Morango e “iorgute” ou tapioquinha com café?
Por Phelipe M. Reis
De manhã, ela abre a geladeira e pede: “Dá, dá…”. Eu pego a caixinha e retiro a embalagem; lavo e corto em pedaços aqueles morangos vermelhinhos. Ela come um e pede o segundo. Dois, três, quatro… devora quantos tiver. “Morango é fruta de rico”, lembro que era assim que eu pensava, quando eu era curumim. Via muitos e os desejava. Mas os via na tela da TV, na mesa das famílias das novelas globais. Às vezes, apareciam também nas prateleiras dos supermercados da cidade, mas quase nunca na geladeira de casa. Lá, no interior do Amazonas, custava cerca de dez reais pouco mais de uma dúzia de morangos. Hoje, no interior de Minas, consigo comprar a mesma quantidade por um preço mais barato que uma palma de banana.
À tarde, na hora da merenda, pego minha xícara com o café quentinho. Acabei de passar no coador, vi subir o vapor da água quente e senti o aroma do café mineiro. Acrescento açúcar e leite em pó. E mais leite em pó, para ficar com aquelas bolinhas. Faço assim também na hora de preparar o Nescau da cunhantã-viçosa. “Tá bom! Já colocou o suficiente”, assim dizia minha mãe quando estávamos à mesa de manhã cedo, antes de ir para a escola. O pacotinho do “Duleite” era caro. Se não economizássemos nas colheradas, o resto da semana teria só o café preto.
Com o café já pronto, passo a tapioca na peneira, esquento a frigideira para fazer o beiju. Depois passo manteiga e coloco algumas fatias de queijo. A cunhantã chega perto, choramingando, e pede também. Não a tapioca, quer só o queijo. Come de perder a conta, se a gente deixar. “Tá bom já. Passa só numa banda do pão. E não tem ‘quero mais’”, dizia a voz firme do papai, na hora da merenda. Parecia até que estava brabo. Mas não, estava apenas preocupado para que não acabássemos a manteiga em um só dia.
Essas porções de lembranças, do meu tempo de curumim, me vêm à memória frequentemente, enquanto cuido da minha cunhantã-viçosa. Um diálogo constante entre o presente e o passado, que me levam a refletir e depositar mais fé naquele minidiscurso famoso que todo mundo já ouviu do pai ou da mãe, algum dia, de que eles sempre se esforçam para nos dar o melhor que podem. Não que eu não acreditasse nisso, mas é que agora, que sou pai, esta verdade está mais evidente e ecoa na minha relação com minha filha.
Uma das formas que eu e minha esposa praticamos isso é tentando proporcionar à nossa filha uma alimentação mais ou menos saudável, com bastante frutas e legumes. Claro que tudo dentro das possibilidades e das condições do bolso, até porque esse negócio de ter uma alimentação saudável é trabalhoso e caro. Se por aqui já não é tão barato, imagine no interior do Amazonas. Daí o porquê de tantos curumins e cunhantãs da Amazônia, como eu, não serem criados comendo legumes e verduras.
Mas além do morango, que Elis adora, ela também não dispensa pêra, melancia, laranja, tangerina e amora. Gosta também do tal do “iourgute”, que para mim era outro produto de rico, na infância. Mas eu queria mesmo é que ela experimentasse um pouco do que meu pai e minha mãe proporcionaram a mim e a meus irmãos. Embora eu e a Sarah (minha irmã, mais velha que eu um ano) tenhamos nascido no “tempo da vaca magra”, nunca tivemos motivos sérios para reclamar.
Quando em nossa mesa não tinha o pão com manteiga e o café com leite, a mamãe improvisava com o que tinha. Ela sempre foi ótima nisso. Nessas horas, surgia o fritinho de crueira ou de trigo, que mais tarde eu fui descobrir seu nome ‘sofisticado’: bolinho de chuva. Mas na falta do trigo, mamãe inventava um fritinho de farinha. Na merenda da tarde, sempre aquele ‘quissuqui’ de uva acompanhado do cascalho, feito com os pedaços de massa de pastel, que sobravam das encomendas de salgados que mamãe fazia.
Claro que tinham dias diferentes, quando o papai e a mamãe estavam com o bolso melhor ou quando a vovó Tereza mandava algumas iguarias regionais lá do Zé Açú. Nesses dias a mesa ficava farta. Da feira do produtor, onde íamos aos sábados, trazíamos o beiju cica, o quebradinho ou a goma para fazer o beiju de tapioca (tudo derivado da mandioca); também não podia faltar o queijo regional, uma Pupunha daquela bem oleosa e o tradicional Tucumã. Lá do interior da vovó, vinha a Macaxeira para cozinhar ou fritar e o Cará, do branco e do roxo, que dava até para fazer mingau. Para ficar perfeito, o papai passava na padaria do Vadico, na avenida Amazonas, e comprava aquele pão manual quentinho. Pronto. Não existia coisa melhor!
Lembro de tudo isso com sabor de gratidão, aos meus pais e a Deus. Naquela época eu não tinha essa percepção, mas agora entendo o esforço deles e sei que recebi o melhor que podiam dar. Hoje, sinto falta, tenho saudades. Queria mesmo que minha filha experimentasse um bocadinho disso.
Todos esses retalhos de recordações fazem aumentar dentro de mim uma convicção: a vida se torna melhor quando se aprende a apreciar e ter contentamento nas coisas simples: na comida caseira, no pão quentinho, no café ralo, no pão com manteiga, no fritinho de farinha ou no beiju de tapioca. Acho que já aprendi a não me envaidecer mais com aquilo que não pude ou não posso ter. Até porque, o morango e o “iorgute”, que eu achava as “melhores coisas do mundo”, nem são tão gostosos assim como eu pensava. Troco eles facilmente pela minha tapioquinha e meu café com leite. E você, aceita?
Phelipe M. Reis é amazonense, missionário e jornalista. Casado com Luíze e pai da Elis.
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