O “Outono Brasileiro” revelou a imensa pluralidade de ideias e preocupações do povo brasileiro. Não que essa pluralidade não fosse conhecida; é que ver o arco-íris é sempre mais do que apenas saber que ele às vezes acontece ou mesmo que está acontecendo em algum lugar.

Vimos o arco-íris e de repente nos lembramos de que somos muito, muito diferentes. Retomando algo que já disse em outro post: o movimento começou com setores de esquerda atualmente fora do poder, que funcionaram como catalisadores, como o estopim. Então veio a enxurrada de gente, cada um com seu cartaz.

E de imediato os indivíduos começaram a se aglutinar, segundo os seus interesses, em grupelhos com cartazes semelhantes, espalhados em meio à massa amorfa. Chegava a ser divertido, todos aqueles memes saltando das redes sociais e passeando pela timeline – pois a rua se tornou a própria timeline do povo.

Mas as coisas não ficariam assim tão pacíficas; e eis que surge o medo. Não me refiro aos Blac Blocs e à quebradeira geral, mas ao espírito dessas aglutinações temáticas/políticas. A massa de indivíduos, o elemento “líquido” foi escoando e ficaram os pólos tradicionais: direitas variadas versus novas esquerdas (as velhas ficaram excluídas por uma exceção temporária), secularistas versus religiosos, Dilmistas/Lulistas e seus inimigos. E esses polos ficaram mais agressivos, mais extremistas e, em alguns casos, mais intolerantes.

Tensões na timeline

Mas é claro; as manifestações tinham poucos pontos de unidade perceptíveis; falta de representação, corrupção, colapso infraestrutural, Fifa; mas nenhum deles capaz de fortalecer o tecido social. E até mesmo a exigência de melhor representação traria em si um imenso potencial de desacordo, pois todos – indivíduos e movimentos – desejam ser vistos e ouvidos, mas todos tem agendas distintas. Daí esse sentimento de tensão que muitos confirmaram, caminhando pelas avenidas do país: pessoas com posturas tão divergentes lado a lado e sem afinidades podem tanto ser um caldeirão cultural quanto um barril de pólvora, ou os dois.

Uma palavra ainda não foi ouvida nas manifestações e não teve destaque na timeline da rua; uma palavra crucial: pluralismo. Somos plurais; sempre fomos plurais; mas não somos pluralistas. Por sinal, para muitos daqueles dentre nós que são Cristãos o termo soa mal, como “relativismo”, “libertinagem”, “posmodernismo” e coisas do gênero. Ainda assim, pluralismo é tudo de que precisamos no momento. Pluralismo significa a capacidade de negociar politicamente, de respeitar o outro, de não tentar homogeneizar tudo.

Considere o imenso debate (pouco noticiado na mídia) que ocorre agora no “chão-de-fábrica” das redes sobre a postura de Marina Silva e o lugar da religião na política. A turma do deixa-disso está procurando apaziguar as coisas, pedindo a todos para não combatermos preconceito com preconceito, etc. Mas no “chão-de-fábrica”, como eu disse, onde as pessoas não se veem cara a cara e não tem pejo de dizer besteiras, a tensão é grande. Discute-se o caso Marina. Pede-se a ela que esclareça especialmente suas posições sobre religião. Muita gente chega a dizer que os evangélicos não deveriam participar da Rede Sustentabilidade, porque estão por demais alinhados com os “fundamentalistas” como Malafaia e Feliciano, e isso criaria o risco de uma “teocracia evangélica” (pobres de nós).

Por outro lado, desconheço iniciativas evangélicas por uma conversação séria com o movimento LGBT, que é hoje a principal cunha manipulada politicamente por secularistas para excluir a religião da política (exceto, infelizmente, de movimentos dispostos a vender a alma do cristianismo pelo prato de lentinhas da correção política – o que não é diálogo verdadeiro). É verdade que a militância LGBT não mostra, em geral, nenhum interesse em conversa. Ora, isso significa que precisamos de política. Sem política vamos à guerra. E política não significa necessariamente se vender; é necessário considerar de forma sensível a demanda do outro e fazer ouvir a própria demanda de forma compreensível para o outro. Diálogos podem fracassar; talvez estejam até condenados ao fracasso; mas a culpa de quem tenta e fracassa é muito menor do que a culpa de quem nem mesmo começa.

Para onde foi a “interpretação”?

Consideremos o lado LGBT; estão todos chateadíssimos porque tantos evangélicos, capitaneados por figuras Malafaia e Feliciano, estejam colocando inúmeros obstáculos para frear a marcha da expansão dos direitos individuais. Mas até hoje não encontrei nem uma linha escrita de esforço pelos defensores do movimento e a intelectualidade de esquerda para compreender a posição cristã como algo mais do que fundamentalismo e manipulação eclesiástica. E se houver razões? Mais do que isso: que dimensões tão profundas da identidade dessas pessoas está sendo desafiada pela tese dos direitos afetivos, a ponto de gerar essa oposição massiva? Isso não pode ser irresponsavelmente lançado na conta do “preconceito homofóbico”. Essa resposta politiqueira carece de criticismo, de argúcia hermenêutica.

Igualmente falta aos cristãos uma leitura mais crítica desses processos. Não se trata apenas (também, mas não exclusivamente) de pecado. Sem dúvida a tradição cristã considera a prática homossexual pecaminosa, etc; mas se a acusação de pecado foi mesmo usada para excluir pessoas em contextos para os quais isso era irrelevante, e isso gerou uma grande reação de ressentimento, o cristianismo não pode responder ao movimento do mesmo modo que sempre o fez. Novas palavras e novas ações são necessárias.

Mais do que isso: o que torna a rejeição pública da heteronormatividade e a tese da “nação homofóbica” tão plausíveis ao cidadão médio, e até mesmo para muitos cristãos bem ajustados em suas igrejas? Não será possível que modificações profundas na cultura tenham alterado a ambiência e tornado plausível o que era antes implausível? E agora, a pergunta: não será que o próprio cristianismo foi imerso e alterado por essa mudança espiritual na cultura? Temos algo a ver com essa deriva continental na cultura?

Na minha opinião, enquanto não formos capazes de detectar essa transformação nos fundamentos da cultura ocidental e de perceber como isso nos modificou e ainda nos modifica, não saberemos porque é tão difícil mostrar que o que está errado é errado mesmo. Continuaremos atacando o sintoma (a ética sexual hipermoderna) sem atingir a doença. Nesse sentido, falta ao cristianismo evangélico o mesmo esforço hermenêutico do qual os críticos da resistência “fundamentalista” são tão carentes.

A palavra esquecida

Esse esforço de interpretação é essencial se quisermos fazer um esforço dialógico, mesmo que em meio ao conflito jurídico e político. E a palavra esquecida precisa ser lembrada: pluralismo. Não o falso pluralismo da militância LGBT mais agressiva e da extrema esquerda, que desejam, enfim, uma uniformização ideológica da moral sexual, mas um pluralismo real, que admita espaços iliberais numa sociedade aberta, que admita a existência de muitos pontos de coagulação espalhados em nossa sociedade líquida.

Uma sociedade plural será provavelmente pós-cristã; mas isso não significa que ela seja necessariamente anticristã; ela pode ser laica, sem ser laicista e ateísta. Para muitos cristãos sérios isso não implicará o comprometimento da fé cristã; pelo contrário, essa resposta tem grande ressonância com muitos temas centrais do Cristianismo. A agenda das transformações precisa incluir, ao lado da representatividade, da transparência e da inclusão urbana, ajustes jurídicos para a coexistência de mundivisões diferentes. Além do estado cristão e do estado laicista, precisamos de um estado a serviço da justiça em uma sociedade plural.

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A Ideia Cristã do Estado
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