Hoje é um dia apropriado para o cristão refletir sobre pecado e arrependimento; para responder para si mesmo o quanto ele detesta o mal e deseja apegar-se ao bem (Rm 12:9). Nesta quarta-feira, ao retornarmos de nossos retiros espirituais, onde imaginamos ter estado longe das depravações do mundo, materializadas no carnaval, talvez a simbologia das cinzas nos seja inspiradora, sabendo que, simbolicamente, nosso Senhor será crucificado daqui a 40 dias.

Muitos cristãos, hoje, observarão o rito religioso das cinzas, esse sinal de arrependimento e conversão. A frase por eles ouvida será do próprio Jesus: “arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1:15).

Iniciamos a Quaresma, os quarenta dias que preparam o espírito do cristão para a semana santa. Para muitos, trata-se de um dia reservado para o arrependimento dos “excessos” cometidos no carnaval; uma indulgência pré-agendada para a quarta-feira, com garantia de “conta zerada”, para poder iniciar o ano sem dívidas espirituais.

Conforme a tradição cristã ocidental, trata-se uma data litúrgica de jejum e abstinência, envolvendo contrição, arrependimento e conversão. Mais que o resgate dos pecados do carnaval, marca o início do período de preparação para a plena compreensão da morte e ressurreição de Cristo.

Os evangélicos, em geral, são refratários a essa prática. Tanto porque não adotam a tradição das cinzas quanto porque as associam exclusivamente ao carnaval. E temos a tendência de desprezar o ritual, que consideramos, no mínimo, equivocado: “liberou geral nos quatro dias e depois quer zerar tudo na quarta-feira; muito conveniente”. De fato, se alguém pensa e age com essa perspectiva, revela uma obtusa esperteza. Parece que não são poucos os que pensam assim. “Na dúvida, melhor dar uma chegadinha na igreja; vai que…”.

Entretanto, as cinzas do arrependimento remontam à antiguidade. Encontramos a figura do jejum com saco e cinzas em vários episódios bíblicos. Jó, ao final de sua dolorosa experiência, diz assim:”por isso me abomino e me arrependo no pó e na cinza”(Jó 42:6). Mordecai, tio de Ester, também usa o costume. Quando ele soube que seu povo estava ameaçado de aniquilamento, “rasgou as suas vestes, e se cobriu de pano de saco e de cinza, e, saindo pela cidade, clamou com grande e amargo clamor” (Et 4:1). Ainda Daniel diz assim: “voltei o rosto ao Senhor Deus, para buscá-lo com oração e súplicas, com jejum, pano de saco e cinza” (Dn 9:3).

Tenho para mim que esse período, estabelecido logo nos primeiros séculos da Igreja, abriga uma sabedoria e um mistério. A sabedoria consiste na metáfora destinada à preparação do povo para a semana mais importante do calendário cristão: a semana da paixão, morte e ressurreição de Cristo, nosso Senhor. Assim é que a contagem dos dias se faz a partir da quinta-feira santa, contando-se quarenta dias para trás; e estaremos na quarta-feira de cinzas. Olhando para a frente, veremos a sexta-feira da paixão e o domingo da ressurreição com o coração mais piedoso.

Essa forma de contagem, da frente para trás, nos lembra da própria vida cristã; como que a dizer que lá na frente nos encontraremos com Cristo. Porque é chegado o reino de Deus. Pessoalmente, não sabemos quando será esse dia. Por isso mesmo, é de bom alvitre que, hoje, nos arrependamos e creiamos no evangelho.

O número quarenta também é pleno de significados. Originalmente, a Quaresma se associa aos quarenta dias em que Jesus foi tentado no deserto. Entretanto, mesmo esses dias de tentação têm o antecedente da peregrinação do povo no deserto, por quarenta anos, após a libertação da servidão no Egito. E muitos outros, sempre associados à privação, à purificação e à caminhada em direção à esperança.

O mistério está exatamente no que nos é pedido: que nos arrependamos e creiamos. Ora, como poderemos atender a essa conclamação? Como iremos buscar, lá dentro de nós mesmos, a transformação da mente (metanóia), a mudança emocional (contrição), pela qual passamos a nos entristecer com nosso pecado, e chegar àquele arrependimento ativo, que nos leve a uma quebra de rumos e caminhos (conversão)? Não se parece com a situação em que alguém nos diz: “acalme-se”? Oras, se estou nervoso ou perturbado, como me acalmar?

Entretanto, o chamado ao arrependimento e à fé são integrantes da tradição judaica e também cristã. E as palavras das cinzas, hoje, vêm do próprio Jesus: “arrependei-vos!”

Muitas tentativas de desvendamento deste mistério já encheram páginas e mais páginas de livros. Não vou ousar. Prefiro encaminhar esta conversa para o lado pastoral: arrependamo-nos e creiamos; mesmo que não tenhamos pulado carnaval, arrependamo-nos e creiamos no evangelho. Mesmo que não tenhamos em mente que faltam 40 dias para a paixão; mesmo que não estejamos vivendo um tempo de deserto; mesmo que não creiamos que está próximo o nosso encontro definitivo com nosso Mestre, arrependamo-nos já. E creiamos no evangelho. Esse chamado não se destina a foliões, apenas. Sim, a eles também; por que não? Mas destina-se àqueles que tiverem ouvidos para ouvir. E que o Espírito de Deus nos ajude naquilo que nos é impossível, naquilo que nos é velado do nosso próprio coração.

Senhor, há muitas coisas que não entendo. Mas se ouço, nesta quarta-feira de cinzas, o teu chamado à contrição; se percebo que o carnaval, em sua essência, não é totalmente estranho ao meu modo de viver; se percebo que o dia do resgate já foi marcado, e que meu escrito de dívida já foi encravado naquela cruz, que antevejo da distância de quarenta dias, peço-te então que me ajudes a encontrar caminhos de contrição e arrependimento para o meu coração. Porque sei que coração compungido e contrito não desprezarás, ó Deus.

Confio que, pela obra do Espírito em mim, voltarei o rosto ao Senhor Deus, para buscá-lo com oração e súplicas, com jejum, pano de saco e cinza. Amém.

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