Opinião
- 15 de julho de 2015
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Culpa de mais, culpa de menos
Ao falar de culpa, quase sempre me lembro de um episódio. Aconteceu há mais de 20 anos. Eu era um jovem obreiro da ABU (Aliança Bíblica Universitária) em um encontro de formação de líderes estudantis. Na ocasião, fui convidado a fazer parte de um “painel sobre sexualidade”, mesmo com minha parca experiência no tema. Entre nervoso e inseguro, me lembro da pergunta de um estudante sobre que aconteceria com aqueles que se equivocaram nessa área da sexualidade. Considerando que “essa eu sei responder” lhe disse que nesses casos, onde há arrependimento e o voltar-se para Deus, eles então experimentariam “a graça e o caminho da reconstrução”. Lembro-me bem da resposta do estudante: “Só isso? Assim fica fácil demais!”.
É fácil receber a graça de Deus? Não funcionaria melhor com um pouco mais de culpa e algum castigo, penitência? Será que sabemos discernir quando enfrentamos “culpa de mais”, ou “culpa de menos”, e será que daria para encontrar uma “culpa do bem”, daquela que nos leve à graça?
Culpa de mais
Fico pensando por que Davi começa seu salmo de dor após seu pecado (Sl 51) com esses clamores: “preciso da tua graça... apaga meu passado... lava minha culpa”. Possivelmente porque a culpa provoca isso, essa consciência, essa dor onde “meus pecados ficam me olhando o tempo todo”1, quando “o meu pecado está sempre diante de mim”2.
Esse foi o ponto de partida para Davi, e não o ponto final da sua jornada. Se terminasse assim, seria como a culpa que encaram o tempo todo aqueles que se equivocaram. Uma culpa instalada na ponta do nosso nariz, tapando a visão depois de nossas faltas, provocando que não vejamos nada mais além de nossos erros.
Não é uma questão de esquecimento versus lembrança. Na verdade, a verdadeira luta deveria ser outra: de um lado a inconsciência, a indiferença e a dureza versus uma consciência saudável de nossa condição de pecadores. Ou seja, eu não preciso “esquecer-me” de meu pecado para experimentar paz e perdão. Tampouco preciso lembrar-me dele o tempo todo, em uma fixação doentia que me imobilize, como se eu precisasse de uma penitência eterna pelo meu erro do passado. Não somos chamados pelo Senhor a remoer para sempre o nosso pecado.
Culpa de menos
Claro que também há o outro lado, aquilo que podemos chamar de “culpa de menos”, ou simplesmente a falta de culpa. Sabemos como funciona, não é verdade? Justificamos, racionalizamos, buscamos explicar o nosso pecado de mil e uma maneiras ou, pior ainda, nem sentimos a necessidade de buscar uma explicação, entregamo-nos aos nossos impulsos e ponto final.
Interessante que o último ensaio que C. S. Lewis escreveu antes de morrer se intitule “Não temos ‘direito à felicidade’”3. Quando ele ouviu que alguém ‘justificava’ seu comportamento dizendo ‘eu tenho direito a ser feliz’, ele comentou:
“Eu fui embora pensando sobre esse conceito do ‘direito à felicidade’. A princípio isso soa para mim como alguém dizendo que tem direito à boa sorte. Pois eu acredito... que nossa miséria ou felicidade dependem em grande parte de circunstâncias fora de todo controle humano. Um direito à felicidade não faz, para mim, muito mais sentido do que um direito a ter mais de 1,80m de altura, ou a ter um pai milionário, ou o de ter um dia ensolarado sempre que você quiser fazer um piquenique”
Parece que quem usa essa expressão, na verdade, quer dizer: temos o direito a buscar a felicidade4. De que maneira? Ora, o correto seria dizer que por todos os meios lícitos, ou seja, por todos os meios a que temos direito. Daí o argumento fica circular, indicando que, na verdade, temos direito a simplesmente fazer as coisas a que temos direito. A expressão “direito à felicidade” só teria sentido então, para além dessa obviedade, se ela significasse que teríamos o direito de fazer certas coisas “ilícitas”, erradas, para alcançar a felicidade. Por isso, no final das contas, parece mesmo que essa infeliz expressão, “direito à felicidade”, somente busca com que não nos sintamos culpados por aquilo que, com razão, deveríamos sentir (uma saudável) culpa a respeito.
Culpa do bem
Se não é culpa de mais, nem culpa de menos, qual seria então uma possível “culpa do bem”? Davi, no Salmo 51, assim como Paul Tournier, em Culpa e Graça5, nos apontam essa rota: primeiro, assumir nossas responsabilidades, diante dos outros e, principalmente, diante de Deus (vv. 1-4). Segundo, reconhecer genuinamente nossa culpa, nossas ações equivocadas, mas mais importante que isso se trata de um reconhecimento de nossa condição de pecadores (v. 5). Por último há a necessidade urgente de receber o perdão transformador de Deus.
Essa verdade atua de dentro para fora (v. 6) levando-nos à restauração (vv. 7 a 12). Ali vemos que é o Senhor quem faz essa obra em nós. Não as nossas próprias penitências, não os tormentos de nossas culpas e sofrimentos, não algo que nós mesmos possamos fazer, como se tivéssemos as chaves dos cadeados de nossas próprias cadeias. Não as temos. Por isso mesmo, precisamos do Senhor. Há uma expectativa do que o Senhor ainda fará em nós o que nos leva à obediência (vv. 7, 10, 12), a novos começos (vv. 8, 10) ajudando-nos a perseverar (v. 12).
Os resultados ou efeitos dessa ação do Senhor em nós são: a humildade e obediência (v. 17), sem artifícios de barganhas que seriam “sacrifícios” para o Senhor (vv. 16, 17, 19); a experiência da alegria da salvação (v. 12); essa liberdade da culpa (v. 14) que nos faz crescer, prosperar, protegidos por esses muros da salvação do Senhor (v. 18). Também essa experiência de paz e vida é tal que nos leva a anunciar e ensinar a outros o “caminho de casa”6, essa salvação (v. 14). Às vezes, nem sabemos como, mas o “Senhor põe as palavras certas na minha boca” (v. 15) para ajudar outros a livrar-se do erro e do pecado.
Volto a pensar naquele estudante do “assim fica fácil demais”. Que tipo de sacrifícios ele consideraria? Caso fossem os de lidar com consequências do pecado que são inevitáveis, mesmo após o perdão, então seria entendível. Se provoco uma morte em um acidente, bêbado, essa vida jamais voltará, mesmo depois que eu receba perdão e graça. Só nos resta orar por força e serenidade para enfrentá-las.
Mas se esse raciocínio ou essa dificuldade de receber a graça se relacionam com uma lógica da culpa pela culpa, da prisão em um passado de equívocos, então é preciso rejeitar essa espiritualidade que tenha como paradigma máximo a culpa. Podemos dizer que a espiritualidade da graça passa pelo caminho da saudável culpa. Mas a espiritualidade da culpa nunca acaba bem se seu ponto final é a própria culpa. A culpa deve ser esse alerta e chave que nos abrem outra porta e caminho, os da graça. Se é fácil? Podemos reconhecer que muitas vezes não será algo simples. Mas sim podemos dizer que com o Senhor tudo se faz mais fácil, quando até a culpa serve para levar-nos à graça.
Notas:
1. Salmo 51.3, versão “A Mensagem”.
2. Salmo 51.3, NTLH.
3. “We have no ‘right to hapinnes’”, ensaio publicado em God in the Dock, C.S. Lewis, Wm. B. Eerdmans Publishing Co. (2014).
4. Manfred Svensson, em “Más allá de la sensatez – El pensamiento de C.S. Lewis”, Editorial Clie (2011), desenvolve esse argumento (pp. 130-132).
5. Mais sobre o tema no capítulo 17 de Culpa e Graça, Paul Tournier, Ed. Ultimato.
6. Salmo 51.13, versão “A Mensagem”.
Foto: http://www.freeimages.com/photo/cups-1198025
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Culpa de mais
Fico pensando por que Davi começa seu salmo de dor após seu pecado (Sl 51) com esses clamores: “preciso da tua graça... apaga meu passado... lava minha culpa”. Possivelmente porque a culpa provoca isso, essa consciência, essa dor onde “meus pecados ficam me olhando o tempo todo”1, quando “o meu pecado está sempre diante de mim”2.
Esse foi o ponto de partida para Davi, e não o ponto final da sua jornada. Se terminasse assim, seria como a culpa que encaram o tempo todo aqueles que se equivocaram. Uma culpa instalada na ponta do nosso nariz, tapando a visão depois de nossas faltas, provocando que não vejamos nada mais além de nossos erros.
Não é uma questão de esquecimento versus lembrança. Na verdade, a verdadeira luta deveria ser outra: de um lado a inconsciência, a indiferença e a dureza versus uma consciência saudável de nossa condição de pecadores. Ou seja, eu não preciso “esquecer-me” de meu pecado para experimentar paz e perdão. Tampouco preciso lembrar-me dele o tempo todo, em uma fixação doentia que me imobilize, como se eu precisasse de uma penitência eterna pelo meu erro do passado. Não somos chamados pelo Senhor a remoer para sempre o nosso pecado.
Culpa de menos
Claro que também há o outro lado, aquilo que podemos chamar de “culpa de menos”, ou simplesmente a falta de culpa. Sabemos como funciona, não é verdade? Justificamos, racionalizamos, buscamos explicar o nosso pecado de mil e uma maneiras ou, pior ainda, nem sentimos a necessidade de buscar uma explicação, entregamo-nos aos nossos impulsos e ponto final.
Interessante que o último ensaio que C. S. Lewis escreveu antes de morrer se intitule “Não temos ‘direito à felicidade’”3. Quando ele ouviu que alguém ‘justificava’ seu comportamento dizendo ‘eu tenho direito a ser feliz’, ele comentou:
“Eu fui embora pensando sobre esse conceito do ‘direito à felicidade’. A princípio isso soa para mim como alguém dizendo que tem direito à boa sorte. Pois eu acredito... que nossa miséria ou felicidade dependem em grande parte de circunstâncias fora de todo controle humano. Um direito à felicidade não faz, para mim, muito mais sentido do que um direito a ter mais de 1,80m de altura, ou a ter um pai milionário, ou o de ter um dia ensolarado sempre que você quiser fazer um piquenique”
Parece que quem usa essa expressão, na verdade, quer dizer: temos o direito a buscar a felicidade4. De que maneira? Ora, o correto seria dizer que por todos os meios lícitos, ou seja, por todos os meios a que temos direito. Daí o argumento fica circular, indicando que, na verdade, temos direito a simplesmente fazer as coisas a que temos direito. A expressão “direito à felicidade” só teria sentido então, para além dessa obviedade, se ela significasse que teríamos o direito de fazer certas coisas “ilícitas”, erradas, para alcançar a felicidade. Por isso, no final das contas, parece mesmo que essa infeliz expressão, “direito à felicidade”, somente busca com que não nos sintamos culpados por aquilo que, com razão, deveríamos sentir (uma saudável) culpa a respeito.
Culpa do bem
Se não é culpa de mais, nem culpa de menos, qual seria então uma possível “culpa do bem”? Davi, no Salmo 51, assim como Paul Tournier, em Culpa e Graça5, nos apontam essa rota: primeiro, assumir nossas responsabilidades, diante dos outros e, principalmente, diante de Deus (vv. 1-4). Segundo, reconhecer genuinamente nossa culpa, nossas ações equivocadas, mas mais importante que isso se trata de um reconhecimento de nossa condição de pecadores (v. 5). Por último há a necessidade urgente de receber o perdão transformador de Deus.
Essa verdade atua de dentro para fora (v. 6) levando-nos à restauração (vv. 7 a 12). Ali vemos que é o Senhor quem faz essa obra em nós. Não as nossas próprias penitências, não os tormentos de nossas culpas e sofrimentos, não algo que nós mesmos possamos fazer, como se tivéssemos as chaves dos cadeados de nossas próprias cadeias. Não as temos. Por isso mesmo, precisamos do Senhor. Há uma expectativa do que o Senhor ainda fará em nós o que nos leva à obediência (vv. 7, 10, 12), a novos começos (vv. 8, 10) ajudando-nos a perseverar (v. 12).
Os resultados ou efeitos dessa ação do Senhor em nós são: a humildade e obediência (v. 17), sem artifícios de barganhas que seriam “sacrifícios” para o Senhor (vv. 16, 17, 19); a experiência da alegria da salvação (v. 12); essa liberdade da culpa (v. 14) que nos faz crescer, prosperar, protegidos por esses muros da salvação do Senhor (v. 18). Também essa experiência de paz e vida é tal que nos leva a anunciar e ensinar a outros o “caminho de casa”6, essa salvação (v. 14). Às vezes, nem sabemos como, mas o “Senhor põe as palavras certas na minha boca” (v. 15) para ajudar outros a livrar-se do erro e do pecado.
Volto a pensar naquele estudante do “assim fica fácil demais”. Que tipo de sacrifícios ele consideraria? Caso fossem os de lidar com consequências do pecado que são inevitáveis, mesmo após o perdão, então seria entendível. Se provoco uma morte em um acidente, bêbado, essa vida jamais voltará, mesmo depois que eu receba perdão e graça. Só nos resta orar por força e serenidade para enfrentá-las.
Mas se esse raciocínio ou essa dificuldade de receber a graça se relacionam com uma lógica da culpa pela culpa, da prisão em um passado de equívocos, então é preciso rejeitar essa espiritualidade que tenha como paradigma máximo a culpa. Podemos dizer que a espiritualidade da graça passa pelo caminho da saudável culpa. Mas a espiritualidade da culpa nunca acaba bem se seu ponto final é a própria culpa. A culpa deve ser esse alerta e chave que nos abrem outra porta e caminho, os da graça. Se é fácil? Podemos reconhecer que muitas vezes não será algo simples. Mas sim podemos dizer que com o Senhor tudo se faz mais fácil, quando até a culpa serve para levar-nos à graça.
Notas:
1. Salmo 51.3, versão “A Mensagem”.
2. Salmo 51.3, NTLH.
3. “We have no ‘right to hapinnes’”, ensaio publicado em God in the Dock, C.S. Lewis, Wm. B. Eerdmans Publishing Co. (2014).
4. Manfred Svensson, em “Más allá de la sensatez – El pensamiento de C.S. Lewis”, Editorial Clie (2011), desenvolve esse argumento (pp. 130-132).
5. Mais sobre o tema no capítulo 17 de Culpa e Graça, Paul Tournier, Ed. Ultimato.
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Foto: http://www.freeimages.com/photo/cups-1198025
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É casado com Ruth e pai de Ana Júlia e Carolina. Integra o corpo pastoral da Igreja Metodista Livre da Saúde, em São Paulo (SP), serve globalmente como secretário adjunto para o engajamento com as Escrituras na IFES (International Fellowship of Evangelical Students) e também apoia a equipe da IFES América Latina.
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