Vencer na vida — conclusão
No texto anterior, eu dizia que, pelos padrões vigentes em nossa sociedade ocidental (sempre sonhei usar essa frase), sou um vencedor. E que a aposentadoria não é o topo da escada, mas uma etapa bem alta. E que a subida continua. Só que, agora, com novos recursos, adquiridos ao longo da escalada.
Bem, suponho que, depois de tanta subida, eu já esteja em condições de olhar para baixo e, com as lições que a escada trouxe, olhar para cima com alguma vantagem sobre os novos alpinistas da vida.
Mas voltando ao doce sabor da vitória, pergunto novamente: em que sentido eu venci na vida? O Google fornece milhões de respostas. Mas nem quero olhar; quero dar a minha, sem nenhuma pesquisa. Tipo, texto absolutamente original (aquele em que você consegue esconder suas fontes). De repente, googlinho vai me convencer que essa vitória está ligada a automóveis, motos, lanchas, apartamentos, jóias, viagens, fama, prestígio, botox etc.
Se eu estivesse começando a subir agora, pararia por aí. Mas como estou bem no alto, complico as coisas com mais perguntas. Talvez, ao chegar lá em cima, descubra que perguntas demais são coisa de iniciante; que a vida, afinal, é simples para quem sabe.
Mas, de volta à complicação: e felicidade, o que é? Alguém responderá: felicidade é ter amigos. Concordo. Outro dirá: felicidade é um copo de água fresca no deserto. Já acho um pouco afetado.
Difícil, não? Talvez devamos falar por parábolas, para simplificar as coisas. Conto, a seguir, duas; uma nova e outra antiga. Mas têm muito a ver uma com a outra. Acho que nos ajudarão a pensar.
A primeira é atribuída a Max Gehringer, que teria escrito na Revista Exame. Não sei. Mas gostei. Vamos lá.
A EXECUTIVA BEM-SUCEDIDA
Foi tudo muito rápido. A executiva bem-sucedida sentiu uma pontada no peito, vacilou, cambaleou.
Deu um gemido e apagou.
Quando voltou a abrir os olhos, viu-se diante de um imenso portal.
Ainda meio zonza, atravessou-o e viu uma miríade de pessoas. Todas vestindo cândidos camisolões e caminhando despreocupadas. Sem entender bem o que estava acontecendo, a executiva bem-sucedida abordou um dos passantes.
— Enfermeiro, eu preciso voltar urgente para o meu escritório, porque tenho um meeting importantíssimo. Aliás, acho que fui trazida para cá por engano, porque meu convênio médico é classe A, e isto aqui está me parecendo mais um pronto-socorro. Onde é que nós estamos?
— No céu.
— No céu?…
— É.
— Tipo assim… o céu, CÉU…? Aquele com querubins voando e coisas do gênero?
— Certamente. Aqui todos vivemos em estado de gozo permanente.
Apesar das óbvias evidências (nenhuma poluição, todo mundo sorrindo, ninguém usando telefone celular), a executiva bem-sucedida custou um pouco a admitir que havia mesmo apitado na curva.
Tentou então o plano B: convencer o interlocutor, por meio das infalíveis técnicas avançadas de negociação, de que aquela situação era inaceitável. Porque, ponderou, dali a uma semana ela iria receber o bônus anual, além de estar fortemente cotada para assumir a posição de presidente do conselho de administração da empresa.
E foi aí que o interlocutor sugeriu:
— Talvez seja melhor você conversar com Pedro, o síndico.
— É? E como é que eu marco uma audiência? Ele tem secretária?
— Não, não. Basta estalar os dedos e ele aparece.
— Assim? (pléc…)
— Pois não?
A executiva bem-sucedida quase desaba da nuvem. À sua frente, imponente, segurando uma chave que mais parecia um martelo, estava o próprio Pedro.
Mas a executiva havia feito um curso intensivo de approach para situações inesperadas e reagiu rapidinho:
— Bom dia. Muito prazer. Belas sandálias. Eu sou uma executiva bem-sucedida e…
— Executiva… Que palavra estranha. De que século você veio?
— Do 21. O distinto vai me dizer que não conhece o termo ‘executiva’?
— Já ouvi falar. Mas não é do meu tempo.
Foi então que a executiva bem-sucedida teve um insight. A máxima autoridade ali no paraíso aparentava ser um zero à esquerda em modernas técnicas de gestão empresarial. Logo, com seu brilhante currículo tecnocrático, a executiva poderia rapidamente assumir uma posição hierárquica, por assim dizer, celestial ali na organização.
— Sabe, meu caro Pedro, se você me permite, eu gostaria de lhe fazer uma proposta. Basta olhar para esse povo todo aí, só batendo papo e andando à toa, para perceber que aqui no Paraíso há enormes oportunidades para dar um upgrade na produtividade sistêmica.
— É mesmo?
— Pode acreditar, porque tenho PHD em reengenharia. Por exemplo, não vejo ninguém usando crachá. Como é que a gente sabe quem é quem aqui, e quem faz o quê?
— Ah, não sabemos.
— Entendeu o meu ponto? Sem controle, há dispersão. E dispersão gera desmotivação. Com o tempo isto aqui vai acabar virando uma anarquia. Mas nós dois podemos consertar tudo isso rapidinho implementando um simples programa de targets individuais e avaliação de performance.
— Que interessante…
— É claro que, antes de tudo, precisaríamos de uma hierarquização e um organograma funcional, nada que dinâmicas de grupo e avaliações de perfis psicológicos não consigam resolver.
— !!!…???…!!!…???…!!!
— Aí, contrataríamos uma consultoria especializada para nos ajudar a definir as estratégias operacionais e estabeleceríamos algumas metas factíveis de leverage, maximizando, dessa forma, o retorno do investimento do Grande Acionista… Ele existe, certo?
— Sobre todas as coisas.
— Ótimo. O passo seguinte seria partir para um downsizing progressivo, encontrar sinergias high-tech, redigir manuais de procedimento, definir o marketing mix e investir no desenvolvimento de produtos alternativos de alto valor agregado. O mercado telestérico, por exemplo, me parece extremamente atrativo.
— Incrível!
— É óbvio que, para conseguir tudo isso, nós dois teremos que nomear um board de altíssimo nível. Com um pacote de remuneração atraente, é claro. Coisa assim de salário de seis dígitos e todos os fringe benefits e mordomias de praxe. Porque, agora falando de colega para colega, tenho certeza de que você vai concordar comigo, Pedro. O desafio que temos pela frente vai resultar em um turnaround radical.
— Impressionante!
— Isso significa que podemos partir para a implementação?
— Não. Significa que você terá um futuro brilhante… se for trabalhar com o nosso concorrente. Porque você acaba de descrever, exatamente, como funciona o Inferno…
Essa executiva bem-sucedida teve sua alma requisitada “intempestiva-mente”. O que nos leva à outra parábola; esta de Jesus.
Ele contou que certo homem teve uma safra excepcional. Inesperada. Tão grande que não tinha como guardar tudo. Estava feito na vida. Com aquela sorte incrível em forma de grãos, ele havia, subitamente… vencido. Planejou derrubar seus silos e construir outros, amplos o suficiente para guardar todos os seus bens. E então disse para sua alma: alma, pode sossegar e se fartar, porque a felicidade bateu à nossa porta.
E Jesus encerra a parábola, dizendo àquele agricultor: “louco, esta noite lhe pedirão a sua alma; e o que você tem juntado, para quem será?” Você construiu sua fortuna à míngua de relacionamentos, de amizades, de férias, de vida afetiva, de filhos, de pais, de Deus. E agora, não tem como retê-la nem alguém para quem deixar. Você acha que é feliz mas nem sabe o que é isso.
Sabe por que Jesus contou essa parábola? Porque um homem o interpelou no meio da rua e lhe pediu para dizer ao seu irmão para repartir com ele a herança. Percebendo a briga feia, ponderou que felicidade, no caso, era eles conseguirem viver em harmonia, sem permitir que aquela herança (ou a avareza) os transformasse em inimigos e que os separasse.
Hoje, com pensamentos desse tipo em mente, elejo o referencial que essas parábolas estabelecem para avaliar minhas vitórias (e derrotas). E também para planejar a próxima etapa. Quero buscar aí meus referenciais de sucesso.
Não chego a pensar em voto de pobreza; não estou me ligando a ascetismos monásticos e coisas assim. Não critico essas opções. Mas não foi essa a minha vida, e não penso em mudar agora. Apenas quero me ater à minha modesta realidade de servidor público, classe média, com tudo o que ela inclui e deixa exclui.
De todo modo, se essas parábolas serão meu referencial de sucesso, preciso me perguntar em que medida sou “enquadrado” por aquilo que elas condenam. Até para saber se, do ponto de vista desse referencial, sou, de fato, um vencedor. E o ponto comum entre elas está na priorização do ter sobre o ser; do investimento em relacionamentos sobre o acúmulo bens; bens que podem assumir também a forma de fama, prestígio, poder, carreira e coisas assim.
A idéia de realização pessoal, pelos padrões vigentes em nossa sociedade não se atrita com isolamento, com egocentrismo, com idéias mal-compreendidas de auto-estima, que acabam se confundindo com auto-indulgência e egolatria. Por exemplo, o homem moderno já não precisa, e nem espera, que alguém o surpreenda com um presente. Ele mesmo se presenteia. E justifica: se eu não me amar, quem vai me amar? Se eu não me presentear, como vou esperar que alguém o faça? Na sequência, a executiva bem-sucedida adota a seguinte postura (consciente ou inconscientemente): não preciso que ninguém me dê nada; não preciso de favores, não quero misericórdia, não aceito perdão. Quando eu quero, eu vou e compro; eu vou e conquisto. E se acontecer de ela se encontrar carente de amor, ela compra sexo.
Acho que a “vitória” não é por aí, mas reside numa complexa engenharia pela qual você harmoniza as exigências profissionais, da carreira; as necessidades de possuir bens; as necessidades de lazer etc. com as necessidades daqueles com quem você se encontra nessa caminhada. O modo como “os bens” interferem em seus relacionamentos torna-se, assim, fundamental. Você não as deixa se transformarem em elementos de separação, mas, ao contrário, as transforma em instrumentos de aproximação e afeto. Você age sob a convicção de que os bens não são o objetivo da vida; são componentes dela; são ferramentas dela.
Mas falar é fácil. A chance de saber se esse valor é realmente importante surge quando você é apresentado às necessidades dos outros; e entende que precisa se doar: abrir mão de confortos e interesses pessoais por causa de necessidades “maiores”. Por exemplo, quando você deixa de fazer hora-extra para estar com a família ou com amigos. Ou quando você presta serviços voluntários à sua comunidade quando poderia estar ganhando dinheiro ou investindo em sua carreira. Ou quando você se dispõe a doar tempo, talentos, serviços, presença, afeto ou — por que não? — dinheiro. Ou quando você abre mão de uma promoção que envolveria viagens além do aceitável (o mundo dos negócios, muitas vezes, exige essa dedicação) para não perder a infância dos seus filhos. Apenas exemplos.
Concluindo. Outro dia, no meio de uma conversa, uma pessoa deixou escapar que tínhamos sido muito importantes na vida dela e de sua família. “Nunca iremos esquecer de vocês”, disse ela, referindo-se à minha família como um todo.
A ficha custou a cair. Levei dias para me lembrar da conversa e perceber o valor daquelas frases escondidas numa prosa animada.
Foi quando eu me percebi aqui, onde estou agora, conversando com você que me lê: parado, num ponto alto da escada, olhando para baixo e para cima, a ponderar as ameaças e oportunidades da aposentadoria. E pensei: quantas vezes, durante a subida, eu ouvi uma declaração como essa? E a resposta, honesta, é que não sei avaliar bem se foram poucas ou muitas. Imagino que sejam pouquíssimas, se comparado com a gratidão devotada à Madre Tereza de Calcutá. Mas essas comparações não importam muito. O que importa é que talvez, pelos critérios escolhidos, elas sejam tudo o que eu amealhei de real valor; talvez elas sejam meu grande tesouro.
Muita calma, nessa hora! Respira fundo! Você ainda não apitou na curva. De repente, dá tempo de olhar para cima e ajustar a trajetória.
Se por algum motivo a luta pela vida, a educação dos filhos, a carreira profissional, a busca de segurança (leia poupança) e outras “necessidades concretas” me “roubaram” oportunidades de ouvir mais dessas declarações, agora, tendo “vencido na vida”, as perspectivas são até mais favoráveis. Quem sabe não consigo mais alguns troféus desse tipo? Hummm, preciso planejar o futuro. Acho que está nascendo um projeto de aposentadoria…
Paulo Dalbino Boverio
Amorese: É especialmente apreciável a leitura de artigos que expressam o que o escritor anela em extravazar, se o que faz tem o traço identificador do seu caráter. Compartilho do entendimento de que há momentos na vida que é impossível não falar, propalar, discutir, refletir profundamente, buscar e ouvir opiniões. Um destes, certamente, o que você vive agora, porque confirma que se uma etapa ou missão foi cumprida com saldo extremamente positivo, a mesma alegria pega carona na grata satisfação que revela o descortínar de novas perspectivas. Os mistérios da vida são realmente apaixonantes em todas as fases da vida. Ainda que seja um traço comum no homem indagar a respeito da dimensão e propósito da vitória e o sentido da felicidade, isto, certamente, só aproveita ao seu dono, numa experiência pessoal única e indelével, razão pela qual as definições podem tornar-se anódinas. Ao seu tempo e modo Deus as revela aos “seus”. Quando eu ainda estava sob o impacto da posentadoria recente, li uma frase de autor desconhecido, assim: ” Quem chora o sol que se põe, não pode ver o brilho das estrelas.” Ainda guardo isto dentro de mim com muito carinho. Como irmão em Cristo gostaria de deixar aqui registrada a lição do apóstolo Paulo: ” Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão diante de mim, Prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.” (Filipenses 3: 13-14). Sem qualquer favor, permita-me dizer que pelo seu pendor literário, preparo intelectual e espiritual, posso afirmar sem medo de errar que Deus tem planos para você muito maiores do que podemos imaginar e que certamente produzirão frutos de real valor. Que o Senhor continue a abencoá-lo juntamente com os seus familiares.
Rubem
Prezado irmão Paulo: aí está; com sua complacência vou adotar também esse brocado: ”Quem chora o sol que se põe, não pode ver o brilho das estrelas”. Faz sentido. E se harmoniza com o propósito de seguir adiante. Agradeço seu cuidado e conselhos. O irmão escreve muito bem. Parabéns.
Um abraço fraterno.