Aborto
Uma reflexão sobre a posição histórica e legalista dos Evangélicos no Brasil e os dilemas “pró-vida” e “pró-escolha”.
Por Daniel Barros da Silva*
“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32).
“Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida, ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14:6).
Para nós, que somos cristãos, Jesus é Deus! Desta maneira, a Verdade é o nosso Deus. Acontece que a Verdade é uma pessoa, a Verdade é Caminho, a Verdade é Vida! Fica evidente, desde já, que a Verdade, dentro da perspectiva cristã não é apenas um conjunto de afirmações, a Verdade tem contexto.
Da Teologia, aprendemos que Jesus é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Ele toma sobre si a natureza humana, ele padece nossas dores, compreende nossas angústias, sente nossas perdas. Ele sabe o que significa ser humano, em toda a extensão do que “ser humano” significa.
Um dos nomes atribuído a Jesus é Emanuel, que significa “Deus conosco”. Ele é a shakam, a presença de Deus no meio do seu povo. Talvez por isso, em sua oração sacerdotal, Jesus se dirige ao Pai dizendo “não peço que os tire do mundo, mas que os livre do mal” (João 17:15).
É nesse ponto que a Teologia se torna sensível. Como diferenciar o “tirar do mundo” do “livrar do mal”? Como ser sal e luz, dentro do contexto deste tempo e deste lugar? O que significa ser íntegro de caráter? Será que ter fé deve significar abandonar o conhecimento duramente adquirido através dos séculos?
Houve um tempo em que a Escravidão era parte inerente da construção social. De fato, a ausência de escravidão é fato recente na história da humanidade. Essa instituição asquerosa foi por milênios a regra geral no tecido social de diversas civilizações. O sujeito não se sentiria praticando qualquer imoralidade por possuir escravos.
Curiosamente, o que a Bíblia nos ensina, no contexto de um Mundo em que imperava a imoralidade da escravidão, é que há um limite para chicotear um escravo. O sujeito poderia se sentir plenamente justificado diante de Deus ao promover o sofrimento de um semelhante, desde que cumprisse o mandamento de aplicar apenas 40 chibatadas.
A Palavra de Deus foi escrita não apenas para o nosso tempo, mas também para outros tempos e outros lugares, e outras tessituras civilizacionais. De maneira que, “o povo que se chama pelo Meu nome” possa viver de forma agradável a Deus em qualquer contexto, por mais violento e asqueroso que pareça aos nossos olhos modernos.
Desta maneira, parecem pouco apropriadas, pelo menos aos meus ouvidos, as frases de efeito e as palavras de ordem dos grupos antagônicos aos quais se convencionou chamar “pró-vida” e “pró-escolha”. De maneira bem sucinta, o grupo “pró-vida”, em linhas gerais, defende a tese de que a vida “começa na concepção”, e de que, portanto, todo aborto corresponde a um assassinato. Já o grupo “pró-escolha” defende a tese de que ninguém tem o direito de impor à uma mulher o que esta deveria fazer do próprio corpo.
Assim como em outras áreas da vida, dificilmente surge alguma sabedoria a partir dos gritos da militância. Em geral a sabedoria vem “da multidão de conselheiros”. E mais uma vez, me parece que a construção de pontes é mais produtiva do que a fabricação de muros. Em outras palavras, tanto os “pró-vida”, como os “pró-escolha” partem das exceções para construir uma narrativa.
Mas nós, que declaramos ser adoradores da Verdade Encarnada, precisamos suportar o fardo de construir consenso. O fardo de sermos “pacificadores”. O fardo de produzirmos um tecido civilizacional que promova a bondade, a caridade, a amizade, a cooperação entre os mais diferentes grupos criados “à imagem e semelhança de Deus”.
Desta forma, a narrativa “pró-escolha” apresenta um defeito grave e irreconciliável, a saber, o feto, a partir da determinação de sua humanidade, não é mais um “objeto” dentro do corpo da mulher, mas, um outro ser, dotado de direitos, dos quais o mais relevante, o direito à vida, é inalienável.
Por isso, é absurda a postura de alguns países, e alguns estados norte-americanos, de determinar que um “aborto” pode ser realizado até o momento anterior ao início do trabalho de parto. Resta evidente que um bebê de 9 meses dentro do útero materno é exatamente o mesmo ser, quer dentro do útero, quer fora do útero. Portanto nestes casos, não se trata de aborto, mas de infanticídio.
Por outro lado, a narrativa “pró-vida” de que a vida começa na concepção é, na melhor hipótese, o que se convencionou chamar de wishful thinking. Do ponto de vista científico, não existe definição sobre o que é vida, e muito menos sobre quando a vida se inicia ou termina. Todos os conceitos sobre vida e morte são funcionais, em outras palavras, são “acordos de cavalheiros” que permitem estabelecer os termos de uma conversa.
Portanto, definir que a vida começa na concepção é uma escolha filosófica e teológica. E se tentarmos definir o que significa “vida humana” em termos científicos, a complexidade só aumenta. Certos métodos anti-concepcionais, socialmente aceitos, e amplamente utilizados como o DIU podem ser abortivos, ou seja, podem impedir que um concepto se implante no endométrio, o que, para todos os efeitos, seria considerado “assassinato” pelos radicais.
Logo, parece necessário promover um debate mais maduro sobre este assunto. Como dito anteriormente, as definições de vida e morte, em ciência, são apenas funcionais. Houve um tempo, antes do advento da ressuscitação cardiopulmonar, em que se considerava que um sujeito estava morto pela colocação de um pequeno espelho à frente de sua boca. Quando não havia mais umidade advinda da respiração, registrava-se o óbito.
Posteriormente, coisas como a respiração artificial, drogas vasomotoras, circulação extracorpórea, ECMO etc. permitiram que se pudesse recuperar pessoas que há poucas décadas já seriam consideradas mortas. E há estudos em andamento para tentar reverter até mesmo as lesões de pacientes considerados em morte cerebral.
Mas por que falar de morte? Simples, porque a partir do conceito funcional de morte poderíamos chegar a um conceito funcional de vida, e desta maneira estabelecer pontes que permitam o fim do conflito entre “pró-escolha” e “pró-vida” no interesse da promoção da dignidade humana.
O conceito funcional de morte como morte cerebral é uma escolha, um acordo de cavalheiros, aceito de forma virtualmente universal. Morte cerebral é apenas um conceito. Considera-se que um sujeito está morto quando há a perda de função do tronco cerebral, pois nestes casos, a “morte” já é inevitável.
Mas, de onde surgiu o conceito de “morte cerebral”? A resposta é: da necessidade de se realizar transplantes de órgãos. Órgãos humanos, como sabemos, degeneram rapidamente após serem retirados do corpo. Por isso, temos apenas algumas horas para transplantar um coração ainda viável. Acontece que, no caso da morte cerebral, temos uma pessoa que já está tecnicamente morta, mas seu coração ainda bate, seus pulmões ainda funcionam, seus rins ainda filtram o sangue etc. ou seja, as vísceras ainda funcionam mesmo quando o cérebro já morreu.
Daí compreendemos portanto que a morte não é necessariamente um fato, mas, na verdade, um processo. E nós, enquanto comunidade, chegamos a um acordo sobre um limite a partir do qual, durante este “processo de morte”, já consideramos aquele indivíduo como “morto”. Afinal de contas, seria um horror de proporções dantescas sequer considerar arrancar o coração de um ser humano ainda vivo.
Da mesma forma que a morte, a vida também é um processo. Se pararmos para pensar, mesmo antes da concepção, tanto espermatozoides como óvulos são células vivas. E a concepção, de um ponto de vista objetivo, é apenas o encontro de duas células, e a cadeia de eventos da biologia molecular que promovem a fusão de material genético e a consequente multiplicação de células.
Neste processo de produção da vida, assim como no processo da cessação da vida, a construção de um ponto de corte é absolutamente arbitrária. Entretanto, uma vez que já produzimos, enquanto comunidade internacional, uma definição funcional de morte, a saber, a morte encefálica, poderíamos também estabelecer um consenso sobre a definição de vida, que poderia muito bem se chamar “vida encefálica”.
Ou seja, poderíamos definir que só há vida intra-uterina formalmente, quando o feto veio a construir o seu tronco cerebral, o que ocorre perto da 12ª semana. Isto porque, se alguém já está morto quando perde a função do tronco cerebral, por analogia, poderíamos considerar que esse mesmo alguém ainda não está vivo até que o tronco cerebral esteja formado.
Desta maneira, de forma alguma, eu estaria aconselhando, incentivando, promovendo ou corroborando com o aborto. A Igreja e os Cristãos podem e devem permanecer pregando o evangelho de Jesus Cristo, e estabelecendo para si mesmos padrões de conduta mais exigentes do que a lei dos homens.
Mas, então, por que perder tempo lendo (ou escrevendo) este texto? Porque a questão que se levanta não é se um cristão deveria ou não abortar, já que esta é uma decisão de foro íntimo, independentemente de qualquer lei. A questão que se levanta é: um cristão deveria ser favorável à prisão de alguém que cometeu aborto?
Novamente, precisamos de contexto. Precisamos separar o conceito de “aborto” do conceito de “assassinato”. Para isso proponho o uso do termo (técnico) “interrupção da gestação”. Desta forma, uma “interrupção da gestação” poderia ser um “aborto” ou um “assassinato” dependendo das circunstâncias.
Considerando o que foi dito acima, uma interrupção da gestação seria um aborto caso realizada até 12 semanas, e um assassinato se realizada após isso. E neste ponto, não importam as razões que levam uma mulher a realizar o aborto, pois, de acordo com a definição funcional, tal feto ainda não estaria vivo. E após este período, também não importam as razões, pois este ser humano, ou nas palavras da Ministra Carmem Lúcia, este “brasileirinho” já está vivo.
É claro que ainda existem questões a serem consideradas, como anencefalia, doenças genéticas incompatíveis com a vida extra-uterina, mal-formações graves e a questão do estupro. Mas este texto já se alongou demais.
Meu desejo é que se possa começar a construir um debate mais maduro sobre o assunto, no intuito de garantir às pessoas a manutenção da sua dignidade, mas sem, com isso, perder de vista o direito mais fundamental, que é o direito à vida.
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*Daniel Barros da Silva é médico especialista em Endocrinologia. Foi professor de Professor de Clínica Médica na Universidade Estacio de Sá e, desde sempre, um leitor assíduo de Física. Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Pós-Graduação em Endocrinologia pelo Instituto de Endocrinologia da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. É Batista de formação. Foi co-fundador do Grupo da Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB) no Instituto Biomédico da UNIRIO, e Diretor Suplente do Diretório Acadêmico Benjamin Batista (DABB).
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