Semana 55: Lucas 14.15-24*

Um dos que estavam à mesa ouviu isso e disse para Jesus:

Felizes os que irão sentar-se à mesa no Reino de Deus!

Então Jesus lhe disse:

Certo homem convidou muita gente para uma festa que ia dar. Quando chegou a hora, mandou o seu empregado dizer aos convidados:

“Venham, que tudo já está pronto!”

Mas eles, um por um, começaram a dar desculpas. O primeiro disse ao empregado:

“Comprei um sítio e tenho de dar uma olhada nele. Peço que me desculpe.”

Outro disse:

“Comprei cinco juntas de bois e preciso ver se trabalham bem. Peço que me desculpe.”

E outro disse:

“Acabei de casar e por isso não posso ir.”

O empregado voltou e contou tudo ao patrão. Ele ficou com muita raiva e disse:

“Vá depressa pelas ruas e pelos becos da cidade e traga os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos.”

Mais tarde o empregado disse:

“Patrão, já fiz o que o senhor mandou, mas ainda está sobrando lugar.”

Aí o patrão respondeu:

“Então vá pelas estradas e pelos caminhos e obrigue os que você encontrar ali a virem, a fim de que a minha casa fique cheia. Pois eu afirmo a vocês que nenhum dos que foram convidados provará o meu jantar!”

Na passagem que acabamos de ler, Jesus nos conta uma parábola onde uma pessoa importante deseja uma festa cheia de alegria e cheia de pessoas. Todos que conhecem a parábola sabem que ela se refere ao grande banquete de celebração do messias. Geralmente pensamos que isto se refere a um evento no fim dos tempos. E se refere a isto. Só que pouco se percebe que a festa já se iniciou e se for ler o conto com cuidado veremos que Jesus também se referia a algo que já se iniciou. A grande pergunta que permanece através de toda a parábola é: qual é a nossa parte nesta história e qual é o seu papel na festa? Ou, para a fazer a pergunta dum jeito que já se acostumaram a ouvir: quem é você nesta história? As parábolas quase sempre nos levam a fazer esta pergunta e a pergunta é séria: quem é você nesta história?

Para responder a esta pergunta, precisamos primeiro identificar as personagens. As personagens da parábola em si são dois indivíduos e três grupos: o patrão (senhor), o servo, os primeiros convidados, os convidados depois da aldeia, e os convidados depois de fora da aldeia.

1. Quem é você nesta história?

Para responder a esta pergunta precisamos entender bem o que está acontecendo quando Jesus contou esta parábola (v.15)…

O contexto é duma festa que Jesus reparou já antes no mesmo capítulo, a partir do versículo 7. Nesta cena, um dos que estavam presentes – quem sabe um discípulo de Jesus ¬– ouvindo que Jesus tinha falado nos versículos 12-14 que é melhor convidar para uma festa os pobres, os aleijados e os coxos, desabafou: “Feliz aquele que comer pão [uma refeição] no reino de Deus!”

Com certeza, comer uma refeição no reino de Deus se refere ao famoso banquete messiânico, a celebração com uma grande festa da vinda do messias, geralmente considerado um evento ainda por se realizar.

O banquete final já era esperado desde os tempos mais antigos. O Salmo 23.5 afirma que o próprio Deus prepara um banquete para aquele que confia nele. Mais esclarecedor ainda é a passagem de Isaías 25.6-9 que descreve a salvação em termos dum grande banquete que será para todos os povos onde Deus acabará com o véu (“nuvem” na NTLH) de tristeza e de choro que cobre as nações, destruirá a morte, enxugará toda lágrima e removerá do mundo inteiro a sua vergonha.

Através dos anos, os judeus mudaram a visão de Isaías de inclusão e honra dos povos da terra para o castigo deles. Por exemplo, um dos comentários judaicos (Targum) da época sobre esta passagem disse:

Javé dos exércitos fará para todos os povos nesta montanha uma refeição; e embora eles suponham que é uma honra, será para eles uma vergonha, e grandes pragas, pragas das quais eles serão incapazes de escapar, pragas através das quais eles chegarão ao seu fim.

1 Enoque 62.1-6 também afirma que os povos serão expulsos da presença do Filho do homem, que os entregará aos anjos para castigo e que a sua espada estará embragada com o sangue deles. Finalmente a comunidade de Qumran, um grupo judaico sectário contemporâneo com Jesus, afirma que quando o messias vier, a liderança judaica se reunirá junto com ele na ordem da sua importância (primeiro, os juízes e oficiais; depois, os chefes dos militares; e finalmente, os levitas), mas a participação será proibida para os judeus imperfeitos (cegos, coxos, e mudos e os feridos) e todos os gentios.

Jesus conta a parábola para corrigir esta visão popular de acordo com a visão de Isaías. O discípulo reclinado para o banquete em Lucas 14.15 certamente estava consciente desta atitude contra os gentios. E sabe que a postura de Jesus era muito diferente destas atitudes populares e idêntica à perspectiva de Isaías. Pois no capítulo anterior de Lucas, Jesus havia dito:

Quando vocês virem Abraão, Isaque, Jacó e todos os profetas no Reino de Deus e vocês estiverem do lado de fora, então haverá choro e ranger de dentes de desespero. Muitos virão do Leste e do Oeste, do Norte e do Sul e vão sentar-se à mesa no Reino de Deus. E os que agora são os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos. (Lucas 13.28-30)

Mas Jesus não responde ao discípulo com uma concordância simples do tipo: “sim, felizes serão mesmo aquelas pessoas que participarão do banquete final do reino”. Ao invés disto, ele conta uma história onde um homem importante promove uma grande festa naturalmente para os seus colegas e amigos. Reparem que dois convites são feitos para estas pessoas, um no versículo 16 e o outro no versículo 17. O primeiro é muito importante e a sua aceitação é um compromisso sério. É importante porque numa época e região onde não havia geladeiras, precisava-se saber quantas visitas vem para a refeição para saber qual o animal ou quais os animais precisa abater. Por exemplo, uma galinha é suficiente para 2-4 convidados, ou um pato para 5-8, ou um cabrito para 10-15, ou uma ovelha para 15-35, ou um bezerro para 25-75 pessoas. Não havia freezeres ou micro-ondas para “dar um jeito” se aparecer mais. Para abater o animal, limpá-lo, prepará-lo e cozinhá-lo, gastava o dia inteiro. A refeição principal no Oriente Médio é sempre à noite. Logo, dar para entender porque os convidados que aceitam o convite tem a obrigação de comparecer.

E isto explica a razão do segundo convite. Pois quando tudo estiver preparado, o hospedeiro enviar o seu servo para dizer que está tudo pronto e que os convidados podem vir. Este convite duplo pode ser documentado em obras judaicas e romanas desde Ester até o século 1 e permanece em certas regiões até os dias de hoje. E obviamente, a aceitação inicial obriga o convidado a responder positivamente ao segundo chamado de vir comer. Este é o contexto. E a pergunta chave continua sendo…

Quem é você nesta história? Vejamos o que acontece nos próximos versículos…

2. Quais são suas desculpas para se ausentar da festa? (vv. 18-20)

Primeiro um esclarecimento de tradução. A frase “um por um” na NTLH traduz literalmente “desde um” mas o significado mais correto é “todos de uma vez”. Assim, o insulto da recusa de atender a convocação para comer, o segundo convite, é maior do que parece. Todos recusaram o segundo convite, todos de uma só vez. Foi o fim da picada, uma afronta muito grave para quem preparou a festa. Tudo estava indo muito bem, os convites iniciais feitos, o animal levado para o abate, a preparação da carne e da refeição toda, e de repente…desculpas. E pior, bem pior, cada desculpa mais fajuta e inacreditável que a outra. Veja bem…

Quem já ouviu falar, numa região onde a terra fértil era rara, da compra dum terreno sem primeiro examiná-lo. Naquela época, a terra era tão preciosa que tudo era registrado no contrato, não só as dimensões do terreno, mas também os poços, as árvores e todos os donos anteriores são registrados no contrato. Ninguém, digo, ninguém dentro daquela cultura faria isto. Simplesmente não acontece. A pessoa que faz uma desculpa destas está simplesmente insultando a inteligência do dono da festa com uma desculpa óbvia e intencionalmente falsa. O dono da festa jamais acreditaria numa coisa destas.

Pior ainda é a desculpa daquele que alega ter que “ver se trabalham bem” cinco juntas de bois que ele acabara de comprar. Ora, a festa era no final do dia. Os bois eram testados na sua capacidade de puxar o arado ou na praça pública ou na lavoura do vendedor. E isto obviamente de dia. Ninguém fazia isto à noite. Pior, pior ainda, a terra era sagrada no Oriente Médio, mas animais não eram. Dizer que um animal é mais importante que sua amizade com um ser humano seria um terrível insulto. Outra desculpa impossível de se engolir.

Para nós, a terceira desculpa pode parecer boa, mas somente na superfície. Pois diferente das outras duas desculpas, a pessoa não especifica porque a sua ação, “acabar de casar”, impede participação na festa. Ou seja, ela não dá satisfação. E nem pede desculpas. Simplesmente avisa: “não vou”. Na maldade de vocês, podem está pensando: “o que este sujeito está querendo fazer com a sua noiva”. Na cultura em que nós vivemos, cheio de sexo por todos os lados, este pensamento é muito natural. Mas afirmo eu, isto não é o caso no Oriente Médio, especialmente naquela época quando nem sequer se fazia menção nas mulheres em público, nem que fossem as próprias filhas. Os protestos recentes no Egito e na Líbia onde apareceram quase exclusivamente homens ilustram este valor até os dias de hoje. Pode ter certeza que a desculpa deste sujeito nada tinha a ver com isto, e se fosse, seria um insulto simplesmente inimaginável.

Quais são as suas desculpas para se ausentar da festa?

3. Está disposto a procurar mais convidados? (vv. 21-23)

O hospedeiro estava irado! E com justa razão. Foi insultado publicamente, e feio. Apesar disto, isto é, apesar da sua ira, ele reage não com vingança, mas com graça. Ele passa a convidar os marginalizados da aldeia: os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos. Dentro do contexto do capítulo anterior e deste capítulo de Lucas, isto é uma clara referência aos judeus que eram atraídos por Jesus para segui-lo, da mesma maneira que os primeiros convidados simbolizam os fariseus e líderes religiosos (13.31). O grupo sectário de Qumran afirmava que estes seriam excluídos. Os pobres simplesmente não eram convidados a banquetes, os mutilados não se casam, os cegos não podem examinar terrenos e os coxos não conseguem testar os bois. Logo, o dono da festa apronta uma inversão radical na lista de convidados. Os convidados originalmente convidados achavam que sem a sua participação a festa será ou cancelada ou adiada. Enganaram-se feio. A festa continua porque seu propósito não era de honrar os convidados, e sim, o anfitrião. E isto significa que a festa tem que estar cheia! Logo, quando isto não ocorre depois de virem estes novos convidados, a ordem é de ir “obrigar” a vinda de um outro grupo mais distante ainda, aqueles que andam “pelas estradas e pelos caminhos”, ou mais perto ao pé da letra, “pelos caminhos bem percorridos e trechos que acompanham as cercas e muros”. Eram os lugares onde ficavam os mendigos e outras pessoas “fora da comunidade”, simbolizando a extensão do reino até os gentios.

Isto certamente foi a perspectiva de Isaías 25.6-9, que já mencionamos e é importante pano de fundo para a parábola do grande banquete. É importante reparar que tanto em Isaías quanto em Lucas, esta expectativa de incluir todos os povos ainda está porvir. Na parábola, a ordem de convidar os excluídos que pertencem a aldeia, este convite é cumprido. Os excluídos são convidados e, de fato, incluídos na festa. Mas este não é o caso dos excluídos que residem fora da aldeia e que representa todos os povos do mundo. A ordem de convidá-los é dada no versículo 23. Mas ainda não é cumprida! Compete, ainda, ao servo e a todos que se incluem como servos deste grande hospedeiro, convidar os marginalizados das nações, os mais excluídos dos excluídos. Isto serve de analogia com o ministério de Jesus porque ele realizou um ministério entre os excluídos de Israel mas não executou uma missão para os gentios, isto é, os povos e nações do mundo (Mt 15.23). Em Mateus 10.5 os doze discípulos são enviados apenas para os perdidos de Israel. Somente depois da sua morte e ressurreição a ordem é dada para expandir esta tarefa para convidar todos os povos da terra a entrar no reino de Deus (Lc 24.47).** Esta é tarefa nossa.

E qual é a tarefa? De acordo com versículo 23 é de “obrigar” aqueles que encontramos longe da aldeia, de entrar. Esta palavra “obrigar” já foi usada indevidamente na história da igreja para forçar pessoas conquistadas e adotarem a autoridade da igreja. Ocorreu notoriamente durante a Inquisição Espanhola e aconteceu de novo na conquista do Novo Mundo, as Américas. O grito de guerra era “a cruz e a espada”. Mas não é isto que a parábola está querendo comunicar. Semelhante aos nossos costumes na América Latina, no Oriente Médio nunca se aceita um convite sem antes saber com certeza que quem convida realmente quer. Para eles, como para nós, é necessário insistir para convencer o convidado que o convite é sincero. Este é o contexto desta parábola que os ouvintes originais teriam entendido. É pegar pelo braço, mas com amor, trazer o amigo ou o convidado para dentro.

Mas a parábola termina numa nota sóbria. Vejamos…

Conclusão (v. 24)

Primeiro quem está falando no versículo 24? De acordo com a NTLH ainda é o patrão. Como observamos anteriormente, “patrão” traduz a palavra “senhor” e pode se referir tanto ao grande hospedeiro da festa ou a Jesus que está contando a parábola. É mais provável que quem fala no v. 24 seja Jesus simplesmente porque o sujeito não está falando mais com um só indivíduo, o servo. Ele fala à uma pluralidade. Agora Jesus diz “Eu vos digo” e assim a gente entende que a fala é dirigida a todos os discípulos reclinados na refeição onde Jesus está contando a parábola.

Mas a bem da verdade, isto não importa muito. Porque mesmo que o sujeito seja o grande hospedeiro da festa na história, claramente este hospedeiro representa Deus e Jesus. Digo “Deus e Jesus” porque na parábola o servo fala pelo seu senhor.

Pronto. Sabemos quem é Jesus e Deus nesta história. São o grande hospedeiro e o seu servo, os dois papeis se confundindo. Mas volto a pergunta inicial: quem é você nesta história? Está entre os primeiros convidados, os marginalizados da comunidade, ou os marginalizados de longe? Isto é, é gente da religião a vida inteira, gente importante, líder religioso que não percebe que hoje é a hora de festa e está cheio de desculpas fajutas para não participar? O messias já chegou. É hora de liberdade e de alegria. É hora de honrar o anfitrião. Ou você consegue se envergar, talvez como alguém que faz parte da comunidade da fé, mas na condição dum total imerecido, quem nunca ganha na loteria e jamais será convidado por gente importante para gozar duma festa farta. Ou, quem sabe, você se imagina como alguém que nada tem a ver com este povo. Não é seu povo. Eles são diferentes, até esquisitos. Mas um grande senhor te convidou para participar com alguns deles na sua grande celebração. Você que de outra sorte jamais seria convidado a participar, foi convidado. Deus está tocando no seu coração mesmo agora neste momento e você é convidado a vir. Ora, o convite está feito. Mas se há algum moral desta parábola é que o convite pode ser passado adiante. Você pode perder este bonde que já está andando. Tragédia maior não. Não perca o bonde. Não se exclua da festa. Venha!

 

Notas:

*Com base no livro de Kenneth Bailey. A poesia e o camponês. Uma análise literária-cultural das parábolas em Lucas. São Paulo, Vida Nova: 1985.

**Quando Jesus citou Isaías 61.1-2 em Lucas 4.16-19 para anunciar o seu próprio ministério para os pobres, presos, e cegos, usou como exemplo dois casos do Antigo Testamento e evangelização de gentios: Naamã e a viúva de Sarepta (Lc 4.25-27). Os exemplos da sua ordem de anunciar boas-novas para os gentios são Mateus 5.14 (“sal do mundo”) e Mateus 15.21-30 (paralelo Mc 7.24-30).

  1. Oque entendo do texto, um Senhor..Deus, seus epregados os Profetas, depois.. seu proprio Filho, seus convidados.. um povo, Judeus, sai e chama os excluidos de perto, depois.. todo os povos da terra, pela fé em Jesus o Cristo. Sera isto!

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