Por Glenon Dutra, professor de Física na UFRB e membro da rede Teste da Fé – glenon.bh@gmail.com

Não faz muito tempo envolvi-me em um debate com um pastor por quem alimento um profundo respeito e que muito tem ajudado em minha caminhada como cristão. Na época eu assumia o rótulo de “evolucionista teísta” por manter a minha fé e aceitar a Teoria da Evolução. O pastor nos alertava sobre a proximidade entre o evolucionismo teísta e o teísmo aberto, mais ou menos nos seguintes termos:

1. Evolucionismo Teísta – de acordo com Grudem (1999, p.210) é a hipótese de que os organismos vivos surgiram pelo processo evolutivo tendo Deus orientado esse processo para obter o que desejava. Sugere-se que Deus interveio em alguns processos como a criação da forma mais simples de vida ou a criação do homem e que, nos demais momentos, a evolução se deu aleatoriamente e ao acaso, tal como proposto por Darwin. Há, também, variações do evolucionismo teísta que ignoram qualquer intervenção no processo evolutivo considerando todo o processo evolucionário como o processo de criação de Deus.

2. Teísmo Aberto[1] – Descrito por Baggio (2009) como uma proposição de Clark Pinnock e John Sanders:

“Numa série de livros, Clark Pinnock e John Sanders tem promovido uma visão de um Deus finito e limitado em seu poder e conhecimento. Eles afirmam que se o homem tem livre-arbítrio de verdade, então Deus não pode ordenar nem conhecer os eventos que irão acontecer no futuro. O futuro está em aberto, no sentido de ser tanto criação do homem como de Deus.”(BAGGIO, 2009)


3. Evolucionismo Teísta + Teísmo Aberto – ao aceitar que a evolução se deu aleatoriamente e ao acaso, o evolucionismo teísta reforça o teísmo aberto que sugere que Deus não pode ordenar e conhecer o futuro.

Como é possível aferir, o alerta do pastor é justo, pois o deus do Teísmo Aberto, afastado da criação e deixando o homem como único protagonista de sua história a ponto de desconhecer o resultado de seus atos, não corresponde ao Deus cristão tal como proposto na Bíblia e aceito por toda tradição judaico-cristã. O Deus cristão é o Deus que intervém a ponto de sustentar as aves do céu e vestir os lírios do campo (Mt 6: 26 a 30) ou de endurecer o coração de Faraó (Ex 7:3). Ou, nas palavras de Madureira (2009):

“Agora, como sei que Deus intervém? Porque creio que Jesus Cristo é Deus encarnado. Essa é a maior e mais importante de todas as intervenções divinas no mundo em que vivemos.” (MADUREIRA, 2009)

No entanto, a afirmação de que a existência de processos aleatórios, não dirigidos e que aconteçam ao acaso possa, de alguma forma diminuir a soberania de Deus é preocupante. Pois, seguindo essa premissa, a existência de qualquer processo aleatório colocaria em cheque a própria existência de Deus, pelo menos do “Deus que intervém” em detrimento do deus do teísmo aberto, criador de processos que aconteceriam completamente fora de seu controle ou conhecimento.

Mas, seria a aleatoriedade um problema tão grande assim para a teologia cristã? Sabemos ser possível, por exemplo, programar um computador para gerar números aleatoriamente. Apertamos a tecla enter e aparece um número. Apertamos de novo e aparece outro, sucessivamente, sem nenhuma relação com o primeiro. Não posso prever o número que vem a seguir. É aleatório. Mas será que é aleatório para Deus? Será este um processo sobre o qual Deus não tem nenhum domínio? Em resumo: um processo que é totalmente aleatório para mim é garantidamente aleatório para Deus? Creio que não. Do mesmo modo, a evolução não poderia ser aleatória e ter uma finalidade?

É claro que Darwin não concordaria comigo, para ele aleatoriedade da seleção natural era suficiente para destruir qualquer ideia de planejamento para a natureza:

“O antigo argumento do plano da natureza, tal como exposto por Paley[2], e que antes me parecia tão conclusivo, cai por terra, agora que a Lei da Seleção Natural foi descoberta. (…) Parece haver tão pouco planejamento na variabilidade dos seres orgânicos e na ação da seleção natural quanto na direção em que sopra o vento.” (DARWIN, 2000, p.75)

Realmente, qualquer cristão desejoso de concordar com a Teoria da Evolução deve compreender que está concordando com uma teoria que aparentemente exclui qualquer possibilidade de um processo guiado, justamente porque a seleção natural é um mecanismo totalmente aleatório. No entanto, usar esse motivo para negar a Teoria não colocaria o cristão na posição desconfortável de negar a possibilidade de processos aleatórios como parte integrante dos processos de criação na natureza?

Por que essa posição é desconfortável? A existência de processos “aleatórios”, “não dirigidos” e “acidentais” na natureza poderia indicar a não existência de Deus, ou, no máximo, a existência do deus do teísmo aberto. O problema é que tais processos estão presentes e contribuem para a existência do mundo tal como ele é. Vou dar alguns exemplos:

 

  • O decaimento radioativo. Materiais radioativos são materiais cujos átomos decaem aleatoriamente. Por exemplo, se pegarmos uma amostra de urânio, seus átomos, gradativamente se quebram transformando-se em tório e depois em chumbo. É um fenômeno imprevisível no sentido de não ser possível saber quando ou qual átomo sofrerá decaimento, é completamente aleatório. No máximo podemos prever quando metade do material sofrerá decaimento. O decaimento não é uma hipótese esperando para ser confirmada, é um fenômeno real, detectável pelos aparelhos adequados. Teria Deus perdido o controle desse processo?
  • A seleção natural. Calma, a seleção natural sozinha não é a Teoria da Evolução. Para Darwin sair da seleção natural para a Teoria da Evolução ele teve que fazer um bom exercício de raciocínio. A seleção natural é o processo aleatório que descreve como condições ambientais favorecem a sobrevivência de um grupo de indivíduos em detrimento de outros.
  • Fenômenos quânticos. São os fenômenos que acontecem ao nível atômico e que só podem ser descritos por meio de probabilidades e análises estatísticas. A interpretação probabilística chegou a arrepiar os cabelos de Einstein a ponto de ele afirmar: “Deus não joga dados”! Para termos uma ideia de que estou falando, se considerarmos um elétron orbitando um núcleo atômico, a física quântica demonstra ser impossível determinar, ao mesmo tempo, sua posição e sua velocidade. Por outro lado, quando você faz uma emenda em um fio para ligá-lo a um circuito, a descrição do movimento dos elétrons de um lado para outro da emenda é totalmente aleatória. Não é possível determinar quais elétrons conseguirão passar de um lado para outro da emenda. O máximo que conseguimos é definir a probabilidade da passagem de elétrons. E olhem que estou falando de um fenômeno simples que acontece em todas as residências que possuem algum tipo de instalação elétrica.

 

De fato os processos aleatórios são reais, fazem parte do mundo em que vivemos e negá-los é semelhante ao posicionamento de inúmeros protestantes do passado (como o próprio Lutero) que ridicularizavam o Sistema Heliocêntrico.

Retornando ao questionamento inicial: O que é aleatório para o homem é necessariamente aleatório para Deus? Novamente creio que não. O próprio Jesus lança mão de um fenômeno completamente aleatório para nós para falar da providência de Deus quando afirma que nem um fio de cabelo cai de nossa cabeça sem que Deus tenha permitido. A queda de fios de cabelo é obviamente totalmente aleatória para o ser humano. Ninguém pode desenvolver uma expressão matemática para prever qual fio cairá de nossa cabeça e nem quando. Mas, segundo o próprio Jesus, Deus tem o controle disso tudo.

os processos aleatórios são reais, fazem parte do mundo em que vivemos e negá-los é semelhante ao posicionamento de inúmeros protestantes do passado (como o próprio Lutero) que ridicularizavam o Sistema Heliocêntrico.

Usar as palavras de Darwin para rebater esse argumento não quer dizer nada. Quando Darwin diz que o vento sopra de maneira aleatória e sem propósito da mesma maneira que a seleção natural age na variedade de seres orgânicos, está fazendo uma interpretação do que ele observou (no caso, a seleção natural). O problema é que essa interpretação, como em qualquer teoria científica, é carregada de subjetividade e não pode ser considerada como a última palavra para o entendimento da Teoria (mesmo sendo ele o autor da teoria). É um ato de fé. Como ele já estava em crise com sua religiosidade[3], decide por fé que o que é aleatório para o homem também é aleatório para Deus. Mas não há nenhuma observação científica que confirme isso. Do mesmo modo, por um ato de fé, posso reconhecer a aleatoriedade na teoria da evolução crendo que ela não é aleatória para Deus.

Aliás, essa ideia fica mais clara quando entendemos que a ideia de aleatoriedade está intimamente ligada à capacidade de se prever algo no tempo e no espaço. Por exemplo, quando jogamos um dado, temos seis resultados igualmente possíveis e não é possível montar alguma expressão matemática que diga, com exatidão, qual o próximo resultado. Isto acontece porque, enquanto ser humano, estou limitado às três dimensões espaciais e à dimensão temporal, então existirão fenômenos aleatórios para mim. Deus, porém, não se limita a essas dimensões, pois até mesmo o espaço e o tempo fazem parte de sua criação. Portanto, aleatoriedade não faz sentido para Ele. Deste modo, ao contrário do que pensaria o teísta aberto, a existência de fenômenos aleatórios apenas reforça a ideia de um Deus onipotente e onipresente que têm o controle sobre toda sua obra diante de um ser humano limitado.

Recapitulando, iniciamos esse texto com o problema da aproximação entre o evolucionista teísta e o teísmo aberto alertando para a armadilha teológica de se reduzir Deus a um mero espectador da história. A seguir, procuramos demonstrar que essa perspectiva é equivocada, pelo menos no que diz respeito à teologia tradicional cristã que apresenta Deus como eterno e o tempo como obra de sua criação, de modo que os fenômenos aleatórios para o homem não são, necessariamente aleatórios para Deus. Assim, concordamos com o pastor não ser coerente para o cristão a aceitação do evolucionismo teísta.

os fenômenos aleatórios para o homem não são, necessariamente aleatórios para Deus

No entanto, nossa proposta não fecha o diálogo. Pelo contrário, abrimos espaço para a possibilidade de aceitação da Teoria da Evolução pelo cristão devoto. Esse tipo de aceitação, que preserva os atributos de Deus previstos na teologia tradicional e não abre espaço para o Teísmo Aberto (além de preservar outros pontos cruciais para o cristianismo tradicional) tem sido chamada de Criacionismo Evolucionário e a consideramos importante para o estabelecimento de pontes entre a ciência e a fé.

 

REFERÊNCIAS:

GRUNDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999.

BAGGIO, Sandro. Teísmo (?) Aberto. In: http://www.sandrobaggio.com/2009/12/page/2/ , 2009. Acesso em 25 de outubro de 2013.

MADUREIRA, Jonas. Minha opinião sobre o teísmo aberto. In: http://jonasmadureira.blogspot.com.br/2009/12/minha-opiniao-sobre-o-teismo-aberto.html , 2009. Acesso em 25 de outubro de 2013.

DARWIN, C., Autobiografia: 1809-1882. Rio de Janeiro, Contraponto, 2000.

 


[1] O teísmo aberto encontra ecos na Teologia Relacional de Ricardo Gondim embora este negue ter bebido dessa fonte.

 

[2] Clérigo inglês do século XIX. Ele propõe que a complexidade das coisas da natureza pressupõe a existência de um “arquiteto”, um criador e de um planejamento.

[3] Basta ler a autobiografia de Darwin, já citada nesse texto, para perceber que, no momento em que tal afirmação foi feita, Darwin passava por um processo de crise e abandono da fé cristã.