As Tragédias de Charlie Kirk
Porque o racismo é incompatível com a fé cristã
Por Paul Freston*
Um grande amigo, missionário na África há décadas, me escreveu, impactado pela morte de Charlie Kirk e a comoção que causou em altas esferas dos EUA, e entusiasmado com a possibilidade de um avivamento cristão como legado do trabalho dele. Disse que, na história, muitos jovens com pouco preparo foram usados como estopim de avivamentos. Citando os comentários lamentáveis de Lutero sobre os judeus, não obstante ele fosse grande teólogo e reformador, disse que a mistura de grandeza com alguns erros não impede alguém de ser usado por Deus para revitalizar a fé. Ele via no movimento que Kirk fundou em 2012, Turning Point USA, “o entrelaçamento de alguns temas políticos e espirituais poderosos” que fariam com que “a religião em geral não seja tão escanteada”. Alegando não se considerar “nem direita, nem centro, nem esquerda”, ele terminou dizendo que, afinal, não precisamos “jogar fora o bebê com a água do banho”.
Charlie Kirk, jovem ativista americano brutalmente assassinado em setembro, era grande divulgador das pautas do movimento Maga, de Donald Trump, entre jovens, sobretudo estudantes. Nos últimos anos, vinha enfatizando mais a divulgação em igrejas também. Mas me impressionou o interesse nele por parte do meu amigo missionário, que não é americano. Que responder a ele? Tenho consciência de estar entrando em terreno perigoso ao comentar o caso; nos EUA é complicado agora expressar, mesmo timidamente, alguma reserva ao legado dele. Mas no Brasil, será que não podemos, respeitosamente, fazê-lo?
Concordo logo com o meu amigo em duas coisas: o horror ao que aconteceu e o desejo de um avivamento. Mas, para além disso, que atitude tomar? Não pretendo aqui comentar tudo que poderia ser dito sobre a carreira e obra de Kirk, mas apenas rascunhar uma resposta para o meu amigo, pensando a vida e morte dele em termos de três tragédias.
A primeira e maior tragédia, evidentemente, foi o assassinato horrendo em si, a sua vida jovem ceifada, a esposa deixada viúva e os filhos deixados sem pai. Este fato trágico deve ser sempre protegido de polêmicas sobre a violência política. O crime terrível não é isolado; a violência política cresce nos EUA. Estudos abrangendo as últimas décadas sugerem que assassinatos e atos violentos associados a motivações políticas têm sido perpetrados um pouco mais por pessoas “de direita” do que “de esquerda”. Mas, como cristãos, devemos lembrar que não se trata de um campeonato para ver se conseguimos atribuir uma atrocidade a mais ao outro lado do que ao nosso! Basta constatar que as virtudes não são encontradas exclusivamente em um ponto do espectro ideológico.
Ao mesmo tempo, o repúdio à violência política e o luto pelas vítimas não impede de examinar a mensagem que Kirk promovia. A tragédia do crime monstruoso não deve ser usada para silenciar as críticas à sua mensagem. Uma tragédia não encobre outra tragédia. Não devemos ceder à má-fé daqueles que associam crítica aos posicionamentos dele com aprovação do ato vil do assassinato. Pois, a segunda tragédia de Charlie Kirk é o que ele representava de cristianismo misturado com posicionamentos lamentáveis, dos quais me limito aqui a comentar o seu racismo.
Todos nós falhamos em nossa compreensão do evangelho, e com certeza falhamos em nossa vivência daquilo que compreendemos. Mas no caso dele trata-se de algo crasso, repetido e ensinado. O racismo não é uma questão periférica na fé cristã; contraria frontalmente o evangelho, e quando deliberadamente adotado e publicizado, chega a constituir não apenas um “outro evangelho”, mas um trágico “antievangelho”.
É válido questionar a maturidade em Cristo de um cristão que diz:
- Se eu vir um piloto negro, vou pensar: “Cara, espero que ele seja qualificado”.
- Acontece o tempo todo nas áreas urbanas dos Estados Unidos, negros rondando por diversão para atacar brancos, isso é fato. Está acontecendo cada vez mais.
- Se estou lidando com alguém no atendimento ao cliente que é uma mulher negra imbecil, fico pensando se ela está lá por sua excelência ou por causa de ações afirmativas.
- Você não tem o poder de processamento cerebral para ser levado realmente a sério. Você tinha que roubar a vaga de um branco para ser levado um pouco a sério.
- Quando os negros na América não tinham os mesmos direitos que têm hoje, havia menos assassinatos e menos roubos.
- A grande estratégia de substituição, que está em andamento todos os dias em nossa fronteira sul.
- O Partido Democrata Americano odeia este país. Eles querem vê-lo ruir. Eles adoram quando os Estados Unidos se tornam menos brancos.
As últimas duas frases aludem à “great replacement theory”, um suposto complô dos democratas para transformar os Estados Unidos em um país não branco.
Será que ele nunca leu o livro de Atos? Se os primeiros cristãos judeus podem ser perdoados por demorarem a entender o que Deus estava fazendo em Jesus, hoje depois de 2000 anos e a posse dos escritos do NT e a evidência da história, só é possível se proclamar cristão e ainda declamar sentimentos tão claramente racistas quem escolhe deliberadamente fazê-lo. Ele não estava em 1920, apenas repetindo o que todo mundo em seu contexto social pensava. Hoje, alguém do background social dele só fala essas coisas porque escolheu mergulhar no mundo fantasioso do racismo e das teorias da conspiração. Temos que duvidar seriamente da sua compreensão da fé cristã. (A outra possibilidade, alegada por alguns defensores dele, é que se trata de “frases fora do contexto”. Mas seria necessário muito contexto para justificar essas frases, ainda mais sendo repetidas! Acho estranho o desejo de defendê-lo dessa forma. Para salvaguardar o cristianismo dele, bastaria dizer: é cristão sincero, mas lamentavelmente sem ensinamento. Mas no fundo, me parece, querem mais é defender a posição política de extrema direita dele.)
Há uma terceira tragédia de Charlie Kirk, cuja mensagem continha o seguinte:
Acho que vale a pena ter o custo, infelizmente, de algumas mortes por arma de fogo todos os anos para que possamos ter a Segunda Emenda para proteger nossos outros direitos dados por Deus. Esse é um acordo prudente. É racional.
Alguns críticos não cristãos disseram que foi carma ele ter sido vítima de atentado com arma de fogo, ainda mais de um tipo que não se justifica como “necessário” para defesa pessoal. Mas, como cristãos, não acreditamos em carma; melhor analisarmos pelo conceito de idolatria. A violência com armas de fogo, como o mundo inteiro sabe, é característica triste da vida nos EUA, sem comparação com outros países desenvolvidos. Mas o lobby das armas é poderosíssimo e sabota todas as tentativas de mudar a legislação, não importa quantos massacres houver. Trata-se da idolatria a um deus guloso que exige cada vez mais sacrifício humano. O que nos leva à questão da empatia.
Segundo Kirk, a empatia é “termo inventado pela Nova Era que faz muitos danos”. Ele a ridicularizava, vendo-a como obstáculo para a implementação das políticas que defendia. Isso lembra a acusação que o filósofo Nietzsche fazia ao cristianismo. Para ele, o que havia de mais desprezível no cristianismo era sua preocupação pelos fracos, pobres e oprimidos. O cristianismo, com seu símbolo horrendo de um “Deus crucificado”, convenceu os fortes e sadios de que os humildes e famintos mereciam herdar a terra! O cristianismo fez toda a humanidade adoecer, pois a nobreza da alma passou a ser medida pela compaixão pelos humildes e sofredores. “Antes da humanidade se envergonhar da sua crueldade, a vida na terra era mais alegre”.
Nietzsche pelo menos foi coerente e rejeitou o cristianismo. Hoje, há cristãos que tentam uma fusão de Cristo e Nietzsche, motivados por preferências políticas. Eles se consideram “realistas”, e como Kirk se opõem abertamente à empatia, abrindo espaço para uma política do rancor e uma cultura pública da crueldade.
Contra isso, devemos rejeitar firmemente o “cristianismo nietzscheano” que infecta alguns meios cristãos hoje, e inclusive quaisquer ímpetos nietzscheanos que nós porventura tenhamos, e reafirmar nosso seguimento do Cristo dos evangelhos.
Que dizer, então, do suposto avivamento que Kirk estaria promovendo? Kirk, um evangélico de berço, parece ter passado por uma mudança durante a pandemia: de reticência à politização religiosa, passou a veicular ideias nacionalistas cristãs influenciadas pela Nova Reforma Apostólica. Acontece que essas ideias são atraentes também para muitos adeptos da direita não religiosa, podendo ser adotadas sem muita dificuldade. Kirk foi parte importante da religiosidade crescente do movimento Maga. Em vez de avivamento cristão, representa a cristianização cultural da extrema-direita americana, a expansão do “evangelho” do nacionalismo cristão.
Que dizer ao meu amigo, então? Respondi à sua analogia da água do banho: Sim, importa, acima de tudo, guardar o bebê. Mas será que Charlie Kirk representa bem o bebê? A base da sua fama é como influencer e operador político de extrema-direita. Foi financiado prodigamente por ricos e poderosos interessados na propagação da sua mensagem política. No seu movimento, a fé cresceu a partir da política e não o inverso (algo que pode acontecer não somente na direita, evidentemente!). Creio que era também um cristão sincero (não hipócrita, como tantos políticos). Mas dos milhões de cristãos que poderíamos escolher para representar o “bebê” que queremos guardar depois de jogar fora a água suja, ele não parece uma boa escolha. Geralmente, quem promove a sua lembrança é quem gosta do que ele fez para popularizar a água suja. Terminei perguntando ao meu amigo: você que vive na África e treina jovens africanos, será que você poderia mostrar-lhes todas essas frases e dizer que elas têm a ver com o evangelho em que você acredita e espera que seja avivado?
O caso Kirk acrescenta outra dimensão à triste história recente do cativeiro político-sectário da igreja. Longe de elevar uma pessoa dessas (ou seus imitadores brasileiros) em mártir, na minha idade a vontade que tenho é de chorar e sentir pena de todo mundo. Tragédia sobre tragédia. Choremos pelos tempos trágicos em que vivemos. Em Cristo, sabemos que a tragédia não é a última palavra. Mas às vezes é a penúltima. E sentimos pena da estupidez, da hipocrisia, da ignorância dos outros… e da nossa própria também.
*Nota do editor: este texto e sua publicação seguem a linha editorial independente do Blog Dignidade. Assim como todo o conteúdo deste blog, ele é de inteira responsabilidade de seus autores, não sendo endossado pelo Portal Ultimato – que graciosamente nos hospeda, e corajosamente nos garante liberdade de opinião.
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*Paul Freston é titular da Cátedra CIGI de Religião e Política em Contexto Global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, no Canadá. Ele também é professor colaborador no programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Federal de São Carlos, no Brasil. Entre seus livros estão Evangelicals and Politics in Asia, Africa and Latin America (Cambridge University Press, 2001); Protestant Political Parties: a Global Survey (Ashgate, 2004); (ed.) Evangelical Christianity and Democracy in Latin America (Oxford University Press, 2008); e (co-edited) The Cambridge History of Religions in Latin America (Cambridge University Press, 2016). Foi por várias décadas uma liderança na Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB), e é autor de Nehemias: um profissional à serviço do Reino.
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