Nem salvador, nem vítima – agente de transformação
Por Isabelle Ludovico
Os religiosos de todas as religiões costumam realizar boas obras para garantir o seu lugar no céu. Para os cristãos, o caminho é inverso. O amor de Deus, que nos acolhe e nos perdoa, nos leva a dar frutos a partir deste encontro restaurador. De seres humanos criados por Deus, mas separados dele pelo pecado, nos tornamos filhos e herdeiros. Muitos, porém, continuam sem entender o sentido da graça imerecida, pela qual não é possível pagar. Por isso tentam garantir o favor do Senhor com boas ações, perpetuando assim uma mentalidade de escravos.
Temos uma dificuldade muito grande de receber algo que não merecemos. Procuramos “fazer por merecer” já que, na nossa experiência humana, fomos estimulados a ser bonzinhos para sermos amados. Assim, nossa dedicação aos outros pode resultar de muitas motivações erradas, que irão gerar frutos amargos. Já as ações movidas pelo Espírito Santo produzirão, entre outros frutos, alegria e paz.
A sobrecarregada Marta
A visita de Jesus à família de Lázaro nos dá a oportunidade de nos identificarmos com Marta – uma pessoa prestativa, que arregaça as mangas diante das necessidades à sua volta, mas que, indignada, não consegue deixar de murmurar e queixar-se a Jesus por se sentir sobrecarregada e injustiçada. O envolvimento na área social nos leva freqüentemente a esse tipo de sentimento; a essa altura, precisamos reconhecer que nossas escolhas foram equivocadas, que trabalhamos mais com nossas próprias forças e dificilmente nos demos a liberdade de recusar tarefas e responsabilidades. Como as necessidades são ilimitadas, nos vemos enredados num círculo vicioso, esmagados por tantos desafios, estourados por nossa própria falta de limite.
A sina dos perfeccionistas
Outra conseqüência desastrosa é que, em volta de uma pessoa superativa, sempre encontramos pessoas acomodadas, numa dinâmica sistêmica em busca do equilíbrio. Esta é também a sina dos perfeccionistas, que preferem agir para que o resultado saia de acordo com seus altos padrões de exigência, mas que acabam promovendo a passividade ao seu redor. Aos poucos, essas pessoas vão se sentindo usadas, vítimas de pessoas sem escrúpulos, que se aproveitam delas. Muita eficiência pode gerar, nas pessoas que convivem com elas, um sentimento de incapacidade ou impotência, que pode ser confundido com desleixo e irresponsabilidade. É o caso das mulheres que viraram a mesa e entraram numa relação competitiva com os homens; elas acabam por promover este tipo de reação e depois se queixam da retração dos homens, que se sentem acuados por tanta onipotência e tendem a se retirar.
Somos limitados
Trabalhando com pessoas carentes, somos estimulados a querer suprir suas faltas e suportar os dramas que despejam sobre nós. É importante perceber que, ao fazer isso, além de nos sobrecarregarmos, vamos privando essas pessoas da oportunidade de descobrir seus próprios recursos. Lembremos da viúva que procurou Eliseu. Sua primeira reação foi dizer que não tinha nada. Ela se sentia desamparada, paralisada, impotente. Mas, diante da insistência de Eliseu, ela reconheceu que ainda tinha um pouco de azeite. É esse recurso escasso que Deus multiplica à medida que a pessoa se dispõe a fazer a sua parte. Foi assim também com os pães e peixes que foram oferecidos a Jesus.
Saber dizer “não” é fundamental para que o nosso “sim” seja fruto de uma escolha consciente, de um chamado, de uma prioridade adequada – não para nossa própria ânsia de abraçarmos sozinhos o mundo, não para solicitações que ultrapassem nossa capacidade. O pecado do homem é justamente querer ser como Deus, ilimitado. Quando nos percebemos murmurando e frustrados, é hora de rever nossas prioridades e escolhas. Possivelmente, elas nos levaram a dar um passo maior que a perna para atender expectativas irreais, tanto nossas como de terceiros. Ao identificar esta tendência, podemos aceitar o convite de Jesus para escolhermos a melhor parte, sentarmos a seus pés, aquietarmo-nos, sermos por Ele ministrados. E Ele nos acolhe, abraça, ensina-nos a nele descansar, como a águia descansa na corrente de ar que a carrega. Não há ação social saudável sem uma vida interior significativa no silêncio, na meditação da Palavra, na contemplação daquele que é.
Salvador ou vítima?
Assim, o agente social cristão precisa evitar duas armadilhas corriqueiras: assumir uma postura de salvador, sentindo-se responsável por todos os problemas e desafios que o levam a se sobrecarregar, ou assumir uma postura de vítima de circunstâncias desfavoráveis e de pessoas que abusam de sua boa vontade. Muitas vezes, podemos oscilar entre esses dois pólos, sem perceber que o nosso sofrimento é fruto de motivações e escolhas inadequadas. A intimidade com Deus, que fortalece nossa identidade de filhos amados, é a única maneira de nos libertarmos desses padrões escravizantes e de sermos conduzidos a uma vida abundante que nos torna agentes de transformação e férteis de boas obras.
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
Publicado originalmente na Revista Mãos Dadas, Edição 4