Opi_03_07_15_Triste_olhar

Naquele domingo, a classe de Escola Dominical foi tumultuada. Um rapaz dizia que, se tivesse que acreditar que existe um Deus, este seria prepotente e injusto. Para começar, dizia o rapaz, ele não me consultou se eu queria nascer ou não. E pior, ao me obrigar a nascer, ainda me coloca num paizinho subdesenvolvido, cheio de gente mais ou menos e, para piorar, escolhe para mim uma família pobre e cheia de problemas. Só pode ser brincadeira, concluía ele.

Era para ser uma aula sobre “graça e graças” em Romanos: a iniciativa divina e a reação humana esperada. Mas a aula não fluiu porque as atenções foram todas sequestradas pelo rapaz. Era quase um clamor. “Que graça?”, dizia ele. Deus está em dívida comigo; deve-me muitas explicações! E logo se recuperava do deslize: isto é, se ele existisse. E arrematava: prefiro acreditar que sou um lixo cósmico, e que o destino não me favoreceu.

Eu fiquei triste com aquele discurso, sentindo-me meio culpado da minha felicidade, da minha gratidão, da minha “sorte” de não ser um joão-ninguém. Senti culpa de me alegrar com uma bela manhã de sol, com o canto dos pássaros, e até da decisão de ter meus próprios filhos. Depois daquela conversa, o pensamento era inevitável: e se, de repente, um filho meu me dissesse que não pediu para nascer, e que eu tinha a obrigação de tornar sua vida o mais fácil possível, para compensar a ousadia da decisão egoísta?

Imagino que não haja como evitar o incômodo sentimento, na hora de deixar um bebê de seis, oito meses em uma creche, porque os pais precisam trabalhar. Dá para ouvi-lo dizer: se era para me entregar para desconhecidos, por que me puseram no mundo? Para ter um brinquedinho no fim-de-semana?

Carro novo? É importado? Está bem de vida, hein, irmão? Está dando o dízimo fielmente?

Nossa, você mora neste prédio?! Só o condomínio deve ser uma fortuna!

Ai, se eu tivesse o estudo que você tem, minha vida seria muito diferente.

Ei! Tem uma vaguinha pra mim lá na sua empresa? Pode ser até para servir cafezinho. Ouvi dizer que o salário…

Tenho pensado que a culpa é uma linguagem. Nossa alma tem maior ou menor fluência nela, como acusada ou como acusadora. Mas ela acaba sendo usada como lentes de óculos, através das quais olhamos para o mundo.

Penso que há culpas reais; aquelas provenientes de erros, malfeitos, omissões e pecados, sejam dolosos (intencionais) ou apenas culposos (sem intenção de causar o mal). São culpas objetivas e identificáveis. Mas percebo, em tantas situações, sentimentos de culpa sem causa identificável. Entre essas, as acusações do Inimigo, muitas vezes por meio das críticas de amigos. É que aprendemos a linguagem da culpa e, junto com ela, os sentimentos correspondentes. E nessa confusão, o diabo é capaz de transformar nossa vida em um inferno.

Para a culpa objetiva, o caminho cristão é conhecido: uma vez revelado o pecado, mediante a ação do Espírito Santo, segue-se a contrição, o arrependimento, a confissão e o perdão. Sabendo que ele é fiel e justo para isto. Se confessarmos os nossos pecados… diz João. E o perdão, graça divina, tem o poder de nos libertar da culpa e de seus correspondentes sentimentos. O último passo é crer que fomos perdoados, e que nosso escrito de dívida foi cravado na cruz.

Para o sentimento difuso, sem objetividade, o caminho da graça a nós oferecido por Deus, no sangue de seu Filho, é a ação reconciliadora da igreja, que irá ecoar a palavra de Jesus: onde estão os teus acusadores? Essa ação também nos ajudará a perceber aqueles pecados que nos são ocultos, para que, em seguida, os depositemos aos pés da cruz. Irmãos piedosos também nos apoiarão na aceitação da graça de Deus, que é poderosa para nos libertar de culpas difusas ou imaginárias.

Tenho para mim que há um mistério em tudo isso. O mistério da gratidão. Sem a semente da gratidão em nossos corações, não percebemos e não recebemos a maior das graças de Deus: seu filho. Sem esse dom misterioso, que permite e proporciona a experiência da contrição, permaneceremos credores de Deus; achando que ele nos deve. Isto na hipótese de crermos, de fato, nele. Porque não é incomum que, olhando para seus feitos, não o glorifiquemos como Deus, nem lhe demos graças; inculcando-nos por sábios, tornamo-nos loucos (Rm 1.21).

 

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