Foi muito comentada a reportagem da revista Época sobre os “Novos Evangélicos”; celebrada por uns, criticada e até mesmo ridicularizada por outros (e não sem razão, diga-se). Agora que o susto passou e o “corpo” foi recolhido, acho que posso arriscar uns palpites sobre a “causa mortis”.

Mais de uma vez ouviu-se o óbvio: que o mago da reportagem jogou numa cartola só todas as alternativas às igrejas mais tradicionais (históricas e pentecostais) e às neopentecostais, e tentou tirar dali o coelho da “Nova Reforma”. É claro, foi um truque. Deu pra ver que o coelho era de plástico. Sem contar com o fundo falso da cartola da “Época”.

Mas não é que nada de novo esteja acontecendo. Há coisas novas acontecendo sim – especialmente as coisas menos conhecidas ou “anônimas” que aparecem na reportagem, como a Comunidade 242 e a banda de rock Palavrantiga – e há coisas acontecendo que nem aparecem na reportagem. O que não é novo é o que alguém ironizou como os “novos reclamantes”, apresentados na reportagem como os “novos reformadores”. Tudo estaria errado: parte dos “novos evangélicos” são na verdade os velhos evangélicos, alguns mais tradicionais, outros mais inovadores, reclamando juntos da grande crise evangélica. E os “evangélicos” da reportagem (neopentecostais, principalmente) são essa forma de evangelicismo defectiva e doente que conhecemos; como se fosse uma laranjeira grande, viçosa, folhuda, mas que dá laranjas esquisitas, pequenininhas e azedas. Esse tipo de árvore confunde a gente.

E muita gente atacou a reportagem: “O que é isso, Novos Evangélicos? Isso é a Globo, dividindo o povo de Deus!”. Vários “reclamantes”, no entanto, botaram lenha na fogueira: “É, a Época misturou um pouco as coisas, mas precisamos mesmo nos separar dessa laranjeira estéril”. Sim, não nos esqueçamos dos “reclamantes dos reclamantes”, vociferando contra ambos os grupos. A pergunta de quem observa é a mesma: “Há futuro para o movimento evangélico”?

Sim
Isso é o que dizem apóstolos, bispos e pastores neopentecostais, diversos ministros de megaigrejas baseadas no paradigma moderno de religião, e a massa de crentes comprometidos com a “cultura gospel”: está tudo indo muito bem, a vitória será completa, o povo de Deus vai dominar este país e ai de quem se opuser a isso. A rede Globo e os crentes que desafiam os novos apóstolos cairão sob o juízo de Deus e serão amaldiçoados. (Confesso que gosto da parte sobre a Globo).

Não
Assim dizem alguns dos “reclamantes”, assim como os “reclamantes dos reclamantes”: o movimento evangélico está falido, não há saída, não há esperança. Vamos esperar por algo novo. Não sabemos o que será, mas sabemos que não é o que conhecemos. Precisamos nos livrar da ortodoxia endurecida dos evangélicos mais fundamentalistas (especialmente dos calvinistas do Mackenzie e dos assembleianos doutrinários – isso é o que se diz por aí), assim como do neopentecostalismo, e partir para outra: para um cristianismo honesto, voltado para a cultura, não-dogmático, dialógico etc. E aqui às vezes se mistura de tudo: igrejas tribais e multitribais, emergentes urbanos, movimentos anti-institucionais como as igrejas nas casas, e muita gente do movimento de missão integral.

Talvez
Certo, pode parecer fácil indicar uma terceira via depois das duas caricaturas horrorosas que eu pintei logo acima, mas na verdade é bem difícil. Todo mundo identifica facilmente essas caricaturas. Quanto ao meu palpite, tenho sérias dúvidas. Sou o único que conheço pensando assim (talvez isso não seja um problema; não conheço muita gente mesmo). Enfim, as caricaturas são necessárias às vezes. Perdoem-me. Quero apresentar meu palpite com traços grossos e de forma impressionista.

E aí vai: se houver um futuro para o movimento evangélico, ele estará no Evangelho.

Não quero ser bonitinho, nem santarrão, nem piegas – estou falando sério. Ouço notícias sobre pastores se tornando muçulmanos depois de anos de trabalho; assisto ao evangelho da prosperidade na televisão e a pregadores de jatinho passando como “Evangelho” coisas que desconheço completamente; testemunho líderes e igrejas inteiras ensinando salvação por meio de esforços religiosos; ouço CD’s de adoração totalmente baseados na descrição de vivências psicológicas e de promessas de santidade, mas vazios do anúncio da verdade sobre Deus e sobre a Graça; leio trabalhos de teólogos latinoamericanos da missão integral propondo sínteses entre pensamento social humanista e o Evangelho; ouço e leio pastores evangélicos dizendo que não são mais evangélicos e pregando sínteses de libertarianismo humanista e cristianismo; ouço podcasts de pessoas que realmente – realmente – acreditam que Brian McLaren apresenta um caminho viável para o cristianismo na pósmodernidade.

Sim, estou me parecendo com um dos “reclamantes”. Talvez eu seja um deles, não sei. Mas sei de uma coisa: a igreja evangélica já não tem muita certeza do que seja o Evangelho.

Muita gente, quando me ouve dizer essas coisas, reage efusivamente: “É isso mesmo, vamos criticar essa malandragem! O problema dos crentes contemporâneos é que eles não tem caráter! E esses pastores, então, manipulando a fé das pessoas? Precisamos denunciá-los na internet. Precisamos de arrependimento, de ensinar o custo do discipulado!”.

Com o perdão da expressão, arrisco-me a dizer que o problema é “mais embaixo”. Não se trata meramente de uma crise moral, ou de uma crise de caráter, mas de uma crise de fundamentos. O mero fato de alguns cristãos acreditarem que nossa maior necessidade seja uma reforma das instituições, ou uma reforma moral em direção a um comportamento mais coerente, ou uma atitude intelectual crítica e revolucionária, revela que eles fazem parte do problema. Eles nem começaram a entender o que está acontecendo.

O que quero dizer com “Evangelho”, então? Ora, refiro-me ao que se entende classicamente como o Evangelho: o anúncio dos atos e da presença salvadora de Deus. O que está acontecendo com a igreja evangélica no Brasil é que o seu conteúdo está se perdendo. As pessoas não sabem quem é Deus; nem porque ele é trino; nem sobre a condição depravada do homem diante de Deus; nem sobre o alcance cósmico da obra de Cristo; nem o que significa viver sob a Graça; nem o que significa ter esperança. Não é que não saibam essas doutrinas, meramente (a verdade é que não sabem mesmo), mas que não sabem as realidades descritas por essas doutrinas. Tenho me encontrado com centenas de cristãos, desde o tempo em que fui professor de teologia, que simplesmente não sabem o que é o Evangelho. O seu relacionamento com Deus é baseado em seus sentimentos, em suas especulações, ou em regras religiosas, ou em esforços de santificação. Eu até já parei de evangelizar católicos. Agora evangelizo crentes.

Acontece que os evangélicos historicamente têm sustentado que não é a nossa boa vontade moral, nem a nossa coerência, nem são as nossas instituições os meios que “canalizam” o poder salvador de Deus, mas o Evangelho, como diz o apóstolo Paulo em Romanos. E por isso eles sempre cultivaram a expectativa de que a solução é ouvir e comunicar claramente o evangelho da Graça e da glória de Deus, ao invés de se fiar em técnicas, novos modelos, ou em inovações teológicas. Essa foi a solução no tempo de Paulo, no tempo de Agostinho, no tempo dos reformadores, no tempo de Wesley, no tempo de Kuyper, no tempo de Schaeffer. Por que agora seria diferente?

Não é que um evangélico não possa aceitar ou promover novidades úteis e enriquecedoras, mas que ser evangélico significa crer e reconhecer a prioridade da ação divina sobre a ação humana, da iniciativa divina sobre a boa vontade humana, da sabedoria divina sobre a engenhosidade humana. Para um evangélico genuíno, a salvação, a igreja e a missão começam com o grandioso fato de que Deus dirige a história, Deus se fez carne e está presente no Espírito Santo; somos servos desse fato que anunciamos como uma boa notícia, e é por isso que temos igrejas, missões, livros, CD’s e websites. E é por isso que não vamos nos desesperar diante do fracasso do “movimento evangélico”: não estamos aqui por causa dele, mas por causa do Evangelho, e é isso o que nos faz evangélicos.

Infelizmente, no entanto, as opções são poucas. De um lado, um imenso movimento religioso se desprega de suas raízes e perde a referência ao Evangelho. De outro evangélicos e ex-evangélicos em desespero procuram soluções não-evangélicas ou desistem de lutar pela herança evangélica.

Talvez haja um futuro para o movimento; talvez. Mas apenas se ele se simplificar e se alimentar do que tem de mais essencial, e que é precisamente a sua contribuição mais indispensável ao movimento cristão mundial: uma compreensão clara e prática do Evangelho. Para isso, no entanto, será necessário abandonar a arrogância à direita e o desespero à esquerda.

Alguns fatos intrigantes
Para dar mais “carne” ao meu argumento, creio ser importante introduzir o leitor a alguns fatos intrigantes. Em primeiro lugar – e isso não é novidade – a crise do movimento evangélico não é só no Brasil. Seus sinais estão nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Holanda, na África do Sul e em outros países latinoamericanos. Os movimentos anti-institucionais, o pós-evangelicismo e a “igreja emergente” em particular vêm pipocando já há algum tempo, como um testemunho da erosão no evangelicismo.

O maior problema desses movimentos é que sua marca unificadora não se encontra no conteúdo, propriamente, mas na forma e na resposta ao momento histórico. Em termos de conteúdo, oferecem um espectro de opções que vão de reformados a liberais, de evangélicos a pós-evangélicos; mas todos concordam, de um modo ou de outro, que a posmodernidade exige uma transformação da igreja e da missão. Nesse sentido, é problemático falar em “Nova Reforma”. O que há é uma fragmentação sem precedentes, espelhando o esfacelamento da mente moderna.

Não por acaso, dois movimentos opostos e muitíssimo significativos se desenrolam simultaneamente aos movimentos “emergentes”. O primeiro é o aumento das conversões de evangélicos para o catolicismo. Isso está acontecendo em diversos lugares, mas tornou-se muito visível recentemente nos Estados Unidos. Muita gente sabe que Rich Mullins, um famoso e genial cantor e compositor evangélico americano, morreu pouco antes de oficializar sua passagem para o catolicismo; mas pouca gente sabe que Francis Beckwith, famoso filósofo cristão americano, demitiu-se da Presidência da Evangelical Theological Society em 2007 anunciando publicamente seu retorno à Igreja Católica Romana. O movimento hoje é tão intenso que foi comentado no website “Religion Dispatches” como uma tendência emergente no mundo evangélico.

O outro movimento é a ressurgência do calvinismo em todo o mundo – para o desespero de arminianos, de católicos e de emergentes mais “conversacionais”. A revista Time publicou em março de 2009 uma lista das “10 Ideias que Estão Mudando o Mundo Agora”, e lá estava, entre elas, o “Novo Calvinismo” (veja a tradução em português do artigo aqui). Além do mais antigo e muito mais intramundano neocalvinismo holandês, há agora os “novos calvinistas”, um movimento fortemente teológico e evangelístico que enfatiza de forma explícita a visão reformada da soberania de Deus, do pecado e da Graça, por meio de abordagens evangelísticas e eclesiológicas inovadoras, do que o exemplo mais popular é Mark Driscoll. E isso não é só nos Estados Unidos: no Brasil é fácil encontrar muitos desses calvinistas que nem são presbiterianos; há agora calvinistas batistas, assembleianos, carismáticos e sem denominação emergindo por todos os lados. Exemplo óbvio é o público reunido pela Conferência Fiel no Brasil e em Portugal.

Uma interpretação
Vou me arriscar a interpretar esses fatos. O que ocorre é que o movimento evangélico está fracassando e ao mesmo tempo não está fracassando em manter sua identidade mais fundamental: o anúncio claro e consistente do Evangelho. É a perda do evangelho o que se manifesta no movimento da prosperidade; é a confusão sobre o evangelho que se mostra na diversidade teológica irreconciliável do movimento emergente; é a dúvida sobre o evangelho o que torna plausível, para muitos evangélicos, o retorno à igreja católica; e é exatamente a profunda consciência desse tesouro o que motiva os novos calvinistas (entre outros evangélicos) a tentarem uma restauração do espírito do evangelicismo.

Um exemplo muito interessante dessa última iniciativa, na América do Norte, é “The Gospel Coalition” (“A Coalizão do Evangelho”), uma associação de indivíduos e igrejas comprometidos com a centralidade e a pureza do Evangelho, em oposição franca à recatolicização e ao pós-evangelicismo de alguns emergentes. Entre os participantes encontram-se nomes conhecidos como John Piper, Tim Keller, Don Carson, Mark Dever, Collin Hansen e, é claro, Mark Driscoll.

E não é por acaso que vários integrantes desse movimento sejam calvinistas assumidos. Todos são bem claros em afirmar a herança reformada, mas não por estarem submetidos a certas exigências denominacionais, ou por serem presbiterianos, como o leitor desavisado poderia pensar. Pelo contrário, boa parte desses calvinistas nem mesmo está encaixada em uma denominação reformada. O seu testemunho tem sido muitíssimo prático: que as verdades do senhorio de Cristo sobre todas as coisas, da providência divina, da depravação total e da soberana da Graça têm produzido frutos de arrependimento, de gratidão e de mudança de vida. Há um consistente entusiasmo com a redescoberta do amor de Deus e da prioridade da iniciativa divina sobre a vontade humana. Não por acaso, como observou Collin Hansen num artigo recente, várias dessas novas igrejas, ao mesmo tempo reformadas e contemporâneas, estão florescendo em lugares extremamente secularizados aos quais os outros evangélicos não conseguem mais ministrar, como Seattle, Washington e Manhattan.

Nesse sentido, seria muito justo dizer que esses líderes e igrejas estão se tornando mais evangélicos. E isso precisa nos levar a uma séria reflexão. Nos Estados Unidos o movimento evangélico se desfaz com o evangelho da prosperidade, com o movimento emergente e com as conversões ao catolicismo, mas se refaz, por outro lado, com uma maior unidade em torno do Evangelho; mas será uma casualidade que esse Evangelho redescoberto seja exatamente a visão reformada do Evangelho? Creio que não.

E no Brasil?
Também não creio que isso seja só uma questão do contexto americano – falar nisso em pleno século 21 é besteira. Não apenas porque temos aqui todos os problemas que eles têm lá – evangelho da prosperidade, neopentecostalismo, movimentos emergentes, pós-evangelicalismo -, mas também porque já não faz mais sentido identificar contexto e nacionalidade ou contexto e localidade. Não na era do ciberespaço e da globalização.

Ao que parece, as enxurradas de valores, práticas e mentalidades modernas, e agora pósmodernas, estão castigando violentamente o movimento evangélico e lavando toda a terra solta que for possível. Sinto que a confusão neopentecostal, o retrocesso ao catolicismo e o cinismo emergente e/ou pós-evangélico sejam somente essa terra solta. Talvez até mesmo os que não veem esperança na fé evangélica sejam apenas mais terra solta. Ficará sob a enxurrada o solo firme de espíritos genuinamente evangélicos. Aqueles que desejam fundamentar a espiritualidade, a igreja e a missão na verdade de que Deus é o salvador, e que ele está presente, antes e independentemente de todos os nossos esforços, fracassos e sucessos. E tenho graves suspeitas de que tais espíritos serão, não por acaso, reformados em sua maioria.

Creio que há um futuro para o movimento evangélico, mas falo apenas por mim. Eu não sou evangélico porque o movimento evangélico deu certo. Sou evangélico por causa do Evangelho. E se realmente o leitor pensa que “voltar ao Evangelho” é uma solução pueril, seu problema não é com o movimento evangélico, e sim com o cristianismo. Pois a coisa mais cristã de ser evangélico é acreditar no que o Evangelho diz: que Deus está presente por causa de Cristo, e por isso há esperança.

Texto originalmente publicado em 16 de setembro de 2010.