Por Amor
Aquela conversa deve ter sido frustrante para os discípulos. Mas para nós, passado tanto tempo, ainda é luz.
Jesus lhes diz que vai preparar-lhes lugar; e que sabem o caminho (Jo 14.4).
Nesse momento, o prático Tomé se exaspera e fala como o Gato, de Alice: “Como saber o caminho, se não sabemos aonde vais?”.
Ai! a resposta torna tudo ainda mais difícil: “Eu sou o caminho; ninguém vem ao Pai senão por mim”.
Posso senti-los se entreolhando. Filipe tenta aliviar: “Mostra-nos o Pai, e isso nos basta”. Porém não dá certo; o Mestre retorna ao argumento principal, agora mais enfático: “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: mostra-nos o Pai?” (Jo 14.9).
Como poderiam aqueles homens rudes imaginar o alcance dessas palavras? Como suporiam que o Mestre, que se apresentava como caminho, fazia uma síntese de sua missão, envolvendo motivações, modos de agir, sentir e pensar, além de revelações sobre Deus e os homens?
Como poderiam supor que, ao fazer-se caminho, ele esperava que seus discípulos tivessem “o mesmo sentimento” que ele? Que entre eles tudo brotasse de um “amou de tal maneira” e que absolutamente tudo desaguasse em um “que deu”?
Como poderiam imaginar aqueles homens rudes que, para além das palavras das Escrituras, Deus se faria um menino de manjedoura e, ao final de tudo, venceria o mundo e o maligno como uma “ovelha de matadouro”, para revelar-se — a quem tivesse olhos para ver — um leão?
Como poderiam imaginar aqueles homens rudes que seu Mestre esperava que eles, ao compor seu corpo, tudo fizessem por amor? E que, se esse amor que nasce misteriosamente — mas que se derrama concretamente em gestos de renúncia e serviço — não fosse a motivação de tudo, nada seria? Mesmo que dessem seus próprios corpos para ser queimados, nada seria? O que significa que não estariam nele, no caminho?
Como poderiam imaginar que sem ele nada poderiam fazer? E que, após sua partida, ainda edificariam uma igreja, ainda articulariam membros para produzir o crescimento de um corpo, na base do alegre e anônimo serviço sacrificial? Sim, que o crescimento se daria, quase imperceptivelmente, por meio de atitudes e sentimentos tão sutis quanto ternuras, afetos e misericórdias? Com cânticos e ações de graça?
Era informação demais para o momento. Precisariam de tempo e de discernimento — do Espírito que viria. Precisariam aprender a morrer, “o dia todo” para, então, chegar ao seu destino, ao fim da caminhada, ao início de tudo — o Pai. Ou melhor, os braços do Pai.
E imaginar que tais cogitações nos chegam, passados dois mil anos, e nos encontram aturdidos e ansiosos com relação ao futuro da igreja do Senhor!
É tempo de voltar nossa atenção para o menino, em sua fragilidade.
Um menino se nos deu! Onde a soberba? E os títulos? E os cargos? E a sabedoria secular? E o domínio sobre mentes e almas? Onde as técnicas? E as organizações? E os métodos? E as planilhas? E os sistemas? E a mídia? E as cifras? E o sucesso?
Não, a mensagem que celebramos é de outra natureza; ao mesmo tempo singela e poderosa — naquela manjedoura está o nosso caminho: amou de tal maneira que se deu (Jo 3.16). O que passa disso… bem, é outro caminho.
Este artigo foi publicado na Revista Ultimato, nº 339.