Fé em Busca de Catolicidade
Trecho adaptado do capítulo: “Católica: as dimensões da missão”, que escrevi como contribuição para o livro “Harmonia”, a ser lançado pela editora Mundo Cristão em 2016 (Pedro Dulci, Ed.)
É fato que o termo “católico” se tornou um nome institucional da igreja romana, e isso quase inviabilizou o seu emprego entre os cristãos evangélicos Brasileiros; mas essa não é uma perda aceitável. O termo, uma transliteração do grego kath’holou que significa literalmente “conforme o todo, e assim “inteiro”, “completo” ou “geral” e “universal”[1], tem um inegável pedigree. Ele aparece pela primeira vez nos pais apostólicos (em Inácio de Antioquia e no “Martírio de Policarpo”) e nas versões mais recentes do Credo Apostólico, a mais antiga confissão de fé ecumênica, como adjetivo da igreja e artigo de fé. Mas seu emprego mais importante na antiguidade – e decisivo para nós – encontra-se no Credo Niceno-Constantinopolitano, produzido no Concílio de Constantinopla (381 d.C.) e aceito por todas grandes as igrejas Cristãs, para descrever as quatro marcas da verdadeira igreja: “Una, Santa, Católica e Apostólica”.[2] Este último, por si só, torna o ponto um artigo de fé e obrigatória a discussão do assunto.
Posteriormente o termo foi extensivamente empregado pela igreja medieval, e mesmo a Reforma Protestante não destruiu sua legitimidade. Um exemplo antigo e citado com frequência é o do importante teólogo reformado William Perkins, que publicou em 1597 uma obra intitulada “Um Católico Reformado”, expressando esses instintos de catolicidade.[3] Filipe Melanchton, o principal sucessor de Lutero, descreveu a confissão de Augsburgo como “um documento católico”, e afirmava que os luteranos seriam parte da “igreja católica”, no sentido da igreja universal. Robert Letham demonstrou recentemente que a busca da catolicidade está claramente presente na construção da Confissão de Westminster[4]. Todd Billings apresenta também vários exemplos dessa consciência de catolicidade no protestantismo[5] e, não podemos nos esquecer, a comunhão Anglicana, um dos mais importantes ramos do protestantismo e igreja de líderes importantes para a história recente do movimento evangélico como C.S. Lewis, John Stott, James Packer, Alister McGrath e N.T. Wright, desde sempre considera a catolicidade um aspecto essencial de sua identidade.
Não se trata, então, de mera palavra. Como veremos, todo um campo de sentidos e valores muito importantes articula-se organicamente sob a ideia de catolicidade, e não há outro termo hoje que seja capaz de dar conta do recado. Para comunicar a importância do conceito, eu diria ao leitor que a sua fé não pode ser verdadeira, se não for católica. Jesus Cristo era católico; a igreja é católica, a fé é católica; e, por isso, a missão cristã também é católica. E esse será o nosso assunto no presente capítulo: a catolicidade da fé Cristã.
Muitas Catolicidades
O emprego mais trivial do termo “católica” visa sem dúvida destacar a presença da igreja em todo o mundo, bem como o compartilhamento por todas as igrejas do mundo da única fé verdadeira. Mas desde a antiguidade o conceito já era reconhecidamente mais rico e denso, denotando diversas dimensões da universalidade ao mesmo tempo. É o que se vê por exemplo nas palavras de Cirilo de Jerusalém (313-386 d.C.):
“A Igreja, então, é chamada Católica porque se espalhou por todo o mundo, de um extremo ao outro da terra, e porque ela nunca cessa de ensinar em toda a sua plenitude cada doutrina que os homens devem ser levados a conhecer: e isso com respeito a coisas visíveis e invisíveis, no céu e na terra. Ela é chamada Católica também porque traz à obediência todo tipo de homens, governantes e governados, eruditos e simples, e porque é um tratamento e cura universal para cada tipo de pecado perpetrado, seja pela alma ou pelo corpo, e possui nela cada forma de virtude que se nomeia, seja isso expresso em atos ou obras ou em cada graça espiritual que se pode descrever.”[6]
Catolicidade, então, é universalidade horizontal, geográfica e multicultural (todo o mundo), mas também envolve outros níveis de totalidade ou inteireza: todas as partes do universo, homens em todas as classes ou funções sociais, todos os tipos de curas, todos os tipos de virtudes, e toda a plenitude da doutrina. Essa extensão multidimensional nos permitiria falar em “catolicidades”, como nota o teólogo católico Avery Dulles:
Na tradição teológica a catolicidade veio a conotar a ausência de barreiras, ilimitação, transcendência. O que quer que restrinja ou divida opõe-se à catolicidade. Mas desde que há muitos tipos de barreiras ou limites, há também muitos tipos de catolicidade.[7]
Essa pluricatolicidade ou catolicidade multidimensional poderia ser descrita, numa linguagem missiológica moderna surpreendentemente aproximada, como “todo o evangelho, para o homem todo, e para todos os homens”. O que o discurso sobre a “integralidade” do evangelho ou da missão pretende acessar, de um modo nem sempre consciente, é o que as igrejas Cristãs chamam, desde a antiguidade, de “catolicidade”.
Uma vantagem, no entanto, do conceito de catolicidade, é que por sua riqueza ele abrange outros níveis de plenitude que o movimento evangélico precisa considerar: não apenas a catolicidade intensiva ou “cosmológica”, no sentido já posto de “integralidade”, que significa que todo o homem e todos os campos da vida são impactados pelo evangelho, mas também a catolicidade extensiva ou social, ou “universalidade”, compreendida não apenas geográfica e transculturalmente, mas também para todos os homens (contra a segregação racista, por exemplo) e entre classes e grupos sociais (contra as ideologias que validam a luta de classes e querem acirrá-la como instrumento de “missão”), a catolicidade teológica ou confessional ou “integridade”, que consiste no anúncio do evangelho “todo”, sem amputá-lo nem reduzi-lo a um campo particular de aplicação (diminuições evidentes, por exemplo, no caso da “Cruz de Espinal”, que já tratamos aqui, ou no caso da “teologia da prosperidade”) e finalmente a catolicidade temporal ou tradicional, ou “continuidade”, que nos ajuda a pensar a igreja e a fé em ligação humilde e consciente com o passado: os pais da Igreja, os doutores, os Reformadores, e as práticas litúrgicas, devocionais e missionais do passado.
Sobre esse último ponto há muito o que pensar e fazer. É comum ouvirmos que o movimento evangélico hoje precisa desesperadamente de “reforma”. Mas o que significaria reforma hoje, considerando a situação real da igreja evangélica? Penso que a única reforma possível para nós hoje é a redescoberta da catolicidade da igreja. A igreja evangélica não sofre por falta de protestantismo, mas de catolicidade. É por isso que ela se fragmenta em um punhado de seitas pseudoevangélicas.
E antes que alguém se assuste, asseguro que essa catolicidade não está no romanismo, embora ela nos habilite a apreciar alguns de seus méritos. A raiz da catolicidade está no evangelho e na universalidade de Jesus Cristo. Mas enquanto a igreja romana perde o evangelho por falta de reforma, a igreja evangélica perde o evangelho por falta de catolicidade e, particularmente, da catolicidade temporal ou continuidade com seus veículos: credos, comunhão, tradição, unidade natureza-graça, história, heróis, e a visão de um Deus Trino que seja maior dos que os nossos sentimentos e projetos religiosos.
[1] Dulles, Avery. Catholicity and Catholicism. Concordia Theological Quaterly, April 1986:81.
[2] Harrison, E.F. Católico. Em: Elwell, Walter A. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. 1. São Paulo: EVN, 1988, p.260.
[3] Allen, Michael, Swain, Scott R. Reformed Catholicity: the promise of retrieval for theology and biblical interpretation. Grand Rapids: Baker, 2015, p.3.
[4] Letham, Robert. Catholicity Global and Historical: Constantinople, Westminster and the Church in the Twenty-First Century. Westminster Theological Journal 72 (2010):43-57.
[5] Billings, J. Todd. Catholic and Reformed: Rediscovering a Tradition. Pro Ecclesia XXIII:2:140-141.
[6] Cirilo de Jerusalém, “Epístolas Catequéticas” (XVIII, 23). Cyril of Jerusalém and Nemesius of Emesa, ed. William Telfer, The Library of Christian Classics, IV (Philadelphia: The Westminster Press, 1955), p. 186. Apud: Bavinck, Herman. The Catholicity of Christianity and the Church, Calvin Theological Journal 27, 1992:221, n.3 (John Bolt, nota do tradutor).
[7] Dulles, “Catholicity”, p. 81-2.
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