Equilíbrio emocional: sua falta pode nos levar ao fundo do poço
Fazer algo bom não garante que o agente social esteja imune aos revezes da vida. A idéia de que é possível conviver diariamente com o sofrimento e a dor sem se deixar tocar por eles é como achar que você pode passar por um lamaçal sem se sujar. E no lamaçal pode acontecer de já não se conseguir avançar, ficar atolado. Como pessoas dedicadas, capazes, sinceras no seu desejo de servir a Deus, vão parar no fundo do poço emocional? Vamos descobrir acompanhando Mara, uma educadora cristã muito entusiasmada e fiel.
Estresse: o início da queda
Mara está a caminho do trabalho. Antes mesmo de descer do ônibus, recebe a notícia de que Tó, abusador da filha (aluna de Mara), foi solto e jurou se vingar da pessoa que o denunciara. É pouco provável que ele cumpra suas ameaças. É valentão apenas dentro de casa ou na roda de amigos. Mas Mara preocupa-se: será que ele soube que partiu dela a denúncia que o levara à prisão? Ela estremece.
Ao chegar à organização ela descobre que dona Irene ainda não chegou e por isso as crianças estão sem café da manhã. Mara respira fundo. Os atrasos freqüentes da cozinheira estão começando a incomodar (e muito!).
Quando a coordenadora do projeto vai resolver isso? Mara já se convenceu de que não deve contar nada para a sua chefe, ou será tida como encrenqueira. Mas os atrasos geram um grande transtorno. Suspirando, ela entra na cozinha para ver o que pode fazer. Não são nem nove horas da manhã e Mara já está com dor de cabeça. A dor é um sinal de estresse, um alarme que seu corpo apresenta frente aos estímulos externos.
A mente de Mara interpreta os acontecimentos para dizer ao seu corpo como reagir a eles. Sempre que a mente detecta uma ameaça, um perigo, ela prepara o corpo para lutar ou fugir. Então quantidades maiores de adrenalina são liberadas no sangue — que é desviado de vários órgãos para se concentrar no cérebro e músculos —, as pupilas se dilatam para melhorar a visão, os pés e mãos a suam, a respiração e as batidas cardíacas aceleram. O corpo fi ca em estado de alerta. Esse alarme pode ser bom porque a leva à ação, a tomar providências necessárias para a manutenção da vida. Não é possível se viver sem estresse. Mas também não é possível se viver em estado de alerta o tempo todo. Uma vida de estresse freqüente e intenso pode causar sérios danos à saúde emocional e física.
Parece que Mara já está esgotada. O dia mal começou e ela já está emocionalmente alterada, ansiosa, com dor de cabeça, achando que ele vai ser ruim, sentindo que não vai dar conta do recado.
Burnout: o fundo do poço
O pior de tudo é o sentimento de ter sido usada pela instituição. É difícil admitir, mas Mara está magoada com o pessoal do projeto. Antes ela era elogiada pela sua dedicação, pelo sacrifício, mas agora só recebe críticas e cobranças. Sente que nos onze anos de envolvimento integral no projeto, nunca teve tempo para si mesma, para os amigos para a família. Os problemas na sua vida pessoal parecem ter-se multiplicado ultimamente. Mara se sente vazia, desgastada, sem nada a oferecer.
Nesse estado, Mara não está apenas sob os efeitos do estresse, a coisa fi cou mais séria. Ela chegou ao que os especialistas têm chamado de síndrome do esgotamento profi ssional ou síndrome de burnout. Se não houver prevenção, o estresse acumulado em dias, semanas, meses, anos, levarão Mara a uma completa exaustão emocional. Ela pode desenvolver problemas digestivos, insônia, dores, um estado depressivo e até ataques de pânico, entre outros. É provável que evite se relacionar com as pessoas, que comece a se sentir uma observadora, alguém que olha de fora a situação. Seu sentimento de realização pessoal cairá de forma notável. Coisas que ela fazia com facilidade parecerão impossíveis. O entusiasmo e a alegria que sentia se evaporarão. Tudo parecerá inútil, repetitivo, irritante. E este é um estado tão debilitante que provavelmente levará a um pedido de licença, ou até à saída de Mara da instituição.
É provável que a síndrome de burnout seja responsável pela grande rotatividade de profi ssionais ligados ao cuidado com pessoas em situações adversas, com o professores, enfermeiros, agentes penitenciários, policiais, atendentes de telemarketing que trabalham ouvindo as reclamações dos clientes. O dia promete ser muito longo.
A situação é ainda pior para quem trabalha com crianças que sofreram traumas importantes. Ao se identificar com o sofrimento do outro (da criança, de um adolescente, de sua mãe), o profi ssional acaba internalizando essa dor, vendo-a como sua. Se o profi ssional não observar períodos de restauração pessoal, ele pode chegar ao ponto de passar a experimentar todos os sintomas emocionais e físicos resultantes de um trauma, mesmo não tendo passado pela experiência traumatizante. A este fenômeno dá-se o nome de trauma secundário ou fadiga da compaixão.
Apenas um encontro com o sofrimento humano não surte esse efeito. Ele é produzido por um contato diário e plural (vários casos ao mesmo tempo) com a dor de pessoas inocentes diante da violência, do abuso, dos maus-tratos, da negligência e do descaso. E agora que Mara chegou ao fundo do poço, o que ela pode fazer? Infelizmente muito pouco. O que levou Mara a esse poço foi acreditar que podia fazer tudo sozinha. O seu lema era “tudo posso naquele que me fortalece”. Mas há muito tempo ela deixara de lado o “aquele que me fortalece” e ficara apenas com o “tudo posso”. No momento, ela não pode nada.
A recuperação de Mara vai exigir um esforço coletivo: a compreensão da família, o apoio dos amigos, o amor incondicional da igreja, o respeito e tolerância da instituição. Ela precisa ser encaminhada a algum profi ssional da área da saúde (médico, psicólogo) e ao cuidado pastoral. Mara está doente, e sua doença precisa ser levada a sério (tem direito inclusive a licença médica). E, fi nalmente, o que Mara mais precisa é saber que não está abandonada. O poço pode dar início a um novo jeito de conduzir a vida, com os mesmos ideais de antes, mas com uma nova sabedoria. O fundo do poço pode ser escuro, contudo, lá ela pode achar água cristalina.
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Artigo publicado originalmente na Revista Mãos Dadas – Edição 19