ShoppingOutro dia, no shopping, encontrei um irmão que eu não via há muito tempo. Percebendo eu não me lembrava dele, apresentou-se: membro de uma igreja tradicional da cidade e ex-aluno meu. Conexões refeitas, surge logo aquela intimidade de “amigos de infância”. Muito legal.

Abraço pra cá, tapinha pra lá, o que você tem feito nestes últimos anos, e percebi que ele estava com ar grave, apressado. Agitado, talvez. Mal podia esperar para ir direto ao assunto. Fiz silêncio de atenção, para que ele pudesse centrar o foco. Ele sabia que precisava ser rápido, conciso e direto, pois estávamos num encontro de passagem. Família dos dois lados esperando. De repente, ele pareceu encontrar o jeito de começar e disparou algo assim:
— Você conhece alguém que entenda de Deus?
E eu: — Como?
— Pode me apresentar? Estou procurando. Alguém que possa falar dele com conhecimento prático, chegado, de convívio.
— Bem, a gente pode pensar…
— Não vale um teórico ou estudioso sem experiência pessoal. Não procuro, exatamente, um profissional; alguém que tenha lidado apenas com igrejas, agências missionárias e outras entidades que procurem cumprir seus papéis.
— Vejo que você já tem um perfil na cabeça…
— Não precisa ter muito estudo. Na verdade, isso nem importa. Mas preciso de alguém que possa me orientar.

Atônito, eu até me esqueci de me ofender com a abordagem dele. Afinal, se ele estava me pedindo uma indicação, não estava pedindo a minha ajuda pessoal. Não seria eu; seria alguém que eu conhecesse, melhor do que eu! Mas peguei leve, tentando entender se, nessa abordagem, havia um pedido de socorro ou, em seguida ao susto, viria um sermão com três pontos e exórdio. Tem gente que pergunta para poder responder. E você sai no lucro, com a pergunta e com a resposta. Tentei entender o que ele desejava:
— Meu irmão, o que aconteceu? Você ainda é crente, em comunhão com sua igreja?
— Sim, continuo na igreja, com a família etc. Estamos na luta.
— Ué, e então?!
— Mas sou um discípulo meio perdido, em termos de referenciais, querendo retomar a caminhada. Procuro um orientador que se disponha a caminhar comigo, ajudando-me a reconhecer os enganos, mentiras, desvios, atalhos e tantos outros problemas que me dificultam o crescimento.

Nesse momento, confesso, senti um certo alívio de não ser “o escolhido”. Será que pequei? A essas alturas, ele já estava falando rápido, como quem repete um discurso já bem pensado e talvez já bem batido.
— Quando você me apresentar esse irmão, ou irmã, não vou questionar suas credenciais eclesiásticas. Não vou perguntar sobre denominação, linha teológica, escatológica, títulos, grego, hebraico, nada disso. Não serei consumidor espiritual. Nem intelectual. Nem “mentorando”. Talvez, nem mesmo aluno. Serei discípulo, com a graça de Deus.
— Meu irmão, você me parece estar procurando um “amigo espiritual”. Será que em sua igreja…
— Quero estar atento aos sinais que puder identificar de genuinidade de suas relações com o Pai. Por exemplo: sei que Jesus disse: “nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros”. Então, esse amor será um sinal, para mim. Talvez por isso, para encontrar essa pessoa, eu tenha que procurar bem de perto. Precisarei olhar “para dentro” dela. Certamente, então, precisarei conviver com ela. Seria bom comermos um saco de sal juntos, como diz o ditado.
— De fato, para uma caminhada dessas, você precisa de um amigo especi…
— Nessa busca, acho que posso simplificar minha vida aplicando apenas um critério, o de 1João 4: 7 e 8 — “Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor procede de Deus; e todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor”.
— Bem, com um critério desses, se você achar alguém…
— Pode ser que eu esteja deixando coisas importantes de fora, ao tentar simplificar tanto a minha busca. Mas eu acho justo. Primeiro, porque foi nesse ponto, o do amor, que descobri que entendo tão pouco de Deus; a ponto de resolver recomeçar.
— Ah, é assim? Você se sente em falta, no quesito do amor?
— Segundo, porque João parece entender minha perplexidade.
— O João apóstolo?
— Ele simplifica a vida de seus discípulos e leitores, indo ao cerne da questão, deixando as complicações para outra oportunidade e para outros escritos.
— Parece que você está meio desiludido com os teólogos…
— Olha só o que ele diz, sem floreios, “na lata”: “Quem não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor.”
— Meio pesado, hem? Talvez, no contexto da carta…
— Achei razoavelmente claro, para quem não está com ânimo de discutir, mas sim de achar de novo o caminho.

A conversa estava ficando densa. Pelo menos, para mim. As famílias, por ali, meio que tentando dar um tempo, percebendo que meu amigo precisava falar. Então, pensei em dar uma aliviada:
— Você já pensou o João, hoje em dia, postando essa frase no facebook? Seria trucidado pela turma do contra.

Acho que ele nem ouviu meu gracejo. Estava absorto.
— O primeiro alvo desse critério fui eu mesmo. Resultado, achei-me em falta.
— Pois é, você mencionou isso. Mas não entendo bem como você chegou a essa conclusão, tão severa. Não está pegando pesado demais consigo mesmo?
— Acho que não; estou é cansado de aparências. É por isso que estou à procura de alguém que tenha resolvido, razoavelmente, esse problema. De preferência, gente que “começou de baixo”. Não quero anjos para me ajudar.
— Anjos? Gente que começou de baixo?
— Sim, gente que anteriormente era indiferente, insensível, agressiva, egocêntrica, orgulhosa, medrosa etc. e que hoje seja vista e tida como amorosa.
— É assim que você se vê? Ser tido como amoroso é o seu alvo? Acho que estou entendendo.
— Gente que ama o próximo, sabe? Gente que aprendeu a viver para fora, para os outros. De verdade. Gente que mudou o eixo gravitacional de sua atenção para as pessoas.
— Eixo gravitacional, é?
— Talvez alguém mais para Pedro do que para João.
— Ah, você se identifica mais com o apóstolo Pedro…
— Isso mesmo: a caminhada de Pedro me inspira e me dá esperança, porque ele começou como pedra bruta. De amoroso não tinha nada. Pensava só nele mesmo.
— Bem, a gente não sabe…
— Pelo menos, aparentemente. E com isso eu me identifico totalmente. Haja transformação!
— De fato, o Pedro cresceu muito.
— Já o João me parece ter nascido assim, bonzinho. Reclinando-se no peito do Mestre.
— Também pode ser uma imagem superficial. Ser bonzinho não me parece…
— Se precisou caminhar nessa estrada do amor, não consigo enxergar seus progressos.
— É, mas…
— Não digo que não houve, mas me parece que no apóstolo Pedro as mudanças são mais evidentes.
— Bem, entendo.
— Então, se eu vivesse no tempo desses dois apóstolos, eu chegaria perto de João e, simplesmente, o observaria atentamente.
—Ah, eu também! Discretamente.
— Já para o velho Pedro, eu pediria: “me conta, me ensina”.
— Mas, irmão, o que você vai fazer agora? Não seria o caso de conversar com o seu pastor? Ou com algum irmão mais idoso…
—Não, assim não vale.
— Não vale?!
— Mesmo entre esses, eu quero saber se amam de verdade. O lance do eixo gravitacional. Se têm “tempo, presença e atenção” para seus cônjuges, pais, filhos, irmãos ou ovelhas.
— Bem, acho que ent…
— Quero saber se dão sua vida por elas. Não tanto para morrer, mas para viver. Eixo gravitacional.
— Vejo que você tem o mapa da mina montadinho na cabeça…
— O dia-a-dia é que revelará se estão disponíveis e dispostas a sacrificar as suas coisas em favor de cada uma e da coletividade. Falar é fácil! Está me entendendo?
— Esse —como é? — tempo, presença e atenção são difíceis para qualquer um.
— E ainda tenho a prova dos nove: se elas ouvem sua voz e os seguem.
— Elas quem?
— As ovelhas, oras! Pastor que fala mas as ovelhas não o ouvem… Aí, sim; essa pessoa seria uma boa referência; gente a observar. E imitar!
— Mas será que você encontra alguém…
— Aí eu ia enchê-la de perguntas, do tipo: “como você conseguiu”? Como se deu a mudança de seu temperamento? Como você domou a ira que existia lá dentro? Como substituiu o a violência diante da frustração pela paciência e pelo diálogo? Como mudou o eixo gravitacional?
— Imagino que você esteja querendo respostas para seus próprios problemas, não?
— Mas é isso que estou falando! Eu descobri essas falhas em mim e me sinto meio que desclassificado pelo João! Olha o que eu vou perguntar, olhos nos olhos: o que significa para você, hoje, num tempo de redes sociais, “amemo-nos uns aos outros”? Você responde a todos os emails dos seus irmãos? Curte e comenta os posts de suas ovelhas no Facebook? Aceita todos os convites para convívio? Tem paciência com as histórias dos idosos? Das crianças? Enfim, prioriza a presença, a atenção e o cuidado sobre outras tarefas? Hã?

A estas alturas, com as famílias chamando, e um misto de angústia e misericórdia me tomando, comecei a pensar em um jeito de encerrar a conversa. Mas não foi preciso; percebi que ele também queria isso. Então, do modo como começou, ele terminou. Me deu um abraço e disse:
— Você pode me apresentar alguém que me ajude nesse problema? Não aprendi essas coisas no seminário.
E foi se afastando, em direção à sua família. Já à distância, gritou, meio sorrindo:
— Se pode, você tem um tesouro. Você tem um amigo precioso. Vou entender se você não quiser “dividi-lo” comigo. A gente se fala! Paz do Senhor!

E eu, com a cabeça zumbindo, observei o irmão pegar a escada rolante com sua bela família. Minha gente veio chegando e perguntou:
— O que foi isso?

E eu respondi, meio sem pensar:
— Não sei bem. Mas acho que acabo de ser “instruído na Palavra”.

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P.S. Os diálogos acima são fictícios. Qualquer semelhança com situações e pessoas reais será mera coincidência.

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