O nascimento do rei pobre
Em 1926, nos 700 anos da morte de São Francisco, algo como dois milhões de peregrinos visitaram Assis, o local de seu nascimento no centro da Itália. Na época, o Papa Pio XI confirmou oficialmente a designação extraoficial de Francisco de Assis como “Alter Christus”, “o segundo Cristo”, tamanha era a semelhança que se atribuía a ele.
O que foi que inspirou Francisco a assumir uma vida de absoluta pobreza e simplicidade? Era em parte o ensino de Jesus, a saber, seu convite à abnegação e sua tarefa missionária deixada aos Doze. Mas em particular foi o exemplo de Jesus que Francisco ansiava por imitar em conformidade estrita e literal. Em particular, Francisco viu em seu nascimento num estábulo a suprema expressão da pobreza auto imposta do Filho de Deus.
Parece que se passaram três ou quatro séculos após o nascimento de Cristo até o Natal gozar de uma posição fixa no calendário da igreja ocidental e ser regularmente celebrado pelos cristãos. Em parte, isso pode ter sido causado por uma confusão. As pessoas falavam de Cristo conduzindo sua carruagem cruzando o céu como o Filho de Deus. Aliás, porque os cristãos cultuavam aos domingos e com frequência voltavam-se para o Oriente para fazê-lo, muitos pagãos pensavam que os cristãos cultuavam o sol. Foi apenas no século IV que a igreja ocidental começou a celebrar 25 de dezembro (o nascimento do Deus Sol no solstício de inverno, o dia mais curto do ano) como a natividade de Cristo.
Francisco encontrou grande inspiração nas circunstâncias em torno do nascimento de Jesus. “Ele dizia palavras fascinantes a respeito da natividade do Rei pobre e da cidadezinha de Belém”.1 Muitas vezes ele falava de Jesus “o Menino de Belém” e dizia-se dele que “O Menino de Belém está esquecido no coração de muitos; mas, por obra de sua graça, tem ganhado vida novamente por meio de seu servo S. Francisco”.2 Assim, “Francisco observava o aniversário do Menino Jesus com ávido interesse acima de todas as outras festas, dizendo que era a festa das festas em que Deus, tendo-se tornado um pequeno bebê, agarrava-se aos corações humanos.”3
Embora a centralidade da cruz esteja nítida na fé e vida de Francisco, ele mantinha juntos no coração e na mente a encarnação e a crucificação, Cristo no berço e Cristo na cruz, pois via um e outro como manifestações da humildade e da pobreza divina que resolveu imitar. Ele acreditava ter sido comissionado para proclamar o reino, servir aos necessitados, renunciar ao dinheiro e até viver sem uma muda de roupa.
Isso não significa que rejeitasse ou subestimasse o mundo material ou as boas dádivas do bom Criador. Pelo contrário, ele é bem conhecido por celebrar as criaturas de Deus, chamando-as de “irmãos” ou “irmãs” e alegrando-se nesses relacionamentos. Seu “Cântico do Sol” permanece como uma bela expressão de louvor, não obviamente à natureza, mas ao Deus da natureza. Ao que parece, ele não via dicotomia entre o reconhecimento do mundo natural como dádiva de Deus e a renúncia às posses materiais.
Outros, porém, sentem aqui um conflito não resolvido. G. K. Chesterton, por exemplo, em sua famosa obra sobre Francisco,4 dá o título de “O Problema de S. Francisco” ao primeiro capítulo. Qual era esse problema? Chesterton, que em geral é considerado o mestre do paradoxo, encontrou em Francisco várias inconsistências, até contradições. Como conciliar a alegria de Francisco com a natureza e seu ascetismo rigoroso, perguntava; sua “alegria e austeridade”,5 “como ele glorifica o ouro e a púrpura e como persiste em andar vestido de trapos”,6 “sua fome por uma vida feliz” e “sede por uma morte heróica”?7
É impossível ler a história de Francisco sem ficar profundamente tocado, mesmo que não possamos concluir, como G. K. Chesterton, que Francisco “viveu para mudar o mundo”.8 Além disso, arrisco-me a perguntar: Será que a decisão de Francisco de imitar a Cristo em todas as coisas não foi literal demais? Será que não lhe passou despercebida a linguagem viva e dramática que Jesus empregava com frequência? Por exemplo, em Lucas 14.25-33, Jesus apresentou três condições sem as quais um candidato a seguidor, disse, “não pode ser meu discípulo”. Primeiro, ele deve “odiar” pai e mãe, esposa e filhos, irmãos e irmãs. Depois, deve “carregar sua cruz” e seguir a Cristo. Terceiro, deve “renunciar a tudo o que possui”. Agora, certamente não temos permissão para diluir o remédio poderoso do evangelho. Ainda assim, “levar a cruz” é sem dúvida não literal; Jesus não exigiu que todos os seus discípulos fossem crucificados. A ordem de odiar nossos parentes mais chegados também não pode ser entendida literalmente; é pouco provável que o Jesus que nos mandou amar até nossos inimigos nos mandasse odiar nossa própria família. Do mesmo modo, é certo que a terceira ordem (renunciar às propriedades) também não deve ser entendida literalmente. Não se trata de uma evasão covarde do ensino de Jesus, mas de um desejo honesto de descobrir o que ele estava querendo dizer. O preço do discipulado implica colocar Cristo à frente em tudo, até mesmo de nossos parentes, nossas ambições e nossas posses.
Notas
1 – M. A. Habig (ed.), St Francis od Assissi: Writing and Early Biographies (Herald, 1972), p. 301.
2 – Ibid., p. 301.
3 – Thomas of Celano, The Second Life of St Francis (J. M. Dent & Co., 1904), p. 521.
4 – G. K. Chesterton, ST Francis of Assissi (1923; Hodder and Stoughton, 23. ed., 1943).
5 – Ibid., p. 15.
6 – Ibid., p. 17.
7 – Ibid.
8 – Ibid., p. 189.
Trecho retirado de O Incomparável Cristo. Editora Ultimato.