O artigo abaixo é o texto da palestra apresentada na Fnac-BH na noite de 22 de Janeiro deste ano; prometi à audiência e aos amigos de L’Abri que disponibilizaria o texto inteiro; daí o formato “paper”; mas, enfim, sendo caridoso comigo mesmo, meu blog sempre teve um formato muito pessoal. Bom proveito!

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Segundo o filósofo francês Gilles Lipovetsky, “a felicidade é o valor central, o grande ideal celebrado sem tréguas pela civilização consumista” [1]. É certo que se trata de um grande tema contemporâneo: temos filmes, livros de autoajuda, programas de TV, teorias administrativas, projetos partidários e até políticas publicas destinadas a aumentar a felicidade geral. Há toda uma esfera da sociedade contemporânea, descrita pela socióloga Eva Illouz como o “campo afetivo”, interessada na criação e manutenção do bem estar; e dentro dela temos até mesmo uma “ciência da felicidade”, promovida pelo movimento da “psicologia positiva”.

E muito embora Lipovetsky associe essa grande celebração atual da felicidade a uma fixação consumista – e creio que ele está basicamente correto nisso – a busca da felicidade não é coisa nova. Freud, que não era um sujeito particularmente feliz, já havia apontado a busca da felicidade como a coisa central para interpretar o homem:

“o que revela a própria conduta dos homens acerca da felicidade e intenção de sua vida, o que pedem eles da vida e desejam nela alcançar? É difícil não acertar a resposta: eles buscam a felicidade, querem se tornar e permanecer felizes”[2]

Freud não relaciona a busca da felicidade à condição da sociedade moderna, mas à própria natureza humana. E ainda que a sociedade de hiperconsumo seja uma forma particular de organizar essa busca, ela esteve sempre aí; foi tema das chamadas revoluções burguesas; antes delas Pascal observava que todos os homens querem ser felizes, e que tudo o que fazem visa a felicidade, até mesmo o homem que vai se enforcar; na antiguidade Cristã teólogos como Santo Agostinho escreviam sobre “A Vida Feliz” e, bem antes dele os gregos já conheciam os detalhes do assunto; Platão reconhecia que todos querem ser felizes.

 

A Felicidade dos Filósofos

Digo isso para deixar claro que a “busca da felicidade” não é assunto criado pela literatura de “autoajuda”; é assunto sério. Identifiquei-me profundamente com a abordagem de André Comte-Sponville, um filósofo francês atual, bastante popular, de persuasão ateísta: para ele a felicidade não é somente um assunto da filosofia, mas o que define a própria filosofia. Sua inspiração veio do seguinte fragmento de Epicuro:

“A filosofia é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”.[3]

E a partir dela Sponville cunha a sua própria definição:

“A filosofia é uma prática discursiva […] que tem a vida por objeto, a razão por meio, e a felicidade por fim”[4]

Essa forma de relacionar a filosofia com a vida, ao invés de mantê-la como uma discussão abstrata, heurística, limitada ao universo acadêmico, me encanta bastante. É a forma antiga de fazer filosofia. E lembro aqui que na tradição judaica a sabedoria também estava ligada à felicidade. Dizem os provérbios de Salomão:

“Feliz é quem encontra a sabedoria, e quem adquire o entendimento, pois o lucro da sabedoria é melhor que o da prata; sua renda é melhor do que o ouro […] É árvore de vida para os que a alcançam, e todo aquele que a conserva é feliz.” (Pv 3.13-18)

Pelo menos nessa parte da jornada nós, Cristãos e ateus, podemos andar juntos; mas desde já divergimos também: a sabedoria grega era basicamente o fruto de uma visão intelectual, enquanto a sabedoria hebraica fundava-se na audição e na interpretação. Isso é outro assunto, no entanto.

Felicidade, então, não é só assunto de “autoajuda”; é assunto filosófico, e também assunto religioso; e também assunto ateísta. Para Sponville é certamente um tema ateísta. Sponville é um dentre vários filósofos ateus contemporâneos ocupados em desenvolver uma ou outra forma de espiritualidade ateísta, tal qual Alain de Bottom ou Luc Ferry.

E para desenvolvê-la, ele precisa enfrentar o tema da felicidade. É possível ser feliz sem Deus, afinal? O debate o leva a conversar com Blaise Pascal, o matemático e filósofo Cristão do século XVII. Sponville concorda com Pascal, em que

“o homem não pode ficar face a face consigo mesmo sem cair no tédio, no desgosto e no desespero, porque descobre então o pouco que é e o pouco que o espera. O que sou eu? Quase nada. O que me espera? Nada: o nada, a morte. Donde o ‘divertimento’, no sentido pascaliano do termo, ou seja, essa vaga de ocupações que impomos a nós próprios, as quais parecem visar a felicidade, embora só sirvam, na realidade, para nos fazer evitar pensar em nós mesmo e na nossa morte.”[5]

Concorda no diagnóstico, mas recusa o remédio pascaliano. Pois para Pascal só a esperança de uma outra vida pode trazer alguma felicidade nessa vida – e simultaneamente nos livrar da ilusão do entretenimento. Sobre isso nosso filósofo comenta:

Se Pascal tiver razão, um ateu não pode escapar ao desespero e, logo, à infelicidade. É precisamente esse ‘e, logo’ que tentei, pela minha parte, questionar. Creio, concordando com Pascal, que um ateu lúcido e coerente não pode escapar ao desespero, já que nada o espera, afinal de contas, senão a morte. Porém, recuso-me a pensar com ele que o desespero seja necessariamente uma infelicidade.[6]

Como assim? Sponville propõe o “alegre desespero”. Ele observa que só esperamos o que não temos. “Se esperamos a felicidade, é porque não somos felizes […] Portanto, felicidade e desespero podem – e devem, para um ateu – andar juntas: enquanto espero a felicidade, não sou feliz; quando sou feliz, já não tenho mais nada a esperar”.[7] É necessário abandonar a esperança e desejar tão somente o que há, agora, e o que se faz, agora: amor no lugar da esperança. E cita um tratado budista para reforçar seu ponto:

“Só o desesperado é feliz, porque a esperança é a maior tortura que existe, e o desespero, a maior beatitude”.[8]

Então Sponville precisa lidar com a esperança, e não só com ela: com o que nos tira do presente e não nos deixa reconhecer que ele é pleno, e não há nada além dele. E isso o levará, naturalmente, à filosofia do tempo. O que é o tempo, afinal de contas? Qual é o status de passado, presente e futuro?

 

O Tempo da Felicidade

A filosofia do tempo é um assunto controversíssimo e reconhecidamente difícil. Os estudiosos se dividem em cada uma das questões importantes, como se o tempo é estático ou dinâmico, sua extensão, se a linguagem do tempo verbal é verdadeira ou ilusória, sobre a natureza da mudança, e por aí vai…

André Comte-Sponville escreveu uma obra muito rica sobre tempo, intitulada “O Ser-Tempo”. Nessa obra ele defende uma versão do que é chamado de “presentismo”: tudo o que existe, existe “agora”:

“o tempo é o presente […]. O passado não existe, já que não existe mais; o futuro não existe, já que ainda não existe: só há o presente, que é o único tempo real. […]

Nada existe, senão o presente; nada subsiste (do passado ou do futuro), senão no presente. O presente contém, portanto, tudo o que existe ou subsiste; o presente contém tudo”.[9]

Sponville admite que sua visão tem certa origem em Agostinho, que trata do assunto em um trecho clássico, no capítulo 11 das Confissões:

“Agora está claro e evidente para mim que o futuro e o passado não existem, e que não é exato falar de três tempos – passado, presente e futuro. Seria talvez mais justo dizer que os tempos são três, isto é, o presente dos fatos passados, o presente dos fatos presentes, e o presente dos fatos futuros. E estes três tempos estão na mente e não os vejo em outro lugar. O presente do passado é a memória. O presente do presente é a visão. O presente do futuro é a espera. Se me é permitido falar assim, direi que vejo e admito três tempos, e três tempos existem.”[10]

Pedindo desculpas por usar essa linguagem imprecisa, Agostinho se rende e fala em três tempos; poderíamos falar em três presentes, já que não os experimentamos da mesma forma. E quanto ao presente “presente”, até este estaria em processo de passar e se desfazer, para Agostinho. Então o tempo seria um mistério: um “quase nada” entre dois nadas.

Mas Sponville não reconhece os três como tempos reais, objetivos, externos, como tempos “do mundo”. Para ele, são apenas coisas da alma. O tempo do mundo seria presente, e ponto. A divisão em três seria coisa da subjetividade humana, e por isso ele prefere dar outro nome: “temporalidade”.[11] Tempo é o presente, que dura e está sempre aí; é o ser, pleno, eterno, que nunca passa. O tempo não passa, já que é o presente; nós é que passamos por ele. Portanto, passado e futuro não existiriam.

É compreensível que Sponville tenha essa visão presentista, já que em sua visão da felicidade o presente é tudo, e a esperança é uma tortura. O futuro é irreal, e o desejo do que está no futuro se dirige para o irreal. Tudo deve se voltar para o presente, para a vontade de viver agora, para o que se pode ter agora. Portanto o tempo da felicidade é o tempo do presente eterno e pleno. Mas será isso viável?

 

Será Viável?

Um exemplo interessante do que Sponville diz é um fenômeno antropológico singular, em terras brasileiras. Em 1977 o Dr. Daniel Everett veio ao Brasil com sua família, como missionário enviado à tribo amazônica de caçadores-coletores denominada Pirahã, com o propósito de traduzir a Bíblia e evangelizar a tribo. Alguns anos depois ele perdeu a fé e se tornou ateu, em parte pelo que testemunhou lá.[12] Segundo ele os pirahã seriam um povo contente e feliz, extremamente consciente do presente e de sua experiência imediata, sem qualquer crença em deuses ou mitos (embora acreditassem em espíritos). Eles não acreditaram na mensagem de Everett sobre Jesus, quando descobriram que ele mesmo nunca havia visto Deus ou Jesus. E ele sentiu que não tinha como pregar aos Pirahã que eles estavam perdidos, em pecado, e necessitados de Deus.

Mas não foi por isso que Everett se tornou famoso; ele descobriu que a língua dos pirahã não funciona de acordo com as previsões da teoria linguística de Noam Chomsky, dominante na atualidade. Além de não ter tempos verbais para o passado e o futuro, nem palavras para números, a linguagem aparentemente carece da “recursividade”, que é a capacidade da linguagem de acrescentar e conectar ideias, o que permite a formação de conceitos complexos. Se ele estiver correto, a principal teoria linguística na atualidade pode ser refutada.

Agora o mais importante: Everett sugeriu que haveria uma conexão entre a ausência da recursividade e dos tempos verbais, e o “presentismo” da cultura Pirahã. Eles teriam uma “gramática da felicidade”, voltada unicamente para o presente, e por isso não tem história, nem genealogia, nem mitos, nem esperanças futuras, nem desejo de aprender novidades. Tudo, para eles, é imutável e constante; e só importa o aqui e agora. Eles apenas habitam, contentes, o presente, num “carpe diem” literalmente pré-histórico.

As histórias de Sponville e Everett parecem se encaixar muito bem: a felicidade como a vivência serena do presente, a crença na plenitude do presente, sem transcendência nem esperança. Mas será esse presentismo espiritual viável para nós, que já conhecemos a história, e já sofremos tanto com o nosso passado quanto com as incertezas do futuro?

 

A Inevitável Temporalidade

Comte-Sponville chama de “temporalidade” a nossa consciência tríplice do tempo, que chamei antes de “os três presentes”. Devido à ênfase no presente, ele não discute muito o lugar do presente-futuro e do presente-passado na constituição da consciência; na verdade ele quer superar a preocupação com a temporalidade e instaurar em seu lugar o presentismo. Mas considero isso uma falha importante.

Meu ponto: consciência é temporalidade. A consciência é feita da fusão de três faculdades da alma: a memória, a percepção e a imaginação. A memória é o que torna presente, para a consciência, o que se passou e já não é mais. A imaginação antecipa o que ainda virá, tornando possível desejar, ou não desejar, e principalmente, planejar. E a percepção nos coloca em contato direto com o presente. O sentimento de termos um “eu” que permanece e que é capaz de agir intencionalmente só existe porque, além da percepção, temos memória e imaginação. Assim é possível suprimir, mas não eliminar, a temporalidade.

Meu ponto: consciência é temporalidade. A consciência é feita da fusão de três faculdades da alma: a memória, a percepção e a imaginação.

Por isso mesmo, não podemos diminuir a importância da memória e da expectativa na constituição do que somos como indivíduos e como membros da cultura ocidental moderna. A memória tornou possível a tradição, o acúmulo de conhecimentos, o registro, e a posse racional de uma identidade cultural. E a Esperança deu ao homem um horizonte para sair em jornada, para encarar o desconhecido e, por isso, o que está além do presente. Sem ela, tudo o que existe é o círculo da fertilidade:

“Tudo o que o índio faz é em um círculo, e isso porque o poder do mundo sempre age em círculos, e todas as coisas tentam ser redondas […]. Até mesmo as estações formam um grande círculo em sua mudança, e sempre retornam para onde estavam. A vida de um homem é um círculo desde a infância até a infância, e assim é em tudo onde há energia.”[13]

A esperança – goste Sponville disso ou não – é o que levou o patriarca Abraão a romper com o ciclo repetitivo da fertilidade, refletido no calendário Caldeu antigo, e a caminhar em direção a uma promessa divina que não era a repetição eterna do mito – e assim o povo hebreu, por assim dizer, “inventou o futuro”, como mostra habilmente o Dr. David Cahill na obra “A Dádiva dos Judeus”:

“Então, ‘wayyelekh Avram (‘Avrão foi’) – duas das palavras mais ousadas de toda a literatura. Assinalam uma sepração total de tudo o que aconteceu antes, na longa evolução da cultura e da sensibilidade. Da Suméria, repositório civilizado do previsível, parte um homem que não sabe aonde está indo, mas que segue para o ermo desconhecido sob a inspiração do seu deus […]. Da humanidade antiga, que desde as origens obscuras de sua consciência, leu suas verdades eternas nas estrelas, parte um grupo que se orienta por uma bússola desconhecida. Da raça humana, que conhece na própria pele que todo esforço acaba na morte, parte um líder que diz ter recebido uma promessa impossível. Da imaginação mortal, parte o sonho de algo novo, algo melhor, algo ainda por acontecer, algo… no futuro.”[14]

Dessa esperança surgiu a civilização Cristã, e com ela os ideais modernos de progresso, utopia e transformação social.

O que quero dizer é que, sem um sistema de crenças – e uma cultura espiritual – que não enfatizasse exatamente a potência da memória e a esperança, viveríamos um estado de paralisia cultural. Pois, como Everett observou, o presentismo dos Pirahã não apenas os mantém felizes, mas também impede que seu universo se alargue ou muito menos se transforme.

Em nosso caso, inspirar-se nesse presentismo seria um ato de fuga também por outra razão: é que, retornando a Pascal, a abertura do passado e do futuro nos fez descobrir a nossa miséria e as nossas possibilidades. Descobrimos que estamos caídos, expulsos do paraíso; descobrimos que, caminhando, chegamos perto da terra prometida; e descobrimos que o nosso destino é a morte. Isso traz culpa e remorso, por um lado, e ansiedade e infelicidade, por outro. Mas será honesto forçar um espírito presentista quando a nossa consciência de temporalidade nos diz que estamos moralmente implicados com a memória do passado e a intuição do futuro?

A bem da verdade, Sponville se esforça por responder a essa crítica. Ele nega explicitamente “que se deva amputar toda a relação com o futuro”[15], mas afirma que ela deve ser limitada ao que podemos garantir por nós mesmos: pelo saber e pela vontade. Devemos nos relacionar com o futuro tão somente enquanto o futuro depender de nós; como o homem que escolhe fazer sexo e que, segue “feliz, confiante, como que já gozando, fantasmaticamente, o prazer anunciado”.[16] Mas não é este, sem dúvida nenhuma, um futuro minúsculo, restrito ao que eu posso fazer ou tentar fazer? Onde está o outro nesse futuro? Onde está o nós – se só posso garantir a mim? Se assim for, acabou-se todo o futuro.

Citamos Sponville, lá atrás, aprovando sua visão da natureza da filosofia: uma investigação com vistas à felicidade. Agora cito um filósofo bem mais próximo de nós, que descreveria sua atividade filosófica de um modo quase oposto:

“A maior impostura moderna não é sua utopia racionalista, mas sim sua denegação sistemática da infelicidade […].O ser humano […] obviamente é um ‘ser-para-a-infelicidade’. O fundamental seria identificar qual é a relação específica entre modernidade e (in)felicidade. Essa relação caracteriza-se, dentre outros modos de descrevê-la, pela técnica denegativa dessa condição íntima humana (o ser-para-a-infelicidade), técnica esta que, em muitos casos, constituiu-se num repertório variado de pseudoteorias a serviço do fetiche da felicidade”.[17]

E, mais à frente, acrescenta:

“Um dos traços mais bregas de nossa época é supor que se pode ter vida moral sendo feliz […]. Dependemos da graça para sermos virtuosos, nossa natureza vaidosa e orgulhosa por si mesma nunca sairá do seu pântano pessoal. A ideia de que nossa natureza humana seja um tormento me parece a mais verdadeira de todas as descrições de nossa vida. Sei que muita gente julga essa visão ultrapassada, mas sinto um prazer todo especial em ser ultrapassado num mundo superficial como o nosso. Por que superficial? Porque parasitado por engenharias para a felicidade. Somos escravos da felicidade, mas é a infelicidade que nos torna humanos.”[18]

O que separa tanto Sponville e Luiz Filipe Pondé, no tocante à nossa discussão sobre felicidade? Claramente, a consciência da miséria humana. É sabido que, entre as doutrinas Cristãs que os filósofos iluministas mais detestavam, figurava a doutrina da Queda do homem no pecado. Ocorre que a modernidade nunca produziu uma descrição da experiência humana do mal capaz de rivalizar com ela e, no mais das vezes, não está nem um pouco interessada nisso: continua firme na crença de que o homem não é tão mau assim. Pondé quer desenterrar o defunto; Sponville quer esquece-lo para sempre:

“O que é existir, para a maioria dos filósofos contemporâneos? É ser fora de si, sempre adiante-de-si, como diz Heidegger, sempre jogado (no mundo) e se projetando (no futuro), sempre transcendendo seu próprio ser […] sempre livre, sempre preocupado, sempre ansioso, sempre atormentado pelo nada, sempre voltado para a morte, sempre teleologicamente voltado para o futuro.”[19]

“É preciso suspender aqui o interdito heideggeriano, libertar-se da preocupação e da angústia, para voltar enfim aos gregos, à ousia como presença e à parousia do mundo: ser é presente, e não há outra coisa. Primado do tempo e não da temporalidade, primado da insistência e não da existência, primado do desejo e não da angústia, primado do mundo e não do nada – ser-para-a-vida e não ser-para-a-morte!”[20]

É claro que num presentismo consistente, não pode haver pecado nem esperança de libertação do pecado. Então é melhor não pensar nisso: vamos esquecer a temporalidade, com passado, presente e futuro, e ficar no “Carpe Diem” presentista. Mas como retornar à condição infantil e pré-histórica dos Pirahã agora que conhecemos a liberdade, o pecado e o futuro?

Creio que a questão vai além de uma diferença entre estilos filosóficos, do “existencialismo” em oposição ao “essencialismo” ou “insistencialismo” (Sponville). Uma filosofia que deseja contornar as dores que a memória causa e os frutos que a esperança traz não pode ser uma filosofia honesta, mesmo que nos deixe contentes. E quem nos ensina isso não é o próprio Sponville?

“a felicidade que queremos, a felicidade que os gregos chamavam de sabedoria, aquela que é a meta da filosofia, é uma felicidade que não se obtém por meio de drogas, mentiras, ilusões, diversão, no sentido pascaliano do termo; é uma felicidade que se obteria em certa relação com a verdade: uma verdadeira felicidade ou uma felicidade verdadeira.”[21]

Sponville quer se livrar da temporalidade ou, ao menos, reduzir sua importância, porque ela está evidentemente alienada; é fonte de dor e se interpõe entre o self e o presente, que é sua vida; é um obstáculo para a felicidade. Mas esse obstáculo não pode ser contornado.

 

A Felicidade Ferida

Na verdade não considero Pondé uma alternativa viável, diante do projeto de felicidade de Sponville; apenas um corretivo. Se há uma dificuldade para viver o presente diante do fato inevitável da temporalidade, que se agarra à consciência, mas o presente é indiscutivelmente o lugar do contentamento, então é preciso admitir, com Agostinho, que a felicidade completa é impossível.

Esse é o realismo Cristão; não é meramente uma utopia, como o ateísmo deseja colocar, mas em parte uma aceitação do fato de que a filosofia não pode vencer o mal, e portanto não pode produzir a felicidade. E aqui nos separamos radicalmente de Sponville. Não é que não temos a filosofia certa; é que o mundo está errado, e a única filosofia capaz de me fazer feliz, neste mundo, é a filosofia que me fizer aceita-lo completamente. Mas a filosofia que me fizer aceitar este mundo destruirá a minha humanidade ou me fará amputar partes de mim, como Sponville faz com a Esperança.

Mas não é que não haja uma felicidade ou bem-aventurança; é que ela é quebrada como o mundo é quebrado, incompleta. Na verdade Sponville afirma essa incompletude, embora atribua isso mais à finitude que à malignidade humana; mas isso é tão terrivelmente incompleto que não se pode nem mesmo considerar parcialmente válido. É simplesmente nulo de significado.

O que a “felicidade ferida” precisará encarar, então? A aceitação da temporalidade. Mas como viver a temporalidade inteira e ainda ser feliz?

 

A Temporalidade Reconciliada

O Cristianismo ensina que a raiz profunda da infelicidade humana é a sua alienação de Deus. Pecado é isso, disse Kierkegaard: “em incredulidade, diante de Deus ou do conceito de Deus, querer ser você mesmo ou não querer ser você mesmo”. Pecado é essa alienação radical, a tentativa de subsistir de si mesmo, como se o existir não fosse uma dádiva contínua. Pecado é a vida “sem a graça” e, por isso, “sem graça”.

Então não podemos ir diretamente ao contentamento e voltar à infância, retornar à condição ahistórica dos pirahãs. Precisamos de reconciliação, de retomar e superar as doenças do passado, do presente e do futuro. E que doenças são essas?

Grosso modo, são as seguintes: a culpa, a vergonha e a dúvida corrompem a memória; a ansiedade corrompe a imaginação; o hedonismo e o tédio corrompem o presente.

Como isso acontece é um assunto longo; tratamos dele em uma palestra de L’Abri intitulada “o sacramento do momento presente”. Mas basta saber, aqui, que a alienação de Deus e sua substituição por ídolos, que são deuses falsos, é a raiz dessa corrupção da temporalidade. Os ídolos nos fazem ser inautênticos e a falhar com o próximo, e por isso experimentamos a culpa e a vergonha; os ídolos falham em cumprir suas promessas, e nos tornam escravos da ansiedade; os ídolos nos deixam insatisfeitos, e por isso tentamos abusar dos prazeres presentes, no hedonismo. E o abuso do prazer leva ao tédio, o esgotamento da percepção, a insensibilidade e o desengajamento do presente.

Essa experiência temporal do mal – a culpa, a concupiscência, o tédio e a ansiedade – não pode ser contornada pelo expediente presentista. Este cálice precisa ser tomado até o fim.

Mas a fé Cristã não termina no realismo radical; no seu centro está o testemunho de Jesus Cristo bebeu o cálice, inteiro. Por sua identificação com os pecadores, Deus tornou sua a nossa história e tornou nossa a sua vida. Na cruz ele suportou conosco a vergonha e nela Deus perdoou os nossos pecados; pela ressurreição de Jesus Cristo deu nos deu um futuro que é mais do que uma aspiração ou um desejo, mas uma certeza; e sua amizade eterna tira a obsessão presentista, de viver “tudo, ao mesmo tempo, agora”.

Que palavras descrevem essa reconciliação da temporalidade? Se olhamos para o passado, encontramos a aceitação, e por isso podemos ser completamente realistas sobre o que vivemos; e podemos começar a integrar esse passado em uma história significativa. Se olhamos para o futuro, encontramos Esperança; não otimismo, utopia, ou a tortura do desejo, mas a expectativa; expectativa baseada no saber, no antever, na antecipação do alimento que já reconhecemos pelo aroma. E se olhamos para o presente? Encontramos um sacramento.

 

O Sacramento do Momento Presente

De um ponto de vista Cristão ou Bíblico, o mundo não é um evento sem significado. O mundo tem sentido, e esse sentido é a trindade, a comunidade de amor divino que une Pai, Filho e Espírito Santo. O mundo, na tradição Cristã, é um grande evento desse amor, mas um evento em processo, ainda incompleto para nós.

Mas essa fé não teria um impacto tão grande em nossa vida se não fosse outra doutrina muito importante do Cristianismo, que é a doutrina da adoção. Para os Cristãos, Deus nos abraça por meio de Jesus Cristo, e inclui todos os amigos de Jesus Cristo em sua família divina. Isso tem um efeito muito importante na espiritualidade Cristã: aos olhos do Cristão, o mundo inteiro passa a ser um evento de graça; uma dádiva.

O termo “sacramento” descreve bem essa experiência. Um sacramento é um símbolo de algo divino, mas que não apenas representa conceitualmente o seu referente; ele torna o referente disponível. Pense na face humana: a alma não é o rosto, mas aparece tão claramente no rosto que ao tocá-lo podemos tocar a alma de alguém.

O filósofo inglês Roger Scruton descreve a experiência de Deus dessa forma: a face de Deus surge na Criação para o fiel. Isso é o que acontece ao Cristão: ao reconhecer a presença divina em Jesus Cristo, ele passa a reconhecer a mesma face no mundo, que se torna para ele um sacramento de graça: cada instante, cada pedaço de matéria, cada ser torna-se translúcido, sem desaparecer na transparência. É disso que o Salmista falava quando dizia, no Salmo 19:

“Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia declara isso a outro dia, e uma noite revela conhecimento à outra noite. Sem discurso, nem palavras; não se ouve a sua voz. Mas sua voz se faz ouvir por toda a terra, e suas palavras, até os confins do mundo.” (Salmo 19.1-4)

Nesse sentido, o Cristão poderia concordar substancialmente com o presentismo de Sponville; o presente é uma dádiva, e cada experiência de prazer presente é uma dádiva. Na verdade, o “Carpe Diem” Cristão tem um elemento singular que é completamente ignorado por Sponville: a gratidão.

Normalmente não conseguimos dar atenção a duas coisas ao mesmo tempo. Mas sob certas condições, podemos percebê-las simultaneamente. Podemos, por exemplo, contemplar o que está além de uma vidraça, através da janela, ou olhar para a própria vidraça; não podemos focar as duas coisas ao mesmo tempo, mas podemos manter a consciência de uma enquanto vemos a outra. Mesmo assim, não podemos “desfrutar” das duas coisas simultaneamente.

o “Carpe Diem” Cristão tem um elemento singular que é completamente ignorado por Sponville: a gratidão.

Podemos receber um copo d’água e aliviar com ele a nossa sede; e isso é muito bom. Esse é o presentismo ateísta: simplesmente viver o momento, entregar-se a ele; se é alguém virtuoso, viva o momento sem abuso e sem tédio. Essa é a meta.

Mas a gratidão transforma essa experiência radicalmente. O prazer de aliviar a sede é um prazer exterior, físico, epidérmico. Mas o prazer de ser amado é um prazer interno, que não é uma sensação que nos acontece, um fluxo que passa por nós, mas um estado, uma condição do ser, uma duração. E se os dois acontecem juntos? O prazer da percepção, e o prazer do amor?

A gratidão é uma disciplina central do Cristianismo. É a disciplina de ver o universo translúcido; de reconhecer a vida e o presente como dádivas e, por isso mesmo, se alegrar no reconhecimento do doador. A gratidão nos capacita a desfrutar da dádiva e do doador simultaneamente, e desse modo o presente se torna realmente eterno.

Nisso discordo de Sponville: a transcendência não elimina nem reduz a intensidade do presente; seu brilho a acende como a luz solar em um vitral; se de elimina o presente e a imanência, é maniqueísmo ou gnosticismo, ou outra blasfêmia confundida com a fé. E discordo de Daniel Everett; se ele perdeu a fé, é porque a transcendência que ele servia estava ausente do mundo. O que não deixa de ser compreensível, já que seu Cristianismo refletia muito da piedade negacionista do fundamentalismo evangélico americano.

E discordo de Sponville também nisso: o tempo não é eternidade; o tempo é o tempo, e nós somos passageiros. O Eterno é o amor eterno vivido dentro do tempo, e por isso só a graça pode tornar eterno o tempo; pois só a graça pode produzir a alegria que se chama gratidão.

A gratidão é uma disciplina central do Cristianismo. É a disciplina de ver o universo translúcido; de reconhecer a vida e o presente como dádivas e, por isso mesmo, se alegrar no reconhecimento do doador. A gratidão nos capacita a desfrutar da dádiva e do doador simultaneamente, e desse modo o presente se torna realmente eterno.

Mas há uma objeção importante: como viver em constante gratidão, diante do mal? Não é isso uma nova e até pior forma de negacionismo? De forma alguma; a temporalidade do Cristão é vivida no interior de uma narrativa maior, que começa com a celebração de uma Criação boa e com a sua redenção final. A narrativa Cristã é exatamente a narrativa de como o mal é vencido, e de como Deus é capaz de dar sentido ao que não tem sentido. Não é isso a Cruz? Um mal grotesco e irracional que se revela, no tempo certo, a vitória absoluta do bem divino? Expor o tema exigiria outro artigo, mas por agora é suficiente ter em mente isso: que na temporalidade Cristã, até mesmo a terrível prova pode ser encarada com alegria: “Meus irmãos, considerai motivo de grande alegria o fato de passardes por várias provações” (Tg 1.2) – isso é o que ensina o apóstolo Tiago.

O Cristianismo é, essencialmente, uma celebração da realidade na presença do Senhor Jesus, e por isso ele recebe também a realidade da nossa temporalidade. Mas ela é inacessível sem reconciliação. Não podemos força-la por uma amputação cultural, por um estreitamento linguístico reacionário, nem por uma disciplina negacionista para eliminar a dor.

Essa é a felicidade ferida do Cristianismo; uma segunda felicidade, que se ganha quando se perde. Parodiando a Jesus: quem quiser ser feliz, perderá a sua vida; mas abrir mão da sua felicidade por amor de mim ganhará a felicidade e algo ainda maior: a alegria eterna.

 

REFERÊNCIAS:

COMTE-SPONVILLE, André. O Ser-Tempo. Algumas Reflexões sobre o Tempo da Consciência. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

COMTE-SPONVILLE, André. Nas Origens da Sabedoria. Em: Comte-Sponville, André; Delumeau, Jean; Farge, Arlette. A Mais Bela História da Felicidade. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2009.

COMTE-SPONVILLE, André. A Felicidade, Desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2011.

LIPOVETSKY, Gilles. A Felicidade Paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. Coleção Patrística. São Paulo: Paulus, 1997.

PASCAL, Blaise. Pensées and Other Writings. Oxford: Oxford University Press, 1995.

PONDÉ, Luiz Felipe. Contra um Mundo Melhor: ensaios do afeto. São Paulo: Leya, 2010.

CAHILL, Thomas. A Dádiva dos Judeus: como uma tribo do deserto moldou nosso modo de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

 


[1] Lipovetsky 2008, p. 348

[2] Freud, 2011 [1930], p. 19.

[3] Comte-Sponville, 2001 [1999], p.7.

[4] Ibid, p. 9.

[5] Comte-Sponville, 2009 [2008], p. 44.

[6] Ibid, p. 45.

[7] Ibid, p. 45-6.

[8] Ibid, p. 46.

[9] Comte-Sponville, 2000 [1999], 50-51.

[10] Santo Agostinho, Livro XI, 20 (1997, 348-9).

[11] Comte-Sponville, 2000, 32-33.

[12] Cf. http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u497009.shtml

[13] Black Elk. Epígrafe Introdutória em: Cahill, 1999.

[14] Ibid, p. 75.

[15] Comte-Sponville, 2001, 96.

[16] Ibid, p. 99.

[17] Pondé, 2010, 53.

[18] Ibid, p. 64-5.

[19] Comte-Sponville, 2000, 92.

[20] Ibid, p. 95.

[21] Comte-Sponville, 2001, 10.