Entrevista
Não ao analfabetismo bíblico
Harold Segura observador não católico da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho diz que espiritualidade nada mais é do que seguir a Jesus e imitar seus passos.
Ex-reitor do Seminário Teológico Batista Internacional de Cali, na Colômbia, e membro da comissão teológica do Conselho Latino-americano de Igrejas (CLAI), o teólogo e escritor colombiano Harold Segura foi um dos oito observadores não católicos convidados pelo cardeal Walter Kasper, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, para participar da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho, realizada em Aparecida, SP, em maio de 2007. Como coordenador do Compromisso Cristão da Visão Mundial para a América Latina e Caribe, Segura mora há alguns anos em San José, em Costa Rica. Na véspera do início da conferência, o ilustre visitante passou o dia na Faculdade de Teologia da Universidade Metodista do Estado de São Paulo (UMESP), onde fez uma conferência sobre “A espiritualidade como práxis de liberdade no contexto da América Latina” e lançou o seu primeiro livro traduzido para o português, “Além da Utopia — Liderança Servidora e Espiritualidade Cristã” (Encontro Publicações, 2007).
Parece que a preocupação de Harold Segura é a mesma no que diz respeito ao catolicismo e ao protestantismo na América Latina e no Caribe: ambos precisam reforçar o ensino da Palavra de Deus para evitar o analfabetismo bíblico.
Ultimato — Em e-mail de 11 de abril, o sr. comunicou aos seus companheiros da Visão Mundial que a Santa Sé havia confirmado seu convite para participar da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho. O sr. foi o único observador protestante? De quem foi a iniciativa?
Segura — O convite chegou por carta assinada pelo cardeal Kasper, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, em nome de Bento XVI. Os convidados não católicos foram oito: monsenhor Tarasios (Argentina), arcebispo grego ortodoxo de Buenos Aires e da América do Sul; monsenhor Dexel Wellington Gómez (Bahamas), arcebispo anglicano; pastor Walter Altmann (Brasil), presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil e moderador do Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas; pastor Néstor Oscar Míguez (Argentina), pastor metodista, professor de Bíblia e teologia sistemática; pastor Juan Sepúlveda (Chile), da Igreja Missão Pentecostal; pastora Ofelia Ortega (Cuba), presbiteriana, co-presidenta do Conselho Mundial de Igrejas; sr. Claudio Epelman, representante da Comunidade Judaica; e eu, pastor Harold Segura, representando a União Batista Latino-americana (UBLA) e a Visão Mundial Internacional.
Não é a primeira vez que a Igreja Católica convida observadores evangélicos. Recordemos que o dr. José Míguez Bonino (Argentina), teólogo metodista, esteve no Concílio Vaticano II, e também na Conferência de Medellín, em 1968. Esses convites são gestos de cordialidade ecumênica que têm contribuído para sustentar relações fraternais e para manter abertas as portas do diálogo e da cooperação.
No meu caso, a iniciativa foi, primeiramente, da Visão Mundial Internacional, e, em seguida, da União Batista Latino-americana. Foram enviadas muitas cartas solicitando a participação de um representante. O cardeal Errázuriz (Chile), presidente do CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano), respondeu essas cartas, inicialmente explicando os critérios de participação e, depois, confirmando a minha participação. A Visão Mundial tinha razões para querer estar presente em Aparecida por ser uma organização de ajuda humanitária de identidade cristã e de ampla abertura inter-confessional. Por parte da União Batista Latino-americana as razões também são várias, sobretudo porque, há mais de quinze anos, a Aliança Batista Mundial iniciou diálogos formais com o Vaticano em busca de caminhos de encontro e reconciliação. Eu participei do último desses diálogos, em Buenos Aires, em dezembro de 2000, quando nos reunimos com o cardeal Walter Kasper e mais cinco representantes de João Paulo II.
Entendo meu convite como uma confirmação do desejo oficial da Igreja Católica de nosso continente de continuar os diálogos anteriores.
Ultimato — Desde a I Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho, convocada pelo Papa Pio XII e realizada no Rio de Janeiro há 52 anos, a América Latina, colonizada e evangelizada pelos dois países mais católicos e fiéis a Roma na época da Reforma, é reconhecida como o Continente da Esperança. Essa esperança é para o catolicismo ou para o cristianismo em geral?
Segura — Na recente visita ao Brasil, o papa disse que, além de ser o Continente da Esperança, também é o do amor, tema no qual vem insistindo desde sua Carta Encíclica “Deus Caritas Est” (2005). Minha interpretação muito pessoal dessas expressões é que a Igreja deve alentar a esperança e fortalecer o amor. Se essa interpretação está correta, a Igreja acerta em sua perspectiva e, nesse sentido, tanto católicos como evangélicos temos a oportunidade — e a responsabilidade — de trabalhar juntos para que essa esperança e esse amor se tornem realidade e não meros referenciais retóricos.
A esperança e o amor poderiam ser campos de trabalho comum. Refiro-me à luta contra a pobreza, à denúncia profética, à construção da paz, à promoção da justiça, à defesa da dignidade humana, ao zelo pela criação e a tantos outros temas urgentes no momento atual. Nesses temas falta a esperança e juntos poderíamos fazer algo como testemunho comum do amor de Deus.
Se o ecumenismo tem esperança, ela está em sua missão comum de serviço e de evangelização, ou seja, juntos servindo no nome de Jesus àqueles que necessitam e juntos também anunciando que em Jesus há esperança e que ela é a fonte do amor.
Voltando à sua pergunta original, posso dizer que o catolicismo crê que a América Latina representa para ele uma esperança de revitalização institucional. Aqui se encontra o maior percentual de católicos do mundo e, tanto o papa como os bispos admitiram, durante os dias da conferência em Aparecida, que esses números não são suficientes se não há uma verdadeira vivência do evangelho. Há uma clara consciência de que essa esperança pode se diluir se não se reforçar a catequese, o atendimento pastoral, a formação dos sacerdotes, além de outras ações pastorais.
Porém, repito que falar de esperança deveria ter o sentido de missão e não o de proselitismo evangelizador. Isso nos salvaria das ações de conquista proselitista por parte dos evangélicos ou de reconquista religiosa por parte do catolicismo.
Ultimato — A grande maioria dos católicos do Continente da Esperança não pratica a religião (no Brasil, 61% é praticante, de acordo com uma pesquisa do Datafolha). A situação é tal que o jornalista Marcelo Coelho (Folha de São Paulo) diz que “o catolicismo é uma religião de pessoas que não ligam tanto para religião”. Este panorama pode mudar?
Segura — Pessoalmente, tive uma grata surpresa com algumas declarações que a Igreja Católica fez nos documentos prévios à conferência de Aparecida. Em dois deles, no Documento de Participação (2005) e no Documento de Síntese (2007), se admite que o catolicismo da América Latina e do Caribe é formado por uma grande multidão de batizados, mas não de verdadeiros discípulos e seguidores de Jesus na vida diária. Esta é uma declaração honesta e corajosa que eu não havia encontrado antes nos textos oficiais.
Esse mesmo diagnóstico se confirmou por parte de vários dos bispos presentes na conferência em Aparecida. O papa Bento XVI falou desse tema em seu discurso inaugural quando disse que os fiéis estavam esperando da conferência “uma renovação e uma revitalização de sua fé em Cristo”. E acrescentou que era necessário e urgente empreender uma nova pastoral para que os batizados pudessem seguir a Jesus, “viver em intimidade com Ele, imitar seu exemplo e dar testemunho… Pois ser discípulo e missionário de Jesus Cristo e buscar a vida nele implica estar profundamente enraizado nele”. Portanto, me deparo com um diagnóstico correto, que nós evangélicos já havíamos assinalado quando falávamos de “um catolicismo nominal”.
Porém, há que se esperar se, diante desse diagnóstico, são gerados novos modelos pastorais. Particularmente, não creio que a Igreja Católica vá conseguir enfrentar esse dilema. Por um lado, porque não contam com a quantidade de sacerdotes necessários para dar atenção aos milhões de batizados; por outro, porque seu sistema clerical e sacramental não permite que um maior número de leigos tomem parte nas ações pastorais. A necessidade é grande e eles são conscientes disso; mas como responder de maneira adequada com uma eclesiologia centralista, clerical e que exclui as mulheres do ministério ordenado?
Mas, como nesta entrevista quero manter um equilíbrio e não deixar a impressão de que todos os problemas são do catolicismo, é importante ressaltar que o protestantismo evangélico no continente começa a viver uma situação similar. Há estudos muito bem documentados que mostram que dentro de nossas fileiras já se observam os primeiros sinais do “protestantismo popular”, de “analfabetismo bíblico” e de separação entre fé e ética. Devemos agir logo no que se refere a esses primeiros sinais se não queremos repetir os erros de uma fé de multidões, massificada, mas irrelevante em seu impacto social e cultural.
Ultimato — Como o sr. vê o crescimento do protestantismo nos países ibero-americanos?
Segura — Pelo que eu disse até agora é fácil saber que vejo esse crescimento com grande preocupação. Houve épocas em que nossa grande pergunta foi: como obter o crescimento? Hoje, porém, depois do crescimento explosivo que temos alcançado, a pergunta é: o que fazer com esse crescimento? E não encontramos a resposta.
Em alguns países o crescimento transformou-se em oportunidade política (o crescimento foi igual a votos), em outros, em oportunidade econômica (o crescimento foi igual a poder econômico), e, em outros, em poder social (crescimento foi igual a caudilhismo). Mas a verdade é que nosso crescimento ainda não conseguiu traduzir-se em impacto social, em ações proféticas, em testemunho ético, enfim, em ser verdadeiramente “sal da terra e luz do mundo”, como quis Jesus. Se não conseguirmos mudar essa situação, o crescimento nos asfixiará e nos tornaremos uma segunda força religiosa oficial, grande mas irrelevante, como aquela que já temos há quinhentos anos.
Ultimato — No discurso de inauguração da V Conferência do Episcopado Latino-americano e Caribenho, Bento XVI se refere à Igreja Católica como uma “única Igreja de Cristo governada pelo sucessor de Pedro e pelos bispos em comunhão com ele”. Isso é um retrocesso da Igreja ou uma confirmação do que ela sempre pensou?
Segura — É uma confirmação do que ela sempre pensou. Basta ler a Declaração Dominus Iesus (2005), ou o Catecismo da Igreja, ou os documentos pontifícios em relação à doutrina da Igreja para comprovar que essa doutrina tem estado presente sem variação alguma. A Igreja Católica oficial crê que há somente uma Igreja e que ela está sob a direção do sucessor de Pedro e dos bispos em comunhão com ele.
Partindo dessa afirmação, posso dizer que nós, observadores evangélicos em Aparecida, não esperávamos que nos concedessem o título de Igreja. Repito que, para eles, só há uma Igreja e, verdade seja dita, nós queremos pertencer a ela. O que quisemos em Aparecida foi que nos denominassem de uma forma mais respeitosa, em vez de “seitas fundamentalistas” ou outras denominações que nos deram nas últimas décadas. Propusemos que nos chamassem de comunidades eclesiais ou comunidades cristãs. Era uma simples “vitória gramatical”, mas importante no sentido de abrir portas de respeito para a unidade na missão… não na eclesiologia.
Ultimato — Segundo o economista americano Jeffrey Sachs, de 20 a 30 mil pessoas morrem diariamente por não poder suprir suas necessidades básicas. Só na América Latina, onde vive a metade de todos os católicos, 30% da população está abaixo da linha da pobreza. Há um meio termo entre a teologia da libertação e o movimento carismático católico, entre a preocupação social e a preocupação espiritual, entre tradição e revolução? Esse delicado desafio também é para os protestantes?
Segura — Eu creio que tem de haver um meio termo, e o quanto antes o encontrarmos será melhor. Esta é, na minha opinião, uma das maiores urgências do movimento evangélico de nossos dias. Necessitamos encontrar o equilíbrio entre a Igreja e o mundo, entre piedade e compromisso, entre adoração e serviço, entre “kerygma” e “diakonia”, entre anúncio e denúncia. Este é um desafio também para o protestantismo.
Ultimato — O que você chama de espiritualidade evangélica comprometida?
Segura — Escrevi no ano 2000 um pequeno livro intitulado “Hacia Una Espiritualidad Evangélica Comprometida” (Rumo a uma espiritualidade evangélica comprometida) e o que quis foi fazer um chamado pastoral a uma nova maneira de seguir a Jesus, caracterizada pela radicalidade, pela integralidade e pela diversidade. Em resumo: para mim, espiritualidade é seguir a Jesus e imitar seus passos em meio à vida e aos desafios de cada dia. A espiritualidade, então, é imitar a Jesus, viver como Ele viveu e comprometer-se com a causa com que Ele se comprometeu, a causa do reino de Deus e sua justiça.
A renovação de que necessitamos tem no centro a renovação da espiritualidade. Enquanto continuarmos crendo que ser espiritual é manter-se isolado das realidades sociais e do que acontece no mundo, não conseguiremos dar o “salto qualitativo” rumo a uma Igreja mais relevante e presente neste mundo como testemunho do amor de Deus. Necessitamos, pois, deixar que a ação do Espírito Santo nos transforme, para que possamos ser agentes de transformação e colaboradores de Deus em sua tarefa de “fazer novas todas as coisas”.
Ultimato — Parece que o livro sobre missão integral que o sr. e René Padilla publicaram no ano passado coloca os verbos ser, fazer e dizer na sua ordem correta.
Segura — Essa observação me parece muito precisa. Sabia que eu não havia pensado na ordem? Eu não pus o título; isso foi tarefa do dr. René Padilla e de sua equipe da Editora Kairós. A única coisa que fiz foi dar minha aprovação quando recebi a proposta. Mas a ordem, de fato, é intencional, porque sei como René trabalha esses detalhes.
Geralmente, nós, evangélicos, colocamos o dizer em primeiro lugar. Nossa especialidade é o anúncio do evangelho de Jesus. Talvez o segundo lugar seja do ser, porque, pela herança pietista, damos muita importância à vida como elemento fundamental para o testemunho. Procuramos ser com o propósito de respaldar aquilo que dizemos. E quanto ao fazer? Essa parte do triângulo relegamos ao último lugar. E a ordem fica assim: primeiro o evangelismo, depois o testemunho pessoal e, por último, a diaconia.
No livro, desde o título há uma proposta de mudança: primeiro vem a vida, o ser diante de Deus e dos homens; depois, o fazer, como expressão daquilo que somos; e, finalmente, o dizer, pelo qual explicamos para que vivemos como vivemos e quais são as razões para agirmos em favor dos demais.
De todas as maneiras, se me permite, eu prefiro apresentar este título de uma forma circular: essas três dimensões se relacionam mutuamente, sempre mantendo no centro a glória de Deus.
Notas
Traduzido do espanhol por Wagner Guimarães.
Entrevista publicada originalmente na edição 307 da Revista Ultimato.
- Nenhum comentário ainda.
Últimos comentários