Religião e Ciência em Cambridge
No curso de teologia de verão deste ano o preletor foi Wayne Grudem. A experiência foi bem interessante, considerando que eu adotei a teologia sistemática de Grudem por diversas vezes nos cursos de teologia sistemática, como professor da FATE BH. E também utilizei bastante seus trabalhos em exegese do novo testamento grego em minha dissertação de mestrado pela Teológica Batista de São Paulo, sobre 1Coríntios 14, em 2003.
Grudem é bastante acessível, e um excelente palestrante. Embora eu e Rodolfo tenhamos divergido de suas idéias sobre economia política e meio ambiente (ele é um defensor do Neo-conservadorismo de David Landes, Huttington, e da escola de Harvard, em geral; e aprova as teses controversas de Bjorn Lomborg), apreciamos muito a sua abordagem geral ao que foi o tema do curso: A Doutrina da Escritura.
Eu e Rodolfo ganhamos uma bolsa completa para o curso, que foi realizado no Sidney-Sussex College, bem no centro histórico. Um lugar muito bonito, com excelente comida e acomodações. E com uma grande história também – um dos ex-alunos do Sydney-Sussex foi ninguém menos que Oliver Cromwell, o herói puritano anti-monarquista.
Ao final da semana Rodolfo retornou para o L’Abri e eu me transferi para o St. Edmund’s College, para fazer um outro curso de duas semanas promovido pelo Faraday Institute for Science and Religion, desta vez na Universidade de Cambridge. Para fazer o curso foi preciso concorrer a uma das duas bolsas (cerca de 1000 libras). O outro ganhador foi o Romeno Bogdan, um candidato ao sacerdócio pela igreja ortodoxa romena, excelente pessoa.
O centro é dirigido pelo Dr. Denis Alexander, um fellow do St. Edmunds College e diretor de projetos científicos na área de medicina, Rev. Dr. Rodney Holder, pastor anglicano e cosmologista de Cambridge, e Dr. Bob White, professor de “earth sciences” e fellow da Royal Society. Todos são cristãos evangélicos e cientistas de alto nível. O nível dos professores também – gente de Oxford, Cambridge, Warwick, Wheaton (US), para mencionar algumas universidades.
De fato, os professores são literalmente top minds em seus campos (genética, biologia evolucionária, cosmologia, filosofia e ciências da mente, história da ciência, etc), bem como no diálogo de religião e ciência. Gente como o Dr. Paul Shellard (nas fotos, entre Rodney e Denis), por exemplo, que palestrou sobre o princípio cosmológico antrópico, é coordenador do COSMOS, um supercomputador britânico para estudos cosmológicos e astronômicos, ou John Hedley Brooke, um dos maiores historiadores da ciência na atualidade, ou Roger Trigg, fundador da sociedade britânica de filosofia, ou Ard Louis, diretor de um programa de estudos em sistemas químicos auto-organizatórios em Oxford, ou o Dr. John Polkinghorne, ex-diretor do Queens College em Cambridge, físico matemático (trabalhou com Paul Dirac) e ganhador do prêmio Templeton para o Progresso da Religião.
A propósito, o número de peixes grandes no congresso era absolutamente desproporcional (uns vinte), considerando-se o número de alunos (uns 30). Só haveria uma explicação possível para tal conjunção celeste: o financiamento do John Templeton, que banca o Faraday. De fato foi difícil de acreditar quando tínhamos em uma mesa, por exemplo, simultaneamente (da esquerda para a direita), John Hedley Brooke, Richard Harrison, John Polkinghorne, Ernan McMullin e Rodney Holder – e mais alguns peixes grandes na assistência.
O curso foi bem “transdoxástico” (para não dizer “ecumênico”): a linha geral do Faraday é evangélica, mas há cooperadores católicos e simpatizantes da religião. Vários deles foram muito influenciados por Schaeffer. Denis leu livros de Schaeffer no princípio de sua carreira, e sua esposa até mesmo foi ao L’Abri da Suíça. O Dr. Bryant (na foto) chegou a dizer que os livros de Schaeffer salvaram a sua fé, na juventude.
Aparentemente, as questões mais fundamentais no diálogo religião-ciência – como o sentido religioso do Big Bang – não tocam diretamente os pontos mais superficiais que separam as denominações cristãs (como o batismo), mas afetam as bases das principais tradições teológicas. Apesar disso, várias dessas questões teológicas bem sérias, como a natureza da ação providencial de Deus e sua relação com a física, ou a natureza da liberdade humana, do ponto de vista das ciências da mente, ou o status científico do Design pareciam receber respostas muito semelhantes. Isso pode ser sinal de um acordo teológico, com base no diálogo com a ciência, ou de uma falta de reflexão mais aprofundada do ponto de vista de cada tradição (católica, calvinista, luterana, etc). Eu não poderia dar a resposta neste momento.
Um ponto bem claro foi a rejeição, por quase todos, do assim-chamado “young earth creationism” (criacionismo da terra jovem) bem como do Design inteligente, descrito como “micro-design”, o planejamento de cada entidade biológica individual. Ao invés disso, os cientistas defenderam o “macro-design” – a idéia de que Deus na verdade criou um conjunto de condições físicas que levariam necessariamente ao surgimento do homem. O chamado “princípio cosmológico antrópico”, apresentado de forma rigorosa pela primeira vez por Frank Tipler e John Barrow (na charge publicada na Nature).
Para reunir a idéia do princípio cosmológico antrópico à teoria da evolução, eles vem recorrendo a teorias de emergência e níveis explanatórios (por exemplo, dizendo que a vida é uma forma de existência que se baseia no nível físico, mas é qualitativamente diferente, demandando uma explicação bio-lógica), estudando sistemas auto-organizatórios, e desenvolvendo aspectos pouco estudados da biologia contemporânea como o fenômeno da convergência evolucionária (quando animais se desenvolvendo em ambientes diverentes adquirem capacidades semelhantes).
Um momento muito interessante foi a apresentação do Dr. Ernest Lucas (na foto), pastor batista, cientista e professor de interpretação bíblica, autor de “Gênesis Hoje” (ABU editora), mostrando a coerência de Gênesis com a teoria da evolução.
De fato, há uma longa tradição de evangélicos, muitos deles calvinistas, que defendiam a coerência entre a doutrina da Criação e a teoria da evolução. Um dos mais famosos foi Benjamin Warfield (na foto), que foi um dos principais formuladores da doutrina da Inerrância Bíblica (vide seu artigo clássico na primeira edição da International Standard Bible Encyclopaedia) e teólogo calvinista da chamada “Old Princeton” (antes da saída do Gresham Machen para fundar o Westminster). Warfield sustentava que a teoria da evolução não é essencialmente contrária ao cristianismo bíblico, e deve ser harmonizada com a doutrina da inerrância bíblica. Outro teólogo calvinista recente, na mesma linha, é o Dr. Alister McGrath, cuja obra”Vida de Calvino” foi publicada em português pela Cultura Cristã.
De um modo geral, eu posso ver sentido no esforço do Faraday em reunir ciência, religião, e biologia evolucionária em especial. Concordei mais do que discordei, mas tenho ainda duas divergências principais: (1) penso que a polêmica de alguns dos professores (como a do biólogo católico Kenneth Miller) contra o DI não leva em consideração o suficiente a viabilidade racional de uma ciência do Design, mesmo que esta seja desenvolvida à parte do naturalismo metodológico tradicional (talvez como uma forma sofisticada de “teologia natural”), e independentemente da investigação biológica tradicional. Mas entendo que isto é em parte uma reação ao radicalismo de parte dos proponentes do Design Inteligente;
(2) não posso aceitar a tentativa de explicar a Queda do homem como a mera presença de impulsos animais egoístas, provenientes de estágios evolucionários anteriores. Essa não é a posição do Faraday propriamente, mas alguns palestrantes defenderam algo próximo disso, como o Dr. Ernan McMullin. A propósito, McMullin, que é um velhinho genial, foi membro de uma comissão do Vaticano que reexaminou a posição católica em relação a Galileu. E ele é colega de Alvin Plantinga no Centro para Filosofia e Religião da Notre Dame University. Quando perguntei o que ele achava da crítica de Alvin Plantinga ao naturalismo metodológico, a sua resposta foi: “it’s really bad…” Rsrs… Bem, não concordo com o Dr. McMullin, mas também acho Plantinga pessimista demais a respeito.
Bem, o fato é que tenho razões não somente teológicas, mas filosóficas para acreditar que precisamos de uma Queda histórica do homem para explicar a universalidade do pecado e de Cristo – vide o que Kierkegaard no ensinou a respeito do pecado, por exemplo. A multidão não pode “pecar”; o lesa majestatis, o pecado com “P” maiúsculo, que é uma revolta teológica, só pode ser cometido por um indivíduo. Isso de uma queda “coletiva” e “atemporal” de Adão é uma balela filosófica – se defendida à parte de uma queda individual, naturalmente. O pecado é uma coisa intensamente pessoal e temporal.
Nas críticas à idéia de “Queda”, às vezes se ridiculariza a noção de transmissão biológica do pecado original (como em Paul Ricoeur) – mas isso não é problema para os Calvinistas; Calvino já havia rejeitado isso no século XVI, sugerindo no lugar a noção de pacto e união federal. Penso que esta pode ser a melhor linha de defesa da viabilidade racional da crença em uma Queda histórica de um Adão histórico (talvez não necessariamente o primeiro homo sapiens, biologicamente, mas certamente o primeiro homem no estrito [homo religiosus], e o primeiro “representante federal”; de qualquer modo, um personagem histórico). Para lidar com o assunto então seria preciso integrar estudos antropológicos, filosofia moral e, talvez, psicologia. Em outras palavras: este aspecto dos estudos de teologia e ciência depende da entrada das ciências humanas na arena de debates.
Concordo com os criacionistas mais estritos em que a negação da historicidade e da inocência original de Adão e Eva entre parte dos evolucionistas teístas não faz justiça à autoridade bíblica. Precisamos, no entanto, dar um passo além, e explicar “porquê” este ensino bíblico deve ser considerado factual, relacionando-o com as outras doutrinas bíblicas e com os outros campos do conhecimento. A Bíblia diz que Deus fez a chuva, mas isso não é uma explicação filosófica ou científica da chuva. Explicar, em perspectiva cristã, é muito mais do que dizer “A Bíblia diz”. O ensino bíblico é a base da explicação, não a explicação em si. O meu desacordo com os evolucionistas-teístas (ou parte deles) é que eles não são capazes de dizer: “A Bíblia diz”. E o meu desacordo com os criacionistas (boa parte deles) é que eles só sabem dizer isso. Acho que precisamos de uma forma de criacionismo evolucionário, como o que Alister McGrath vem desenvolvendo.
E caso alguém me pergunte: sim, acho que o Richard Dawkins pode ser um caso de regressão no processo evolucionário; se, de fato, ele é um homo sapiens que perdeu completamente a dimensão religiosa (veja bem: Se…). Bem, seria um interessante exemplo do que a Bïblia diz: “à lama pré-humana tornarás…”.
Entre os bons resultados do encontro está a autorização para traduzir os “Faraday Papers” para o português. Os papers tratam de uma ampla gama de assuntos relacionados ao debate de religião e ciência, de forma introdutória; apresentam algumas idéias teologicamente heterodoxas mas, a despeito disso, são importantes por resumir vários aspectos do debate atual. Assim, embora com algumas ressalvas teológicas que, provavelmente, vamos indicar em nosso Blog de Religião e Ciência, pensamos que vale a pena disponibilizar para o público brasileiro.
Em Cambridge tive também a grata oportunidade de visitar a Tyndale House,terceira maior biblioteca de pesquisa bíblica do mundo (atrás apenas da biblioteca da universidade hebraica e da biblioteca do vaticano), mantida pela UCCF (uma ABU inglesa). Vários nomes importantíssimos passaram por Tyndale, que mantém um boletim de científico e acomodações para pesquisadores de diversas partes do mundo. Recentemente o diretor foi o Dr. Bruce Winter, cuja obra em história social do Novo Testamento, em diálogo com a arqueologia contemporânea, tem revolucionado a interpretação do Novo Testamento – sua obra “After Paul Left Corinth” (Eerdmans) é ainda a minha obra de referência para contexto histórico de 1Coríntios.
Na primeira visita encontrei o Rodrigo Franklin, que acabou de concluir o Ph.D. em Literatura Bíblica e Estudos Orientais em Cambridge, estudando a LXX, e que está indo para Goiânia trabalhar com Luciano Pires, do Colloquium. Ambos fizeram mestrado no Covenant (US), onde está o Francis Schaeffer Institute, e vão trabalhar juntos com ensino teológico e apologética. O Franklin já apresentou trabalhos em universidades Alemãs e está indo no fim do ano para Sorbonne, para palestrar sobre a versão septuaginta (LXX) do Antigo Testamento.
Alguns dias depois, em uma segunda visita, o Rodrigo me apresentou o Dr. Jonathan Chaplin, ex-professor do ICS no Canadá, e atual diretor do Kirby Laing Institute for Social Ethics. Dr. Chaplin é cientista político, com pos-doc pela London School of Economics, e aplica a filosofia de Dooyeweerd em seu campo de estudos. Há um grande número de especialistas em ciência política, história política e economia política que vêm aplicando os insights de Dooyeweerd para essas áreas.
Bem, vou ficar por aqui. Há muito o que dizer sobre as palestras e os diferentes especialistas, mas agora o almoço tá na mesa…
Guilherme, muito obrigado por trazer a tona os nomes de tantos cientistas cristãos. Às vezes falta estas referências para poder pesquisar, citar, adquirir seus livros, e termos melhores recursos para debater os temas deste assunto Teologia/Ciências. Você acrescentou bastante neste seu artigo. Que possamos ter acessos a mais nomes de homens da ciência e da fé, dos títulos de suas obras, dos temas abordados atualmente, das mudanças e novas interpretações de conceitos e temas passados, e de áreas que ainda requerem discussão, conversa, debate, pesquisa. Valeu mesmo!