Um conto de verão em família
“Ué… para onde foram eles?!?!” – perguntou o burrico azul com olhar triste e orelha murcha.
“Você não ouviu as conversas desses últimos dias? Estão viajando. Só ficou o pai, aquele mais velho, grisalho e barrigudo” – respondeu a princesa de cabelos cor-de-rosa e coroa dourada, a mais perspicaz das bonecas esquecidas. “Ontem aquela mulher engraçada dos cabelos enrolados estava à noite, aqui na sala, passando roupas enquanto assistia televisão. Vi hoje bem cedo uns movimentos de malas. Acho que foram para a tal Belo Horizonte, segundo ouvi a filha dizendo para as amigas pelo celular. Ela foi ontem, um dia antes. Hoje foram a mãe e o filho mais novo, o alto e magro, o que só assiste esportes. O pai ficou sozinho”.
“Mas não é deles que estou falando não. Esses sempre estão aqui” – retrucou nervosamente o burrico, confirmando as suspeitas dos sinais de bipolaridade. “Eu falo é daquela menininha que brincava com a gente todos os dias. Aquela fofurinha, gordinha, lindinha… Como sinto falta dela…” – fungou com tristeza o quadrúpede de pelúcia.
“Maria… Maria… Esse é o nome dela”.
O intrometido na conversa, que parecida íntimo da família, não era ninguém menos que o pequenino boneco de construtor da Lego. Ele se achava muito importante por ser um trabalhador na construção civil. Com barba por fazer, capacete branco, roupas zebradas de amarelo e preto, parecendo uma fita que delimita zonas de perigo, ficava o tempo todo dando ordens. Embora fosse o menor de todos, achava-se o máximo. Os compridos cangaceiros de madeira que ficavam ao lado da televisão já haviam dado o diagnóstico: aquela dureza toda era uma forma de compensação pela baixa estatura. No entanto, a graciosa Maria havia conquistado o coração do durão com suas longas e intermináveis mordidas e babadas. As quinas duras do construtor era um prato cheio para aliviar as coceiras dos dentes por nascer da menina. Ele havia se tornado um dos brinquedos preferidos nos últimos dias.
“Ela foi embora com seus pais de volta para a Inglaterra. Parece que é um lugar muito longe… Mais longe do que o lugar de onde o burrico veio” – disse o Lego para irritar o boneco que se gabava de ter vindo da Disney.
“Pois é… ela e seus pais estão fazendo uma falta, né não? Desde que chegaram a casa ficou cheia de alegria, movimentada. Vocês viram o tanto de outros brinquedos que apareceram? Cada dia chegavam novos amigos: a girafinha metida a besta, o gatinho gorducho, a Mônica que ficava dando uns olhares estranhos pra gente, um montão de mordedores. Veio brinquedo até do Camboja! E aquele tapete macio e colorido?!? Como tenho saudades dele… Depois que eles foram embora dobraram o pobre do tapete, colocaram na sacola e o deixaram ali no canto, encostado, tristonho”.
O burrico não se conformava com a situação.
“Realmente eles fazem uma falta…” – disse uma voz num tom bastante meloso, típica de uma menina mimada.
Todos riram nessa hora. Era a princesa se manifestando. Ela havia ficado algumas vezes muito contrariada com a menininha Maria. Achava que ia chegar chegando, arrasando, porque era de um tecido não alérgico, toda maciazinha, com pernas e braços longos e bons de apertar. Além do mais era cor-de-rosa. Nenhuma menina, por mais novinha que fosse, resistiria a uma boneca cor-de-rosa. Ainda mais sendo uma princesa, com coroa de ouro, colar de pérolas, pingente em coração dourado e sapatilhas de bailarina.
Pois bem. No dia que a princesa chegou, embalada como um belo presente, a menina simplesmente ignorou a boneca e ficou vidrada na etiqueta que veio presa a ela. Aquele pedaço de papel com os dizeres “Quero ser a melhor amiguinha da…” virou a sensação da pequenina. O papel traz até hoje as marcas das mordidas dos seus dois únicos dentinhos. A princesa ficou indignada com aquele desprezo. Desde então fechou os olhos, empinou o nariz e fingia não dar bola para a situação.
Mas um dia alguém pegou a princesa e a fez dançar diante da menina, aproveitando os longos braços e pernas, num movimento de bailarina que encantou a garota. Ela então soltou um grito e engatinhou às pressas para pegar a boneca. A princesa naquela hora se derreteu todinha. Era tudo o que ela queria. Ser amiga da Maria. Orgulhosa como é, continuou com os olhos fechados mas, sem conseguir dominar seus sentimentos, abriu um sorriso de felicidade. A princesa virou outra desde aquele dia.
Mas e agora?!?! A menina já não estava mais ali e levou consigo praticamente todos os brinquedos. Só deixou o burrico azul, o Lego, o ratinho amarelo e… para o espanto de todos… a princesa cor-de-rosa. Ela não teria conquistado o coração da menina?
Por conta disso não parava de chorar. Na verdade, ela não era a única. Praticamente todos os demais bonecos, o tapete macio e colorido, os sofás, a televisão, a mesa, o berço desmontável e os bisavós, os avós, os tios, os amigos, todos choravam a ausência da menina Maria e dos seus pais. Foram uns poucos dias, mas eles haviam enchido a casa de uma alegria que há muito não se via por ali. Durante aquele mês aquele ambiente parecia ter recebido uma romaria, um entra e sai de amigos e parentes que vinham vê-los, abraçá-los e tomar a menina nos braços, nem que fosse por uns poucos minutos. Era uma festança interminável!
“Eu não imaginava o quanto eles são queridos! Really!!!” – disse o ratinho que chegava das baixas temperaturas, não da Europa, mas da cozinha. Ele viera com os “ingleses” de Cambridge em dezembro. Ficava o tempo todo na sala, junto aos outros bonecos. Mas, por um inexplicável acidente, acabou sendo esquecido na geladeira da cozinha. Isso mesmo… na geladeira. No outro dia cedo quando alguém foi à procura de um copo de suco, deu de cara com o amarelinho de orelhas cor-de-rosa e pés azuis assentado no gradil do refrigerador. Ele estava curtindo bastante a temperatura mais baixa, parecida com o inverno europeu, bem diferente do insuportável verão brasiliense. Mas jamais imaginaria que seria deixado para trás.
(Um detalhe: apesar de se gabar e posar de intelectual, morador de Cambridge, o rato havia sido fabricado na China, muito embora nunca admitisse isso. Mas bastava um olhar minucioso e logo toda farsa caía por terra: de maneira quase imperceptível podia-se ler embaixo de sua base “made in China”.)
“Ué… por que você está dizendo isso, ratinho inglês? Eles não tem amigos na Inglaterra? – perguntou surpreso o burrico.
“Yes! Claro que têm. Eles sempre se encontram para um friendly relationship. Já receberam em casa friends japoneses que falam português, um africano, portugueses, english friends, obviamente… e muitos outros. Isso além desse pessoal que mora aqui. Eles estiveram por lá também. A funny grandma with curly hair já foi duas vezes. Os outros grandparents da Maria e outros tios e priminhas apareceram por lá também. Mas de longe a casa de lá tem o movimento que teve a casa daqui nesses dias. Era muita gente. I’m very impressed!!!”
“Pois é, mas tudo agora acabou…” – disse deprimido o burrico fungando o focinho róseo.
“Apesar de tudo o que ela me fez, sinto uma falta imensa da Maria” – cooperou em lágrimas a orgulhosa princesa.
“Alto lá… parem com isso!!!” – retrucou bravamente o Lego com olhar de quem não pede, mas ordena, como a funcionários sob sua gerência. “Eles precisavam ir. Os pais da menina têm muito trabalho pela frente. É com o trabalho que a gente cresce. O nosso apego à pessoas e lugares não pode ser um atrapalho para que cresçamos. Se aprendemos a amar a Maria e seus pais de verdade, então é importante deixá-los ir. Para que construam novas experiências e novos conhecimentos! Amor que engaiola não é amor. É prisão!”
“É verdade, amigo Lego. I agree with you! Eles precisavam ir” – guinchou o ratinho inglês, já com a voz fraquinha, dando sinais que a pilha já estava quase no fim. “Eles precisavam ir… E eu, até que fiquei feliz de ter sido esquecido por aqui”.
Todos assustaram com aquela afirmação. O ratinho não teria saudades da menina e dos pais? Não sentiria falta do país e das baixas temperaturas? E antes que alguém dissesse algo, já foi explicando:
“Esses dias aqui foram maravilhosos. Eu via os três se preparando para a viagem e ficava imaginando: como deve ser esse sentimento de viver em uma família maior? Eu percebia o amor dos três: do pai, da mãe e da menina. Vi como tudo foi acontecendo, desde o nascimento dela. No dia da viagem, pouco antes de fecharem a mala, me colocaram lá dentro, junto com outros poucos brinquedos. Fui um dos escolhidos para ver essas coisas que vi aqui. Nesses dias aqui eu entendi um pouco mais do que seja amor. Um sentimento que a distância não apaga… ao contrário, às vezes até inflama. Pude ver a maneira como os tios, que não conheciam a menina, a receberam, como se brincassem com ela todas manhãs desde o nascimento, como eu brinquei. Vi a alegria e os sorrisos da chegada e a tristeza e o choro da saída. Mas vi também que o amor é algo maior do que toda tristeza que fica. Essa passa, até o reencontro. E, pelo que vejo, será em breve. Quem sabe, quando eles forem vê-los, me levam de volta pra casa. Aí terei aprendido um pouco mais sobre o que é amar, apesar da distância. To love despite the distance”.
Todos os bonecos estavam calados com lágrimas nos olhos. A televisão também estava muda. Só o barulho dos carros e motos do eixinho não paravam. O mundo lá fora continuava correndo freneticamente. Eles não tinham tempo. A pressa e a correria os impedia de entender o que é amar.
Marciamarcinha
Quanta poesia!Quanto sentimento!
Família nos proporciona tudo isso mesmo!
E você meu amigo, colocou em palavras de forma belíssima!
Que o reencontro seja logo!
Maria arrebatou a todos nós!
Carlinhos Veiga
Obrigado, Marcinha!