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Após cerca de 30 anos de vivência evangélica, redescobri a tradição cristã do advento, que me impactou em profundidade. Parte daqueles símbolos que, em meu ceticismo ritual somado à crítica social, eu atribuía somente à cultura de consumo ganharam sentido pleno, como sinais que apontam para as mais densas e transformadoras verdades. É claro que o Natal é uma agenda do comércio. Mas continua sendo uma celebração cristã, depende dos nossos olhos. Ingressar no período de advento me faz refletir sobre e reconhecer os mistérios tanto das esperas – do povo e dos profetas, que ansiavam pelo Messias, a de Maria, cuja única reação possível é cantar e poetizar –, quanto da chegada de Cristo, o Divino que se faz homem.

Há um misto de consequências individuais e coletivas em pensar o Natal como um evento vivido cristãmente. Não há razão para não deixar o espírito elevar-se e espantar-se com a realidade, sempre mistério, de Deus entrar na história e escolher fazê-lo através de uma mulher, de um bebê, de uma família. Um dos encantos é a universalidade desse ato – que transforma e redime toda a humanidade, todo o mundo, toda a criação – ser colada a singularidades. O cântico de Maria, o espanto de José, o nascimento na estrebaria, o louvor dos pastores e dos anjos. O que faz pensar que esperar o Divino é esse misto de canto, espanto, jornada, louvor. É a certeza de que Ele vem que alimenta a esperança. Celebrar o advento permite lembrar e reviver a espera.

A beleza dessa história é que a esperança não é vã. O advento termina quando Cristo, o próprio filho de Deus Pai, nasce. E então nada mais pode ser o mesmo, porque a esperança se realiza. Nenhum outro nascimento possui tão imenso e generoso Amor, cheio de misericórdia, quanto esse que celebramos no Natal. É o próprio plano divino de redenção que se movimenta. Seguir a Cristo nos leva adiante na história, a chegada do divino passa por toda a ação do Messias na terra, sua obra de discipulado, seu amor demonstrado aos pecadores, sua morte, sua ressurreição e sua promessa de retorno. Relembrar e reviver o advento e a chegada de Deus na história enche a vida de propósito: ser cristão é imitar Cristo, é demonstrar seu Amor aos outros e, como ele, fazer uma jornada de conciliação, que leve paz, alívio ao sofrimento humano e restauração a toda a criação.

Esperar pelo divino é reconhecer nossa dependência dEle e lembrar sua entrada na história e sua promessa de companhia e auxílio, sua missão, nos mobiliza a agir. É refletir sobre o momento que vivemos e nossa responsabilidade como cristãos nesse mundo – o mesmo que “Deus amou de tal maneira que deu filho”. Apesar de não ser uma música natalina, a questão que João Dias de Araújo e Décio Lauretti cantaram me vem a mente:

“Que estou fazendo se sou cristão, se Cristo deu-me o seu perdão?

Há muitos pobres sem lar, sem pão, Há muitas vidas sem salvação.

Mas Cristo veio pra nos remir, O homem todo, sem dividir:

Não só a alma do mal salvar, Também o corpo ressuscitar”

 

Os desafios são grandes, a continuidade da música cita alguns:

“Há muita fome no meu país, Há tanta gente que é infeliz,

Há criancinhas que vão morrer, Há tantos velhos a padecer.

Milhões não sabem como escrever, Milhões de pobres não sabem ler:

Nas trevas vivem sem perceber, Que são escravos de um outro ser.”

 

Então, para manter uma das tradições natalinas, faço votos: que nesse Natal possamos renovar nosso compromisso com Cristo, nosso compromisso de participarmos de sua obra redentora, acolhendo, curando, restaurando, respondendo com ousadia à pergunta “que estou fazendo se sou cristão?”. Que o espanto do Amor Divino nos mova a olhar o próximo, a agir para tornar o ambiente ao nosso redor, nossa sociedade e cultura, um lugar mais semelhante aos reflexos de tal Amor, onde cada mulher e cada homem possam viver dignamente. Amém.

 

Priscila Vieira

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