu caráter é intrinsecamente individual e único. Experiências religiosas não podem simplesmente ser provocadas pela manipulação humana. Em vez disso, a teologia se baseia nos atos revelatórios de autodesvelamento divino. Em particular, todas as tradições religiosas olham para o passado, para os eventos primordiais nos quais elas tiveram a sua origem, e que desempenham um papel único na constituição de sua compreensão da divindade. Em relação à história cósmica, o objetivo central da teologia é lidar com a questão de por que os eventos ocorreram. Sua preocupação é com temas de significado e propósito. A crença em Deus como Criador traz a implicação de que uma mente e vontade divinas existem por trás do que acontece no universo.Essas diferenças entre a ciência e a teologia levaram alguns a supor que elas seriam completamente desconectadas entre si, ocupadas com formas de discurso separadas e até mesmo incomensuráveis. Se isso fosse verdade, não poderia haver um debate verdadeiro entre ciência e religião. Essa imagem de duas linguagens sem conexão tem sido popular entre cientistas que não desejam ser desrespeitosos com a religião, entendida por eles como atividade cultural, mas que tampouco querem considerar seriamente as reivindicações cognitivas da religião quanto ao conhecimento de Deus. Quando essa posição é adotada, a comparação que se segue entre ciência e teologia é frequentemente posta em termos que, na verdade, são desfavoráveis para a religião. Muitas vezes, sustenta-se que a ciência lida com fatos, ao passo que a religião supostamente se funda apenas em opiniões. Há aqui um duplo erro.
Análises produzidas pela filosofia da ciência no século 20 deixaram claro que a busca científica pela compreensão é baseada em algo muito mais sutil do que uma confrontação não-problemática entre fatos experimentais indubitáveis e predições teóricas inescapáveis. Teoria e experimentação se entretecem de formas intrincadas, e não há fatos científicos interessantes que não sejam simultaneamente fatos já interpretados. O apelo a teorias é necessário para se explicar o que realmente está sendo medido por um aparato sofisticado. Por sua vez, a teologia não se baseia na mera asserção de verdades inquestionáveis derivadas das declarações de alguma autoridade inquestionável. A crença religiosa tem as suas próprias motivações, e seu apelo à revelação ocupa-se da interpretação daquelas ocasiões singularmente significativas de desvelamento divino, e não de verdades proposicionais comunicadas de um modo misterioso.
Uma série de considerações mostra que a hipótese da independência entre ciência e teologia é muito ingênua para ser convincente. “Como?” e “Por quê?” são questões que podem ser levantadas simultaneamente e, muitas vezes, ambas devem ser consideradas se quisermos obter uma compreensão adequada da realidade. Um bule ferve tanto porque o gás em chamas aquece a água quanto porque alguém quer preparar um chá. As duas questões são, sem dúvida, logicamente distintas, e não há uma conexão inevitável ligando as duas respostas, embora deva existir um grau de consistência entre elas. Colocar o bule no refrigerador com a intenção de fazer chá não faz muito sentido.
A teologia precisa ouvir a explicação científica da história do universo e determinar sua relação com a crença religiosa de que o mundo é a criação de Deus. Se há um desajuste total, alguma forma de revisão pode ser necessária. Fundamentalistas religiosos creem que tal revisão sempre teria de ser do lado da ciência, enquanto fundamentalistas cientificistas creem que a religião é simplesmente irrelevante para a compreensão do cosmo. Essas posições extremas correspondem à imagem de um conflito entre a ciência e a religião, tendo cada lado a missão de obter a vitória total no debate: uma visão seriamente distorcida que falha em reconhecer a complementaridade entre as duas formas de busca da verdade. Uma visão mais equilibrada seria a de que ambas as explicações merecem ser escrupulosamente abordadas em seu relacionamento mútuo, o que nos dá uma agenda criativa para o debate entre ciência e religião.
Tanto a ciência quanto a teologia têm sido rotuladas pelo pós-modernismo como metanarrativas lendárias, construídas e endossadas socialmente. Em resposta, ambas apelam às motivações experienciais de suas crenças e reivindicam o que foi denominado realismo crítico como a melhor descrição de suas realizações: embora não alcancem conhecimento exaustivo — pois a exploração da natureza revela continuamente fatos novos e inesperados, e a realidade infinita de Deus sempre excederá a compreensão de seres humanos finitos — ambas creem ser capazes de obter verossimilhança, ou seja, descrições de aspectos da realidade que são adequadas para alguns, embora nem todos os fins. Com suas reivindicações crítico-realistas, a ciência e a teologia exibem um grau de parentesco, e este fato por si só seria suficiente para encorajar o diálogo entre elas.A ciência tem obtido seu grande sucesso devido à modéstia de sua ambição, restringindo-se ao encontro impessoal e limitando-se a descrever os processos naturais. O fato é que as redes lançadas por ela são muito grosseiras para capturar o todo da realidade. Sua compreensão da música, por exemplo, é estruturada em termos de respostas do sistema nervoso ao impacto de ondas de ar no tímpano. O profundo mistério da música — como uma sequência temporal de sons é capaz de descrever uma esfera eterna de beleza? — escapa totalmente à sua compreensão. Um elemento importante no debate contemporâneo entre ciência e religião é o reconhecimento da importância de “questões de limite”, referentes a assuntos que emergem da prática científica, mas que vão além dos limites postos pela própria ciência a seu potencial explanatório. Essas questões de limite têm sido a base para um novo tipo de teologia natural, largamente desenvolvida pelos próprios cientistas, alguns dos quais não aderem a nenhuma tradição religiosa.
Teologia Natural
A Teologia Natural é a tentativa de aprender algo sobre Deus a partir de considerações gerais tais como o exercício da razão e a investigação do mundo. Sua forma clássica é associada a pensadores como Tomás de Aquino (século 13) e William Paley (1743-1805). Eles falavam em termos de “provas” da existência de Deus e frequentemente buscavam explicações teológicas para a aptidão funcional dos seres vivos, compreendidos como havendo sido projetados pelo divino Artífice. A Teologia Natural contemporânea é mais modesta em seu caráter. Seu objetivo não é a inescapabilidade lógica, mas a compreensão iluminada, reivindicando que o teísmo explica mais do que o ateísmo. O relacionamento da Teologia Natural com a ciência é de complementaridade, em vez de rivalidade. Reconhecendo que as questões científicas devem receber respostas científicas, a nova Teologia Natural se concentra nas questões de limite que emergem da ciência, mas que escapam ao seu escopo explanatório. Duas dessas metaquestões têm se revelado particularmente importantes.
A primeira diz respeito à razão porque a ciência é possível, na forma profunda e extensiva que conhecemos. Obviamente a necessidade evolucionária de sobrevivência pode explicar porque os humanos são capazes de compreender grosso modo os fenômenos do dia-a-dia. Ainda assim é difícil crer que nossa habilidade para compreender o mundo subatômico da física quântica e o mundo cósmico da curvatura espaço temporal — ambos os domínios remotamente distantes do impacto direto sobre eventos do dia-a-dia, e ambos requerendo, para a sua compreensão, modos altamente contra-intuitivos de pensamento — seja meramente um bônus fortuito da necessidade de sobrevivência. Além disso, o mundo não é apenas racionalmente transparente em um grau profundo à inquirição científica, mas também é, em semelhante grau, racionalmente belo, concedendo repetidamente aos cientistas o senso de maravilha como uma recompensa pelo trabalho de pesquisa. Na física fundamental, uma técnica comprovada de descoberta é a busca por teorias cujas equações sejam matematicamente belas, desde que apenas estas teorias atingem a fertilidade de longo prazo capaz de nos persuadir de sua verossimilhança. Por que a ciência profunda é possível, e por que seus sucessos envolvem tão intimamente a disciplina aparentemente abstrata da matemática, são certamente questões significativas sobre a natureza do nosso mundo. A ciência, por si só, é incapaz de explicar este caráter profundo das leis da natureza. Ela é obrigada a tratá-lo simplesmente como a base inexplicável que tem de ser assumida para sua exposição dos detalhes do processo. Entretanto, parece intelectualmente insatisfatório abandonar a questão assim, como se a ciência fosse apenas um feliz acidente. Uma compreensão religiosa torna a própria inteligibilidade do universo inteligível, explicando que o mundo está cravejado de sinais de inteligência precisamente porque a Mente do seu Criador está por trás dessa ordem maravilhosa.Essa ordem não é apenas bela, mas também profundamente frutífera. O universo como nós o conhecemos começou a 13.7 bilhões de anos atrás, essencialmente como uma bola de energia quase uniforme, em expansão. Hoje o universo é rico e complexo, com santos e cientistas entre seus habitantes. Esse fato em si mesmo sugere que algo vem acontecendo na história cósmica que vai além do que a ciência pode dizer; mas além disso, a compreensão científica dos processos evolucionários dessa história tem mostrado que o cosmo era desde o início prenhe de potencial para a vida baseada em carbono. As leis básicas da natureza, em seu caráter atual, tiveram que assumir uma forma quantitativa específica para possibilitar a emergência da vida em algum local do universo. Esse ajuste-fino (fine-tuning) dos parâmetros fundamentais é usualmente denominado Princípio Antrópico.1 Um mundo capaz de produzir seres autoconscientes é um universo muito específico, de fato. Esta especificidade cósmica levanta a segunda metaquestão, sobre por que isto deveria ser assim. O ajuste-fino Antrópico veio como um choque para muitos cientistas. Eles tendem a preferir o geral ao particular, sendo então inclinados a supor que não haveria nada de muito especial sobre o nosso mundo.
A Teologia Natural enxerga o potencial antrópico como um dom que o Criador deu à criação. Aqueles que recusam esta idéia são levados, ou a considerar o ajuste-fino como outro acidente incrivelmente feliz, ou a abraçar a extraordinária suposição de que há, de fato, um vasto multiverso composto de muitíssimos universos bem diferentes, mas que apenas um é observável por nós, sendo o nosso universo, por puro acaso, aquele no qual as circunstâncias permitiram o desenvolvimento da vida baseada em carbono.
Criação
A doutrina da criação não diz respeito primariamente a como as coisas começaram, mas por que elas existem. Deus é visto como ordenador e sustentador do cosmo, sendo o seu Criador hoje, tanto quanto o era na época do Big Bang (o qual é cientificamente interessante, mas não é teologicamente crítico). Essa compreensão da realidade leva à visão de que a criação é um processo em contínuo desdobramento, no qual Deus age tanto por meio dos resultados do processo natural quanto por qualquer outro meio. Um diálogo frutífero entre a ciência e a religião deve ser baseado nessa compreensão da criação.
A ciência tem muito a contribuir para o diálogo interdisciplinar, por meio do quadro que ela pode fornecer do processo e da história do universo. Sua contribuição mais importante é o conceito evolucionário da emergência de novidade em regimes onde regularidade regrada (antrópica) e especificidade acidental interagem. A interação de acaso e necessidade “na margem do caos” (um domínio de processos caracterizados pelo entrelaçamento de graus de ordem com sensibilidade a pequenas influências) tem operado em muitos níveis, da evolução cósmica das estrelas e galáxias, à familiar história biológica do aumento da complexidade da vida terrestre.Há uma forma distorcida de história intelectual que retrata a publicação de “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, em 1859, como a separação final entre os caminhos da ciência e da religião e o fim de qualquer debate verdadeiro entre elas. É fato histórico que nem todos os cientistas aceitaram as ideias de Darwin imediatamente e nem todos os teólogos as rejeitaram. Todos tiveram de se esforçar para aceitar o quanto o passado foi diferente do presente, e a necessidade, assim, de compreender esse presente à luz de suas origens passadas. Dois pensadores cristãos, Charles Kingsley e Frederick Temple, cedo cunharam uma frase que habilmente sintetiza como pessoas religiosas deveriam pensar sobre um mundo em evolução. Eles diziam que, sem dúvida, Deus poderia ter trazido à existência um mundo já pronto. Porém, descobrimos que o Criador fez algo mais inteligente do que isto, criando um mundo tão fértil que as criaturas que nele habitam tiveram a capacidade de “fazerem a si mesmas”, na medida em que o processo exploratório da evolução trazia este potencial à realidade.
Uma ideia teológica muito importante está associada a este “insight”. Ela diz respeito ao modo como Deus pode ser compreendido em sua relação com a criação. A teologia cristã crê que o caráter fundamental de Deus é o amor. Não se pode supor, portanto, que tal deidade aja como um tirano cósmico, manipulando as cordas numa criação que nada mais é do que um divino teatro de marionetes. O dom do amor concede sempre algum grau de independência a quem se ama. Uma das ideias mais iluminadoras da teologia do século 20 foi o reconhecimento de que o ato da criação foi um ato de autolimitação divina — um ato de “kenosis”, como os teólogos dizem — por parte do Criador, permitindo às criaturas ser e constituir a si mesmas. Isso implica que, embora sob a permissão divina, nem tudo o que acontece está de acordo com a vontade positiva de Deus.
Uma compreensão “kenótica” do relacionamento de Deus com o mundo auxilia a teologia em sua luta com as perplexidades do mal e do sofrimento, que certamente são seu problema mais desafiador. Um mundo no qual as criaturas fazem a si mesmas é algo muito bom, mas tem o seu preço. A exploração exaustiva de todas as possibilidades (que é o que o “acaso” significa no contexto evolucionário) inevitavelmente terá bordas irregulares e levará a becos sem saída. O mecanismo que dirigiu a história da vida na Terra foi a mutação genética. Ora, se células de germes poderão sofrer mutações e produzir novas formas de vida, células somáticas poderão também sofrer mutações, mas se tornar malignas. A angustiante existência do câncer não é algo sem motivo, ou alguma coisa que um criador mais competente ou menos insensível poderia ter eliminado facilmente. É o lado sombrio e inevitável da produtividade da evolução. Longe de ser destrutivo para um debate útil entre a ciência e a religião, o ponto de vista evolucionista tem exercido uma influência muito positiva sobre o pensamento teológico.
Finalmente, há ainda outra questão levantada pela ciência que deve ser considerada por teólogos que falam sobre o mundo como Criação. O prognóstico final da cosmologia para o futuro do universo é desanimador. As escalas de tempo são imensamente longas, mas eventualmente tudo acabará em uma futilidade cósmica, seja por meio de um colapso ou, mais provavelmente, por meio da interminável decadência de um universo em expansão e resfriamento eternos. A vida baseada em carbono deverá, por fim, desaparecer do cosmo. A teologia sempre se esforçou para manter uma visão realista da morte, tanto de indivíduos como do universo. Ela não se apoia em um otimismo evolucionário ilusório, mas baseia sua esperança de um destino além da morte unicamente na fidelidade do Criador do mundo. Um desdobramento recente no debate entre ciência e religião é o crescente interesse na exploração da coerência dessa esperança. O resultado tem sido significativos desenvolvimentos no pensamento escatológico, mas não temos espaço para dar os detalhes aqui.2
Ação Divina
Pessoas religiosas oram a Deus, pedindo auxílio particular. Teólogos falam sobre a ação providencial de Deus na história. Mas a ciência fala sobre a regularidade dos processos causais no mundo. Poderia isto significar que os crentes estão enganados e Deus está restringido ao papel de manter o mundo existindo, mas contemplando-o como mero expectador? Todas as fés Abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islã) falam de Deus agindo no mundo, causando consequências específicas em circunstâncias específicas.Se a ciência implicasse um mundo mecânico de maquinários cósmicos, como muitos interpretaram a física newtoniana, a teologia se limitaria à imagem deísta de um Deus que meramente põe o mundo em movimento e então deixa tudo acontecer. Entretanto, a imagem mecanicista sempre esteve sob suspeita porque os seres humanos não se veem como autômatos, mas antes como tendo liberdade para atuar como agentes intencionais. Se o futuro do mundo está aberto para a humanidade, certamente deve estar aberto também para o seu Criador. De fato, a ciência do século 20 testemunhou a morte da visão meramente mecanicista da física. Imprevisibilidades intrínsecas (uma incerteza inescapável que não pode ser superada por cálculos melhores ou observações mais exatas) vieram à luz, primeiro na teoria quântica ao nível subatômico, e então na teoria do caos ao nível dos fenômenos macroscópicos. O que essas descobertas implicam é matéria de debate filosófico.
A natureza da causalidade é um tema de metafísica, influenciada pela física, mas não totalmente determinada por ela. Por exemplo, enquanto muitos físicos creem que as imprevisibilidades da teoria quântica são sinais de uma indeterminação intrínseca, há uma interpretação alternativa de igual adequação empírica que atribui tais imprevisibilidades à ignorância de um número de fatores inacessíveis (“variáveis ocultas”). A escolha entre estas interpretações tem de ser feita em bases metacientíficas, tais como julgamentos de economia e ausência de artificialidade.
A imprevisibilidade é uma propriedade concernente ao que se pode ou não se pode conhecer sobre acontecimentos futuros. A relação entre o que sabemos sobre o mundo e o que mundo é realmente é matéria de animado debate filosófico. Mas para aqueles cuja filosofia se baseia no realismo, como é o caso de muitos cientistas, as duas coisas são inseparáveis. Para eles, é natural interpretar imprevisibilidades intrínsecas como sinais de que o futuro ainda não está definido. Isto não implica que o futuro seja algum tipo de loteria aleatória, mas simplesmente que as suas causas não se limitam à descrição científica convencional de trocas de energia entre os componentes do sistema. Um candidato plausível para fatores causais adicionais é o exercício da agência pessoal, tanto por indivíduos humanos como pela ação providencial divina.
Uma discussão bastante ativa no debate de ciência e religião tem-se centrado na questão da ação divina. Sem entrar em detalhes sobre a variedade de posições que vem sendo advogadas, pode-se dizer que pelo menos está claro que a ciência não estabeleceu o fechamento causal do mundo físico em seus próprios termos. É inteiramente possível tomar de forma absolutamente séria o que a física tem a dizer e ainda crer na capacidade de agência, tanto humana como divina.
Uma interpretação realista das imprevisibilidades leva à visão de um mundo de genuíno “vir-a-ser”, no qual o futuro não é uma consequência inevitável do passado. Em vez disso, muitos fatores causais o determinam: a lei natural, atos humanos intencionais e a providência divina. Se a fonte dessa liberdade no destino é compreendida como sendo baseada na nebulosidade de processos imprevisíveis, os eventos não podem ser analisados e classificados de uma forma transparente, como se fosse possível dizer que a natureza fez isto, a ação humana intencional fez aquilo, e a providência divina fez aquilo outro.A reflexão sobre um mundo em genuíno “vir-a-ser” tem levado alguns teólogos a repensar a relação de Deus com o tempo. Deus não está aprisionado no tempo como as suas criaturas, e certamente deve haver uma dimensão atemporal na natureza divina. A teologia clássica considerou isto a história toda, e pintou Deus como totalmente fora do tempo, olhando “para baixo”, por assim dizer, com a história cósmica inteira exibida sob o seu vislumbre, “tudo de uma vez”. Mas o Deus da Bíblia é apresentado como aquele que continuamente se engaja na história, e isto é justamente o que poderia se esperar do Criador de um mundo com tal fertilidade em constante desdobramento.
Milagre
O tema do milagre frequentemente emerge no debate entre ciência e religião. É uma questão que o cristianismo tem de considerar com muita seriedade, pois no coração de sua própria narrativa teológica está a ressurreição de Cristo, a crença de que Jesus foi levantado dentre os mortos para uma vida de glória infindável.
Reivindicações do miraculoso vão além de um conceito do Criador atuando no veio aberto da natureza, pois requerem a crença de que Deus algumas vezes age de formas únicas. A ciência supõe que o que usualmente acontece é o que sempre acontece; porém, esta hipótese não pode ser a base para excluir a possibilidade de eventos únicos e sem precedentes. Contudo, milagres criam um problema teológico, pois não se pode presumir que Deus atue como uma espécie de mago celestial, caprichosamente fazendo um uso exibicionista do seu poder divino. Se milagres acontecem, tem de ser porque circunstâncias únicas os tornam uma possibilidade racional e consistente, eventos nos quais aspectos mais profundos do caráter divino se manifestam além do que normalmente é revelado. No Evangelho de João, milagres são denominados “sinais” exatamente neste sentido revelatório.
A presença do miraculoso deve ser associada a um novo regime na história da criação, muito similar à forma como a exploração de um novo regime no mundo físico pode manifestar propriedades totalmente inesperadas (como, por exemplo, a dualidade onda/partícula da luz). Os cientistas não levantam a pergunta “É razoável?” instintivamente, como se soubessem por antecedência a forma que a racionalidade deve tomar. O mundo físico tem demasiadas vezes se provado surpreendente para que tal pergunta seja apropriada. Em vez disso eles perguntam: “O que o faz pensar que este seja o caso?”, uma inquirição ao mesmo tempo mais aberta e, por sua insistência em evidências, mais exigente. A abordagem à questão do milagre no debate de ciência e religião deve seguir linhas similares, não presumindo a sua impossibilidade a priori, mas exigindo a fundamentação adequada antes de aceitar a crença.
Notas
1. Para mais informações sobre o Princípio Antrópico, ver o Faraday Paper 3: “O Princípio antrópico e o debate de ciência e religião”, por J. C. Polkinghorne.
2. Ver Polkinghorne, J. C., “The God of hope and the end of the world”, London: SPCK/New Haven: Yale University Press, 2002.
Referências Bibliográficas
Alexander, D.R., “Rebuilding Matrix ; science and faith in the 21st century”, Oxford: Lion, 2001.
Barbour, I.G., “Quando a ciência encontra a religião”, São Paulo: Cultrix, 2004.
Polkinghorne, J.C., “Science and theology”, London: SPCK, 1998.
Polkinghorne, J.C., “Beyond science; the wider human context”, Cambridge: CUP, 1996.
• Dr. John Polkinghorne trabalhou com física teórica de partículas elementares por 25 anos; foi professor de física matemática na Universidade de Cambridge e presidente do “Queens’ College”, em Cambridge. É membro da “Royal Society”, foi o presidente fundador da “International Society for Science and Religion” (2002-2004) e é autor de vários livros sobre ciência e religião.
* Esse artigo é parte da série “Faraday Papers”, publicada pelo Instituto Faraday para Ciência e Religião, uma organização sem fins lucrativos para educação e pesquisa localizada em Cambridge, Reino Unido. Uma lista desses artigos está disponível emwww.faraday-institute.org. Traduzido por Guilherme de Carvalho.
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