Não confunda a sua voz com a Voz de Deus

Não confunda a sua voz com a Voz de Deus

“João é a voz passageira, Cristo, a Palavra eterna. Suprimi a palavra, o que se torna a voz? Esvaziada de sentido, é apenas um ruído.”
(Agostinho de Hipona)

Texto básico: João 3.22-30

Textos de apoio
Malaquias 3.1; 4.5-6
Deuteronômio 18.18-19
Isaías 40.3-5
João 1.15, 19-28
Lucas 3.1-3
Mateus 11.7-15

Introdução

É provável que um dos personagens bíblicos menos estudados pelos cristãos, em geral, seja João Batista. É raro conhecermos alguém batizado em homenagem à ele. Tampouco encontramos seu nome homenageando salas de seminários ou turmas de formatura. Talvez, parte da explicação para isso seja o fato de que seu trabalho público tenha durado pouco tempo; ou quem sabe muitos considerem que sua tarefa tenha sido infrutífera: “Quantos se converteram com sua pregação? Quantos milagres são atribuídos a ele?”. E do ponto de vista humano, João não teve lá uma vida muito interessante, vivendo num deserto, se alimentando com coisas bem simples e exóticas, e se vestindo de modo nada convencional. Aliás, como “precursor” de outra pessoa, estava fadado a “perder o emprego”; paradoxalmente, seu sucesso seria medido pelo seu esquecimento!

Não obstante, o próprio Jesus asseverou que “de todos os homens que já nasceram, João Batista é o maior” (Mateus 11.11). Imagine: o que podemos aprender com uma pessoa descrita assim pelo próprio Cristo?

Agostinho de Hipona, conhecido universalmente como Santo Agostinho, dedicou um dos seus vários sermões ao ministério de João Batista. Ele disse:

“João é a voz; quanto ao Senhor, ‘no princípio era a Palavra’. João é a voz passageira, Cristo, a Palavra eterna desde o princípio. Suprimi a palavra, o que se torna a voz? Esvaziada de sentido, é apenas um ruído. A voz sem palavras ressoa ao ouvido, mas não alimenta o coração.”*

João Batista teria concordado totalmente com Agostinho. Ele possuía um impressionante e inabalável senso de vocação, que o tornava consciente de que seu papel era ser apenas uma “voz”, que não devia ser confundida com a Palavra, o Verbo eterno de Deus. Como o exemplo de João pode nos ajudar na compreensão e na construção do nosso próprio chamado como “vozes” de Jesus?

Para entender o que a Bíblia fala (com a ilustre participação de Agostinho)

“Mas, mesmo quando se trata de alimentar nossos corações, vejamos a ordem das coisas. Se penso no que vou dizer, a palavra já está em meu coração. Se quero, porém, falar-te, procuro o modo de levar ao teu coração o que já está no meu. Procurando então como poderá chegar a ti e penetrar teu coração o que já está no meu, recorro à voz e com ela te falo. O som da voz te comunica minha palavra e seu sentido; e depois de o fazer esse som desaparece, mas a palavra que ele te transmitiu permanece em teu coração, sem haver deixado o meu.” (S. Agostinho)

1. Curiosamente, os discípulos de João tem uma discussão com um judeu (v. 25), mas vão falar com João sobre Jesus (v. 26). Será que o tal “judeu” citou alguma coisa que tinha ouvido da parte de Jesus? Será que a popularidade de Jesus estava começando a incomodar os discípulos de João (final do v. 26)?

“Queres ver como a voz passa e a palavra divina permanece? O batismo de João onde está agora? Cumpriu sua missão e desapareceu; é o batismo de Cristo que usamos agora. Todos cremos em Cristo e esperamos dele a salvação: foi o que disse a voz.” (S. Agostinho)

2. João inicia sua resposta aos discípulos revelando-lhes sua consciência de “mordomia” (v. 27). O que significava para João desempenhar este papel de “mordomo”, em relação a Jesus? Como esta compreensão ajudava João a lidar de maneira correta com sua “perda” de seguidores para “aquele homem… no outro lado do rio Jordão” (v. 26)?

3. A seguir João reforça algo que já havia afirmado antes (v. 28; cf. Jo 1.20), revelando também um firme senso de identidade. Você acha razoável supormos que João estivesse sujeito a tentações que poderiam desviá-lo de seu trabalho como “precursor” de Jesus?  Se sim, que tentações seriam estas? De que modo a integridade de João, com sua clara visão de quem ele era, se tornou um alicerce para o combate contra estes desvios?

“Como é difícil não confundir a voz com a palavra, julgaram que João era o Cristo. Julgaram que a voz era a palavra. Mas a voz reconheceu o que era para não prejudicar a palavra. ‘Não sou o Cristo’, disse João, ‘nem Elias, nem o Profeta’. Perguntam-lhe então: ‘Quem és tu?’ ‘Eu sou’, responde ele, ‘a voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor. É a voz do que clama no deserto, do que rompe o silêncio.” (S. Agostinho)

4. O que fazemos surge do que nós somos, e não o contrário. No v. 29, João usa uma metáfora para ilustrar sua condição em relação a Jesus. Sendo João o “amigo do noivo”, qual seria a melhor maneira dele realizar sua tarefa? Há neste texto indícios de que João estava sendo bem sucedido em seu papel?

5. Finalizando sua resposta aos seus discípulos, João nos deixa perceber que ele já estava trilhando um caminho de autorrenúncia (v.30). A que João estava renunciando? O que significava, para ele “ficar menos importante”? Como isso contrasta com o que nós normalmente consideramos um “trabalho de sucesso”?

“Se tivesse dito: Eu sou o Cristo, como seria facilmente acreditado, ele que já era assim considerado, antes que o dissesse! Mas João não o diz: reconhece o que é, diz não ser o Cristo, humilha-se. Vê de onde lhe virá a salvação; compreendeu que é uma lâmpada e temeu ser apagada pelo vento do orgulho.” (S. Agostinho)

Para pensar

“…veio a palavra de Deus a João, filho de Zacarias, no deserto.” (Lucas 3.2b)

“A palavra de Deus veio a João no deserto. Que lugar mais estranho para Deus se manifestar! O que se pode aprender num deserto? Eu tenho a tendência de evitar os desertos, e quando tenho de passar por um, procuro desviar, dar a volta, sempre que possível. (…) O deserto é um lugar difícil de viver, seja ele físico ou espiritual. Contudo, não há como fugir ao fato de que é nos desertos que podemos aprender as melhores lições, se, em meio à luta, atendermos ao chamado de Deus. (…) No deserto, as pessoas aprendem a depender só de Deus.” (Gordon MacDonald)

“E agora, José?”

“O que significa: ‘Preparai o caminho’, senão orai como se deve orar? O que significa ainda: ‘Preparai o caminho’, senão tende pensamentos humildes? Segui o exemplo de humildade de João. Julgam que é o Cristo e ele diz não ser aquele que julgam; não aceita, para sua glória, o erro alheio.” (S. Agostinho)

1. Como vimos, João revelou um forte senso de “mordomia”, sabendo que seu papel era “cuidar de algo que pertencia a outra pessoa”. Como você tem aplicado este princípio em sua própria vida, em relação aos seus bens materiais, sua carreira acadêmica ou profissional, seus privilégios sociais, sua saúde? Ore a Deus agora, por alguns momentos, reconhecendo com gratidão Suas dádivas, e pedindo que Ele o ajude no desafio da mordomia cristã.

2. Parece que João não alimentava ilusões sobre quem ele era, ainda que a multidão pudesse “dar corda” para isso acontecer. Podemos dizer que sua identidade estava fundamentada em bases muito sólidas, que devem ter sido fortalecidas enquanto ele vivia no deserto, um “lugar-experiência” de privações mas também de solidão e silêncio. Segundo o monge beneditino Anselm Grun, o deserto é um lugar onde “topamos com nossos limites, descobrimos que não podemos nos autoajudar, que precisamos da ajuda de Deus”. Ele não se refere, necessariamente, a um lugar, mas a uma experiência que costuma produzir em nós uma sensação de privação e impotência. Você tem enxergado as experiências difíceis de sua vida como “desertos frutíferos”, oportunidades para aprofundar seu relacionamento com Deus? Ao mesmo tempo, que atitudes práticas você pode adotar para criar pessoalmente espaços de solitude e silêncio, nos quais seu coração será “todo ouvidos” à voz amorosa de Deus? Busque desenvolver essa prática.

Eu e Deus

“Senhor nosso Deus, faze que sejamos cheios de esperança à sombra de tuas asas, e dá-nos proteção e apoio. Tu nos sustentarás desde pequenos e até o tempo dos cabelos brancos, pois a nossa firmeza é firmeza quando se apoia em ti, mas é fraqueza quando se apoia em nós.” (S. Agostinho, Confissões, Livro IV.31, Paulus)

*Todas as citações pertencem ao Sermão 293,3.

Autor do Estudo: Reinaldo Percinoto Júnior

> Leia mais: Agostinho Para Todos, Editora Ultimato.

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5 Comentários para “Não confunda a sua voz com a Voz de Deus”

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