Quando a rede de proteção não funciona… (2)
Transcrevemos aqui um relato retirado do livro Teoria e Prática dos Conselhos Tutelares. É a história de Ava Poty (6 anos) e Kuña Vera (7 anos) moradoras de uma reserva indígena localizada no município de Pirajú no estado do Mato Grosso do Sul e as ações do Conselhor Tutelar sobre essas crianças e sua família.
O caso foi registrado com base no relato do líder religioso Kaiowa, chefe da família extensa Ñanderu Oliveira, que vive na aldeia Jaguapiru , na reserva de Pirajú, que fica no município com o mesmo nome. Ava Poty e Kuña Vera são crianças Kaiowa que vivem com a mãe e o padrasto. É fato pouco comum o padrasto criar os filhos do primeiro casamento da mulher; o habitual naquela cultura seria que eles fossem incorporados a uma das parentelas do casal que se separou. Mas há exceções, quando o casal e os parentes próximos entendem que a situação não vai configurar um fator de desarmonia entre os cônjuges.
Ava Poty e Kuña Vera vivem harmonicamente com a mãe e o padrasto, numa casa construída ao lado da do irmão da mãe, o tio materno das crianças. As duas famílias dividem o mesmo quintal, já que a distância entre as casas é de cerca de 15 metros. Na casa do tio materno também vivem várias crianças, ocorrendo frequente interação entre as crianças das duas casas, que são primos entre si. Como é costume entre os Kaiowa, as crianças circulam livremente entre as casas das famílias que compõem a mesma família extensa, entre as quais existe parentesco sangüíneo próximo e várias formas de solidariedade política, econômica e ritual. Os compromissos entre as famílias nucleares que compõem a mesma família extensa também se estendem aos cuidados com as crianças, principalmente no caso das famílias nucleares residirem próximas, como no caso em discussão.
Em dezembro de 2007, o padrasto de Ava Poty e Kuña Vera convidou a mulher para passar o Natal na casa de seus parentes, que vivem na reserva indígena de Samambai, cerca de 130 quilômetros distante da reserva de Pirajú. A mãe e o padrasto de Ava Poty e Kuña Vera resolveram, por comodidade e contenção de custos, que o melhor seria deixar as crianças aos cuidados do tio materno e sua esposa. Também seria constrangedor para o padrasto visitar seus parentes acompanhado dos filhos do casamento anterior da esposa, pelas razões já apresentadas. O casal viajou confiante de que as crianças seriam bem cuidadas pelo tio e sua esposa. Combinaram que Ava Poty e Kuña Vera se alimentariam na casa tio, juntamente com os primos, o que já faziam com certa freqüência. As crianças também ficariam livres se quisessem permanecer algum tempo na própria casa, onde dispunham de roupas e brinquedos.
Certo dia, o agente indígena da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) passou pela casa em visita de rotina e encontrou Ava Poty e Kuña Vera brincando no quintal. Perguntou para as crianças “vocês estão sozinhos em casa?”, ao que as crianças responderam que sim. “E onde estão os pais de vocês?”, insistiu o agente de saúde; “viajaram para a reserva de Samambai”, responderam as crianças com naturalidade. Imbuído de sua responsabilidade profissional, o agente comunicou a situação para os superiores da Funasa, que comunicaram ao conselho tutelar, avisando que naquela casa havia duas crianças abandonadas pelos pais.
Segundo o relato de Ñanderu Oliveira, o líder da aldeia, o agente de saúde da Funasa não prolongou o diálogo com as crianças e não se deu ao trabalho de esclarecer com os vizinhos a respeito da ausência dos pais de Ava Poty e Kuña Vera. Seria fácil consultar o tio materno e sua esposa, que residem na casa ao lado, mas o agente simplesmente comunicou seus superiores que levaram o caso ao conselho tutelar de Pirajú, denunciando o abandono das crianças pelos pais. O agente de saúde não considerou a organização da família extensa, realizando apenas o controle dos ocupantes da casa (da família nuclear), registrados em ficha com determinado número. Muitas vezes, ainda, o agente de saúde de determinado setor mal conhece as famílias que ali vivem e presta pouca atenção às formas de sociabilidade que desenvolvem. Na reserva de Pirajú, o agente de saúde é indígena, mas não é escolhido necessariamente na região onde atua. Isto gera sérias dificuldades, dado o fato de a reserva comportar cerca de 11 mil pessoas, o que dificulta o conhecimento entre elas. Outra dificuldade é o cenário multiétnico da reserva: muitas vezes o agente de saúde pertence a uma etnia (Terena, por exemplo) e atua junto a famílias Kaiowa, sem ao menos ter o domínio da língua. Algumas mulheres e muitas crianças só se comunicam com facilidade na língua nativa.
O conselheiro tutelar de plantão foi até a casa de Ava Poty e Kuña Vera, a fim de dar uma resposta à solicitação encaminhada pela Funasa. Por precaução, solicitou o acompanhamento de uma viatura da polícia municipal de Pirajú; devido ao clima de insegurança naquela reserva, o conselho sempre recorre à proteção policial para realização de suas ações nesse local. Ao chegar à casa, o conselheiro encontrou as duas crianças brincando e informou que elas deveriam acompanhá-lo no carro até a cidade. Segundo informou o líder Ñanderu Oliveira, o tio materno notou o movimento e tentou impedir que o conselheiro tutelar levasse as crianças para a cidade, mas foi ameaçado de prisão pela guarda municipal e recuou. Assim, as crianças foram abrigadas na cidade.
Os conselheiros tutelares de Pirajú não gostam de atuar na reserva; consideram que é difícil e até perigoso trabalhar entre os índios, devido ao Conselhos tutelares fato de terem organização social e política diferenciada e pelas dificuldades de comunicação. Por outro lado, as notícias veiculadas na imprensa local a respeito das situações de risco enfrentadas pelas crianças na reserva de Pirajú, especialmente a desnutrição infantil, geram grande comoção entre os agentes que atuam na rede de proteção à criança no município. Há um sentimento compartilhado de que algo deve ser feito para proteger as crianças indígenas. Nesse contexto, a medida de abrigamento das crianças foi considerada a mais apropriada pelo conselheiro, que tomou a decisão sem maior hesitação.
A partir da retirada das crianças, o tio materno ficou desesperado. Resolveu procurar Ñanderu, líder com grande trânsito entre as instituições que atuam junto à população indígena, para que ele indicasse como poderiam localizar e recuperar as crianças. Iniciaram uma saga pela Fundação Nacional do Índio (Funai), Funasa, conselho tutelar, procurando chamar a atenção das autoridades para a inadequação da medida tomada pelo conselheiro que abrigou as crianças. Segundo Ñanderu, passaram-se 15 dias até que as crianças fossem desabrigadas; quando isto ocorreu, a mãe e o padrasto já haviam retornado da viagem.
Para pensar
- No caso das crianças kaiowa, que direitos foram violados? Quais foram os agentes violadores?
- Qual a sua opinião sobre a conduta do agente e do conselheiro tutelar?
- Qual foi o impacto das decisões tomadas para as crianças e para a política de proteção local?